É muito comum aos profissionais do Direito, principalmente àqueles que atuam no cotidiano forense, depararem-se com expressões, trechos ou ensinamentos que se repetem exaustivamente em decisões judiciais.

Uma simples pesquisa no campo da jurisprudência do sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça revela, ao se buscar pelos termos "liminar", "Habeas Corpus" e "excepcional", nada menos que 56.108 decisões monocráticas que empregam enunciados, senão idênticos, muito similares àquele reproduzido acima.
Veja-se que o problema não é, necessariamente, a quantidade de pedidos liminares indeferidos em ações de Habeas Corpus, mas, sim, a constante repetição da fundamentação empregada.
Ao reproduzirem tal agem em seus votos ou decisões, os juízes demonstram recorrer à abstração, como se, de antemão, já tivessem formado sua opinião e tomado um caminho automático em direção ao indeferimento do pedido cautelar, independentemente do caso concreto.
Isso porque, se a concessão de liminar em Habeas Corpus é excepcional, a regra deve ser seu indeferimento, e assim tem-se um argumento pronto para que não seja necessário o enfrentamento mais aprofundado do caso naquele momento — o qual, diga-se, deveria ser tratado com extrema atenção, justamente por se tratar de medida liminar em ação que protege o Direito fundamental à liberdade de locomoção.
Em algumas decisões sobre o tema, o magistrado aplica a suposta excepcionalidade da liminar em Habeas Corpus como fundamento de própria lavra [1], enquanto em outras é feita remissão a precedentes judiciais [2].
Assim, de uma maneira ou outra, a repetição do enunciado se mantém.
O que se depreende desse ciclo é a utilização da jurisprudência como fonte do Direito, o que é perfeitamente itido, mas não pode significar, de forma alguma, que precedentes escapam do juízo de legitimidade.
Não é porque um magistrado fez essa ou aquela afirmação que, a partir de então, poderão as cortes do país ar a invocá-la de modo inquestionável — ressalvadas as hipóteses de precedentes vinculantes, como se o simples fato de ter vindo do Poder Judiciário fizesse da constatação um acerto, sob pena de se propagar infinitamente um eventual erro.
E isso porque, quanto mais um precedente é citado, maior o número de decisões judiciais ele gera naquele mesmo sentido, levando a uma ainda maior probabilidade de ser mencionado novamente, compondo, assim, um ciclo de argumentação autoafirmativa, que escapa de maiores reflexões sobre seu conteúdo: um simples assopro em determinado caso concreto pode, por essa lógica, tornar-se rapidamente o grito de uma multidão.
À luz dessa crítica, fez-se um exercício tendo por base o tema da excepcionalidade da liminar em Habeas Corpus tratado no início deste escrito: se regredir-se à origem, ando-se de precedente para precedente, pode-se chegar ao embrião da ideia de que "a liminar em Habeas Corpus é medida excepcional"? E, em caso afirmativo, será que tal afirmação ainda encontra e nos dias atuais?
Pesquisando-se decisões recentes pelas palavras-chave já mencionadas, chegou-se aleatoriamente, como ponto de partida, à decisão monocrática do ministro Humberto Martins, proferida no exercício da presidência do Superior Tribunal de Justiça nos autos do HC nº 459.211/RS, em 18 de julho de 2018. Nela, o magistrado afirma que a concessão de liminar em Habeas Corpus é excepcional, e sustenta sua posição mencionando o HC-STF nº 116.638, de relatoria do ministro Teori Zavascki, julgado em 4/2/2013, que faz a mesma afirmação.
Além disso, refere-se naquela decisão o ministro Humberto Martins também ao HC-STJ nº 22.059/SP, de relatoria do ministro Hamilton Carvalhido, cujo voto, publicado em 10/3/2003, também destaca ser a liminar em Habeas Corpus medida excepcional.
A partir daí, pesquisando-se pelas decisões proferidas pelo ministro Hamilton, chegou-se ao HC-STJ nº 11.897/SP, cujo acórdão, publicado em 18/9/2000, faz referência ao ainda mais antigo HC nº 305.376/0, de competência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual o relator paulista também afirmou ser a "concessão de liminar em Habeas Corpus de caráter excepcional". Não foi possível localizar tais autos no sítio eletrônico do TJ-SP para se obter maiores informações acerca de precedentes anteriores a esse.
No entanto, aprofundando-se ainda mais no tema, o professor Nucci, em sua obra intitulada "Habeas Corpus", leciona que "a primeira liminar ocorreu no Habeas Corpus 27.200, impetrado no Superior Tribunal Militar (…), em 31 de agosto de 1964 [3], e que no Supremo Tribunal Federal, no HC 41.296, impetrado por Sobral Pinto em favor do então governador de Goiás Mauro Borges, foi concedida liminar pelo ministro Gonçalves de Oliveira, em 14 de novembro de 1964 [4], sob o argumento de que o habeas corpus, do ponto de vista da sua eficácia, é irmão gêmeo do mandado de segurança. (…) Se o processo é o mesmo, e se no mandado de segurança pode o relator conceder a liminar até em casos de interesses patrimoniais, não se compreenderia que, em casos em que está em jogo a liberdade individual ou as liberdades públicas, a liminar, no habeas corpus preventivo não pudesse ser concedida, principalmente, quando o fato ocorre em dia de sábado, feriado forense, em que o Tribunal, nem no dia seguinte, abre as suas portas" [5].
Chama atenção o fato de as primeiras concessões de liminares em ações de Habeas Corpus remontarem ao longínquo ano de 1964, nada afirmando sobre a excepcionalidade da medida, mas inclusive caminhando em trilha oposta, no sentido de seu perfeito cabimento.
Mas, se na década de 60 foi juridicamente possível sustentar o cabimento da medida liminar em Habeas Corpus, mais ainda o seria com o ar dos anos e o amadurecimento do estado democrático.
Não parece ser o que ocorreu.
Veja-se que, quando dos primeiros deferimentos das medidas liminares em Habeas Corpus, encontrava-se vigente a antiga Lei do Mandado de Segurança (Lei Federal nº 1.533/51), que alterava a disciplina dada àquela ação constitucional tratada no antigo Código de Processo Civil.
Assim, por analogia (artigo 3º do P, vigente desde 1941), nela foram baseadas as primeiras liminares concedidas em Habeas Corpus, com supedâneo em seu artigo 7º, inciso II, que assim dispunha:
"Artigo 7º — Ao despachar a inicial, o juiz ordenará:
II — que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida".
Como se vê, nada sobre a excepcionalidade da medida era mencionado, tratando o legislador apenas da relevância do fundamento e do risco à ineficácia da medida.
Após, o Código de Processo Civil de 1973 ou a prever, de maneira inovadora, em seu artigo 796 e seguintes, as regras do procedimento atinente às medidas cautelares.
Mais uma vez, aplicável ainda por analogia ao processo penal, nada dispunha a lei sobre a excepcionalidade da medida, somente tratando de seus requisitos e finalidades:
"Artigo 798 — Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao Direito da outra lesão grave e de difícil reparação".
Posteriormente, a atual Lei do Mandado de Segurança vigente revogou a anterior, e no ano de 2009, regulamentou o procedimento dessa ação constitucional, trazendo a expressa previsão, em seu artigo 7º, inciso III, da medida liminar:
"Artigo 7º — Ao despachar a inicial, o juiz ordenará:
III — que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica".
Importante relembrar, ainda, que tal dispositivo foi submetido à análise da Suprema Corte pela via do controle concentrado de constitucionalidade (ADI 4.296), em razão da alegada inconstitucionalidade da exigência de caução para a concessão da liminar.
Sobre o tema, pronunciou-se nesta ação direta de inconstitucionalidade nossa mais alta corte: a cautelaridade do mandado de segurança é ínsita à proteção constitucional ao direito líquido e certo e encontra assento na própria Constituição Federal. Em vista disso, não será possível a edição de lei ou ato normativo que vede a concessão de medida liminar na via mandamental, sob pena de violação à garantia de pleno o à jurisdição e à própria defesa do direito líquido e certo protegido pela Constituição. Proibições legais que representam óbices absolutos ao poder geral de cautela.
Como se vê, não somente a nova Lei do Mandado de Segurança nada diz sobre a excepcionalidade da medida, mas a Suprema Corte ainda reafirma explicitamente sua legitimidade como garantia de o à jurisdição e defesa de direitos.
Finalmente, o Código de Processo Civil de 2015 também trata de maneira detalhada e autônoma a concessão de medidas cautelares, em seu artigo 294 e seguintes.
Dispõe o artigo 300 desse diploma:
"Artigo 300 — A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do Direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo".
Também não se observa aqui qualquer agem sobre ter a medida liminar caráter excepcional.
Assim, analisando o tema da liminar em Habeas Corpus por analogia aos antigos e recente Código de Processo Civil, ou pelas Leis do Mandado de Segurança, em momento algum se lê sobre ser a medida excepcional. Pelo contrário, inclusive, conforme se viu do posicionamento da Suprema Corte no julgamento da ADI 4.296.
E a razão disso é evidente: em nada se relaciona a medida liminar com a excepcionalidade, mas tão somente com a presença de seus requisitos autorizadores, a plausibilidade do Direito e o perigo da demora, tudo a fim de preservar o resultado útil do processo, raciocínio que se desenha desde 1964.
Portanto, em algum ponto no tempo entre 1964 e 2000, criou-se e difundiu-se nos tribunais a equivocada ideia de que a medida liminar teria caráter excepcional, sendo até hoje utilizado esse argumento para fundamentar enorme quantidade de indeferimentos de medidas cautelares em ações de Habeas Corpus.
Foi completamente distorcido pelas cortes o fato de a concessão da liminar exigir tão somente a presença de seus requisitos autorizadores, atribuindo-se a isso, erroneamente, o status de medida de exceção.
E para piorar: ainda que nesse lapso temporal tenha sido radicalmente alterado nosso ordenamento jurídico, com a edição de inúmeras novas leis e até mesmo de uma nova constituição democrática, o entendimento jurisprudencial atual sobre a medida liminar se mantém estático, absolutamente anacrônico.
E tudo isso graças a esse ciclo de jurisprudência que se retroalimenta: um erro cometido em algum momento no ado propagou-se de maneira avassaladora, hoje estando presente em dezenas de milhares de decisões judiciais, que, pouco se importando com o conteúdo da ideia, repetem-na como se legítima fosse somente porque fora pronunciada por um magistrado.
Assim, não se pode dizer que os fundamentos empregados por juízes em suas decisões são livres de qualquer análise crítica, pois sua credibilidade não advém apenas do cargo que ocupam, sob pena de se permitir que qualquer equívoco seja validado pelo simples fato de constar em uma decisão judicial.
É preciso dar especial atenção às inovações legislativas e conhecimentos doutrinários como medida de legitimação das decisões judiciais.
Sobre o assunto, para finalizar, traz-se a esclarecedora pesquisa realizada pelo autor Guilherme Brenner Lucchesi, em sua obra "Punindo a Culpa Como Dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil'.
Nela, considerando que uma sentença condenatória foi a pioneira da aplicação da teoria da cegueira deliberada em nosso país, servindo, assim, de precursora para futuras decisões, fica evidente o perigo do fenômeno da jurisprudência que se retroalimenta:
"As decisões proferidas no caso do furto à sede do Banco Central em Fortaleza foram pioneiras no Brasil no tocante à possibilidade de aplicação da cegueira deliberada como critério de responsabilidade criminal subjetiva. Tais decisões pavimentaram o caminho para outros julgamentos lastreados no emprego da cegueira deliberada, que paulatinamente foram se tornando frequentes em nosso país. Assim foram estudadas 65 decisões dos tribunais superiores, dos tribunais regionais e dos tribunais estaduais. (…) A razão para o emprego de tal método decorre da necessidade de submeter à prova a hipótese de que a cegueira deliberada teria sido circunstancialmente utilizada na sentença do citado caso do furto ao Banco Central e a partir de então reproduzida em diversas outras decisões, sem que houvesse uma reflexão madura acerca da necessidade de seu uso e da sua compatibilidade com os Direitos constitucional, penal e processual penal pátrios. (…) Curiosamente, dentre as 65 decisões analisadas, é lamentável constatar o pouco prestígio que é conferido à doutrina. Isso pode ser dito porque em apenas 21 decisões e votos foram citadas obras doutrinárias. (…) Em que pese a existência de escrito doutrinário anterior à primeira decisão judicial aplicando a cegueira deliberada, citado pela própria sentença apontada como pioneira na temática, o texto apenas ganhou repercussão, vindo a ser amplamente citado, após a decisão pela 11ª Vara Federal de Fortaleza no caso furto à sede do Banco Central. Desse modo, percebe-se que, apesar da importância da doutrina enquanto fonte do Direito, sua ampla divulgação tende a ocorrer quando é captada pela jurisprudência, em especial quando é utilizada como fundamento central de um precedente judicial" [6].
Os temas trazidos aqui são apenas dois de muitos tratados pela jurisprudência como consolidados, apenas porque foram anteriormente originados num precedente judicial, sem que maiores reflexões ou pesquisas fossem feitas acerca da idoneidade de sua fundamentação.
Assim, fica claro o problema do enfraquecimento da doutrina, pois o ciclo de retroalimentação da jurisprudência é um fenômeno real, que permite a introdução de conceitos equivocados — e muitas vezes agressivos aos direitos fundamentais — ao Direito pátrio.
[1] STJ – HC nº 721.507/RS, relator ministro Ribeiro Dantas. Dje 08/02/2022.
[2] STJ – Hc nº 459.211/RS, ministro Humberto Martins. Dje 03/08/2018.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Habeas Corpus, 2ª ed., p. 171.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a Culpa como Dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. Ed. Marcial Pons.