A Fazenda Nacional estabeleceu, por meio de recente portaria, novos procedimentos internos em relação a processos criminais. Nesse sentido, a Portaria PGFN nº 12072 [1] estabelece que o órgão poderá solicitar o acompanhamento, como assistente da acusação, de todo o trâmite da ação penal decorrente de representações do Fisco.
A normativa, no entanto, se encontra em dissonância das recentes mudanças promovidas na legislação pátria para limitar a atuação repressiva do poder estatal, a exemplo da Lei nº 14.230/21, que alterou diversas disposições da Lei de Improbidade istrativa. Nesse sentido, a Portaria PGFN nº 12072 se apresenta como mais um mecanismo a gerar desequilíbrios nas relações entre o Estado e seus cidadãos.
Há muito tempo se debate no âmbito da doutrina penal acerca da própria manutenção da figura do assistente de acusação em ações penais. Contudo, muitos doutrinadores sempre se posicionaram pela impossibilidade de órgãos públicos integrarem feitos dessa natureza como parte adesiva. Como assevera Aury Lopes Júnior, assumir posição antagônica é um verdadeiro contrassenso [2].
Primeiro, eventual atuação da Fazenda Nacional como assistente da acusação possui como premissa a pressuposição da negligência ou má atuação do Ministério Público, órgão verdadeiramente incumbido de salvaguardar interesses públicos sob a estrita legalidade. Segundo, institui-se com a portaria inquestionável desequilibro na relação processual: o Estado se torna não apenas acusador, na figura do órgão ministerial, como também assiste a si próprio em sua persecução como parte adesiva.
Além disso, a constitucionalidade da figura da assistência da acusação é repetidamente negada pela doutrinária majoritária do cenário nacional:
"Segundo essa corrente, a inconstitucionalidade se restringe ao fato de que a Constituição da República atribuiu ao Ministério Público a competência 'privativa' para propositura da ação penal, artigo 129, inciso I, e previu uma única exceção no artigo 5º, inciso LIX, na denominada ação penal subsidiária da pública, que nada mais é do que a possibilidade de o ofendido ou seu representante, na inércia injustificada do órgão acusador, propor a competente ação penal, como verdadeiro substituto circunstancial, a fim de salvaguardar o direito a persecução acusatória" [3].
De fato, há diferentes leis penais esparsas que permitem a atuação de órgãos públicos como assistentes da acusação, a exemplo da Comissão de Valores Mobiliários na hipótese da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/86) e outros sujeitos no caso de crimes de responsabilidade (Decreto-Lei nº 201/67). Ocorre que ambas as normas foram inseridas no ordenamento jurídico antes da promulgação da Constituição de 1988 e, portanto, devem se submeter às limitações constitucionais da atuação do poder estatal, pois:
"O Código de Processo Penal reflete em vários de seus artigos o caráter fascista do tempo de sua formulação. A constituição vigente na época era absolutamente rígida e conservadora, permitindo, portanto, a inserção de normas desse cunho. No entanto, com o advento do Estado Democrático de Direitos, através da Constituição de 1988, muitos dos artigos do P não foram recepcionados. Entre eles, está o instituto da assistência à acusação" [4].
Nada obstante, a própria Lei nº 7.492 reconheceu que a hipótese de atuação da CVM como assistente em ações penais constituía exceção à lógica do Código de Processo Penal ao estabelecer que seu artigo 25 se aplicaria "sem prejuízo do disposto no artigo 268 do Código de Processo Penal", o que gera uma presunção de que os órgãos públicos não estariam enquadrados na citada norma.
Ademais, não há de se esquecer das situações paradoxais em que a chancela dessa construção podem criar, como a eventual discordância entre o Ministério Público, na defesa da proteção dos interesses públicos referentes à ordem tributária, e a Fazenda Nacional, também, supostamente, no amparo do mesmo objeto.
Para mais, cabe analisar ainda a ambiguidade do dispositivo legal em exame. Isso porque, ao normatizar a possibilidade de a Fazenda Nacional atuar como assistente da acusação nas ações penais, a Portaria nº 12.072 dispõe, tão somente, que a PGFN adotaria "as medidas necessárias para reparar a lesão causada à Fazenda Nacional". Desse modo, não se precisa especificamente quais delitos seriam iveis de serem assistidos pela figura da assistência da acusação em um eventual processo criminal, elemento de essencial relevância ao tema.
Nesse sentido, não se delimita em quais hipóteses a atuação da Fazenda Nacional ocorrerá, informação relevante posto que dificilmente o órgão conseguirá realizar o acompanhamento de todas as ações penais de interesse fiscal para a União. Omissão que, ainda que se respondida, significará em ação desproporcional do Estado, o qual atuará em feitos que, claramente, terão significância financeira, desequilibrando processos contra acusados mais "vantajosos" do ponto de vista fiscal.
Ante o exposto, evidente que as inovações normativas recém-trazidas pela Portaria nº 12072 da PGFN serão, certamente, alvo de diferentes debates e controvérsias no âmbito da doutrina nacional, sendo possível antecipar que a novidade referente à assistência da acusação no âmbito da Fazenda Nacional colidirá frontalmente com os posicionamentos comungados por parcela majoritária da academia pátria.
Para mais, é certo que ainda é muito cedo para apontar como a portaria será tratada internamente pela Fazenda Nacional, ou como a jurisprudência cuidará desses arroubos estatais. Contudo, considerando os avanços do Direito Penal em face de questões eminentemente tributárias, as perspectivas não são, por óbvio, positivas.
[1] FAZENDA NACIONAL. PORTARIA PGFN Nº 12072, DE 07 DE OUTUBRO DE 2021. Publicado (a) no DOU de 13/10/2021, seção 1, página 181. Disponível em: < http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=121011>. o em 31 de janeiro de 2022.
[2] LOPES JÚNIOR, AURY. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
[3] LOPES JÚNIOR, AURY. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 776.
[4] A FLAGRANTE INCOMPATIBILIDADE ENTRE O INSTITUTO DA ASSISTÊNCIA À ACUSAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Revista Eletrônica do Curso de Direito Da UFSM, [s. l.], v. 3, p. 102-114, Setembro 2008. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article//7021/4239. o em: 4 fev. 2022.