Opinião

Cooperação judiciária nacional: disruptura com determinados dogmas processuais

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  • é procuradora regional do Trabalho (8ª Região) doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) mestre pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professora de Processo Civil na UFPA.

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9 de abril de 2022, 17h06

A cooperação judiciária nacional é instituto que merece atenção de toda comunidade jurídica [1].

Os elementos fundantes de porte constitucional [2] do instituto da cooperação judiciária são de variadas ordens, emergindo, desde logo, o devido processo legal (artigo 5º, LIV CRFB/88) e, como corolários, todas as garantias processuais decorrentes; a razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII CRFB/88); e deve ser destacada a eficiência (artigo 37 da CRFB/88) que se apresenta como um feixe luminoso, agregando o campo dos sujeitos envolvidos, métodos e recursos a serem empregados.

Já na cartografia infraconstitucional, a Lei de Introdução às normas do direito brasileiro (Lindb)  como um vetor para todo o sistema processual [3]  reforça a lógica cooperativa, pois impõe decisões processuais ou istrativas devidamente motivadas, sob a inferência de uma ratio argumentativa que atenda às peculiaridades de cada caso e as consequências práticas daquela decisão [4].

E, no corpo do C, na mesma toada da Lindb, os artigos 6º e 8º, como normas processuais fundamentais, produzem um feixe luminoso da cooperação associada à proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência.

O dever geral de recíproca cooperação estabelecido no artigo 67 do C, portanto, estatui um pacto geral de aproximação intramuros do Poder Judiciário, em um primeiro degrau, entre juízos do mesmo órgão do Judiciário, estadual ou federal, especializado ou comum e, em um segundo degrau, com base no §3º do artigo 69 do C, o pedido de cooperação judiciária pode e deve ser concretizado entre órgãos de diferentes ramos do Poder Judiciário, como entre o Tribunal do Trabalho e o Tribunal de Justiça do Estado.

Mas não parou aí a cooperação judiciária… A Resolução 350/2020 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em seus artigos 1º, inciso II e 15 e 16, avançou para o terceiro degrau, qual seja, a cooperação interinstitucional entre órgãos do Poder Judiciário e outras instituições e entidades, integrantes ou não do sistema de justiça, tais como OAB, Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunais de Contas, sindicatos, associações, Advocacia Geral da União e Procuradorias dos Estados e Municípios e DF, sindicatos, entidades de ensino etc.

A gestão dos problemas do Judiciário, seja em termos istrativos, seja jurisdicionais, precisa alcançar escalas de desburocratização e esse fenômeno somente pode vir a ocorrer, desde que sejam "lançados ao vento" os procedimentos inúteis, desnecessários (desproporcionais), e se incorpore a cultura da regra de atipicidade de atos e total adaptabilidade, como enfrenta o C, especialmente apostando na instrumentalidade das formas e regras de suprimento e saneamento (artigos 139, IX e 277).

Afinal de contas, qual é o papel do Poder Judiciário? Pensá-lo somente como contramajoritário, sem aproximação social? A baliza da legalidade deve ser a vazia, formal que extingue o processo sem resolução de mérito e não entrega uma decisão em prazo razoável, integral e efetiva, sem atender à norma processual fundamental do artigo 4º do C? E tudo isso, de repente, porque o juízo não cooperou com uma troca de informações com outro juízo ou não compartilhou o teor de uma prova ou não se fez a gestão adequada de processos repetitivos ou de uma centralização de demandas perante um único juízo [5]?

O Judiciário precisa internalizar postura dialógica interna entre pares, instâncias, graus de jurisdição e externa também com as instituições, sejam públicas ou privadas, especialmente os litigantes habituais. Somente assim haverá uma istração da justiça eficiente, adequada e que atinja respostas otimizadas perante a sociedade.

A organização do Poder Judiciário não pode perder de vista o que há de mais precioso que é a sua unidade em prol da segurança e isonomia jurídica que não significa caminho imutável [6]. E essa unidade somente pode ser alcançada via exercício de reconhecimento de união de esforços, repita-se, no modelo de inputs e outputs.

Para isso, o Judiciário necessita de modo persistente fazer cada vez mais a imersão na cooperação judiciária, por solicitação ou delegação, mas principalmente por concertação.

A cooperação judiciária é uma "boa prática" [7] na gestão processual da justiça. A Resolução 350/2020 do CNJ se aperfeiçoa com a Resolução 395/2021, vez que desagua na política de inovação do Poder Judiciário [8], em que se desperta ao criar, amoldar, atualizar, modificar sempre, tendo em mente o aprimoramento dos serviços judiciários, os quais são voltados à sociedade em uma rede de colaboração, de transdisciplinariedade e ampla participação para soluções plurais, cuja tendência seja a potencialização de resultados.

A agenda da ONU 2030 estabelece a inovação como uma das metas do objetivo 9, item 9.5, reportando-se a pesquisas do setor público e/ou privado [9].

A mensagem é a de que o Judiciário não pode parar… as instituições não podem parar e nem se insular. Devem irmanar-se na construção de resultados.

O legado egocêntrico, individualista e estático quanto às formas e padronizações do Estado Liberal não pode mais ser preservado no interior das instituições. É indispensável a abertura e um exercício permanente de comunicação interinstitucional [10].

Por isso, as técnicas e instrumentos que envolvem a cooperação judiciária nacional devem estar sedimentadas em uma ressignificação de dogmas consagrados e interpretados de modo enviesado, tais como o juiz natural e a competência [11], assim como já se afirmou a questão das formas dúcteis.

Porque não se concentrar em um único juízo diversas execuções perante devedor comum? Porque não se verificar as condições de infraestrutura do juízo mais viáveis para determinada demanda e se deslocar a competência? Essa disruptura [12] com dogmas até então dotados de caráter indisponível, hoje, precisam ser reavaliados…

Para corroborar as asserções, suscitam-se alguns exemplos de cooperação interinstitucional.

Foi celebrado um protocolo de cooperação técnica para ampliar o combate ao trabalho infantil no estado de São Paulo entre representantes do Ministério Público do Trabalho (2ª e 15ª Regiões), dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª e 15ª Regiões, do Ministério do Trabalho e Emprego e da Advocacia Geral da União [13].

Em 24 de maio de 2021, houve a do acordo de cooperação técnica interinstitucional nº 1/2021, realizado entre o TRT-MG, o Ministério Público do Trabalho e a empresa Vale S.A., cujo objetivo é a promoção de um espaço de diálogo entre as partes envolvidas, com vistas à prevenção de litígios e à desjudicialização [14].

A cooperação judiciária clama por uma magistratura que compreenda sua responsabilidade social e a assunção de papeis nessa configuração da istração da justiça no bojo de um pacto federativo complexo. No entanto, deve-se registrar que não se dirige essa ética de responsabilidade somente à magistratura, mas a todas as instituições públicas, como Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública, quanto privadas.

O tema da cooperação judiciária nacional é um convite à reflexão dos versos do poema "Mãos dadas" de Carlos Drummond de Andrade, pois "o presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas".


[1] Cf. DIDIER JR, Fredie. Cooperação judiciária nacional. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

[2] No espaço desse artigo, não se ingressará nas divergências doutrinárias existentes entre normas-princípio e postulados normativos. Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17. ed. SP: Malheiros, 2016.

[3] Sem se delimitar se é processo civil, processo istrativo ou processo trabalhista, consoante o art. 15 do C, enfim, todos estão sujeitos à LINDB.

[4] Arts. 20 a 23 da LINDB.

[5] Repertório de boas práticas processuais aprovadas no FPPC (Fórum Permanente de Processualistas Civis) nos dias 18 e 19 de março de 2022 em Brasília. Boa Prática 1.Centralização de processos repetitivos para coordenar a liquidação do patrimônio de um devedor único em que não há juízo universal para o concurso de credores. (Grupo: Cooperação judiciária nacional – XI FPPC-Brasília) Descrição. A Fundação Especial Casa da Esperança atendia cerca de 450 pessoas com transtorno do espectro autista, sendo remunerada por rees feitos pelo Município de Fortaleza de verbas do SUS. Em razão de constantes inadimplências fiscais e trabalhistas, a Fundação deixou de ter CND, o que obrigou o Município a deixar de fazer-lhe os rees. A Fundação, por isso, deixou de atender aos autistas, os quais propam demandas judiciais que buscavam a renovação do contrato com o Município, para que este voltasse a rear-lhe os recursos pelos serviços por ela prestados. Foram propostas mais de 200 demandas judiciais com tal finalidade. O juízo da 6ª Vara Federal do Ceará concedeu a tutela de urgência e determinou a criação de um fundo à disposição da Vara para que fossem nele depositados 5% para pagamento das dívidas fiscais e trabalhistas, concedendo um prazo para que a Fundação apresentasse um plano de recuperação. Foram reunidas as 19 ações propostas naquela 6ª Vara Federal, mediante negócio processual celebrado entre as partes; as partes escolheram um dos processos como piloto, em cujos autos seriam praticados todos os atos processuais. Em seguida, o juízo encaminhou comunicações aos demais juízos federais do Ceará, propondo-lhes a centralização dos processos: os outros juízos encaminhar-lhe-iam os processos, que ficariam vinculados ao processo-piloto já escolhido. Os outros juízos concordaram com a proposta, encaminhando-lhe os processos. Ao recebê-los, o juízo da 6ª Vara Federal suspendeu todos eles, processando apenas o processo-piloto. Os juízos do trabalho, que conduzem execuções trabalhistas contra a Fundação, também foram oficiados e identificaram aquelas execuções e os respectivos valores, a fim de que os créditos pudessem ser incluídos no plano de pagamento. Após algum tempo, a situação da Clínica melhorou, com o progressivo pagamento das dívidas e extinção de todos os mais de 200 processos sem que tenha havido um único recurso de apelação. A Clínica aumentou o número de atendimentos. Dispositivos normativos concretizados: artigos 69 e 190 do C; Resolução n° 350 do CNJ. Órgão envolvido: 6ª Vara Federal de Fortaleza (vara centralizadora). Responsável: Leonardo Resende Martins.

[6] CABRAL, Antonio do o. Segurança jurídica e regras de transição nos processos judicial e istrativo: introdução ao artigo 23 da LINDB. 2.ed. Salvador: JusPodivm, 2021 e ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 6. ed. SP: Malheiros, 2021.

[7] Adotando-se Fredie Didier Jr e Leandro Fernandez, para quem "as boas práticas na istração da justiça podem ser compreendidas como ações ou comportamentos (no âmbito processual ou istrativo) ou arranjos institucionais direcionados ao aperfeiçoamento da prestação jurisdicional ou os demais serviços da justiça". O CNJ e o Direito Processual  istração judiciária, boas práticas e competência normativa. SP: JusPodivm, 2021. p. 88.

[8] Em conformidade com os arts. 218 e 219 da CRFB/88.

[10] Para aprofundamento acerca da teoria da capacidade institucional, cf. ARGUELHES, Diego Werneck e LEAL, Fernando. O argumento das capacidades institucionais entre a banalidade, a redundância e o absurdo. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, nº 23, ano 2011, Salvador.

[11] Abona-se magistério de CABRAL, Antonio do o. Juiz natural e eficiência: flexibilização, delegação e coordenação de competências no Processo Civil. SP: RT, 2021 e BRAGA, Paulo Sarno. Competência adequada. In Revista de Processo, vol. 219, maio/2013.

[12] A palavra tem ampla utilização nas inovações digitais, mercado disruptivo e deriva do inglês disruption, contudo o sentido empregado aqui é apenas e tão somente o de quebra de continuidade, rompimento com dogmas processuais.

Autores

  • é procuradora regional do Trabalho (8ª Região), doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e professora de Processo Civil na UFPA.

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