A sociedade informacional/digital se caracteriza por consolidar associações unilaterais. Na linguagem dogmática relacionada a proteção de dados pessoais e/ou privacy tem-se que muito chão ainda será preciso percorrer para se chegar a parâmetros normativos ótimos de garantia, proteção e promoção do direito humano e fundamental a proteção de dados pessoais, e dos demais direitos que, de modo conexo e complementar, se encontram para forjar circunstâncias adequadas de proteção.
Como bem recordou o professor Jorge Pereira da Silva, da Católica de Lisboa, em palestra realizada no dia 23 de agosto de 2022, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o direito fundamental à proteção de dados pessoais não se estrutura para proteger os dados pessoais, mas, sim, as pessoas, seus titulares.
Em período eleitoral, evidencia-se a necessidade de se refletir sobre os contornos normativos do referido direito, em suas dimensões subjetiva e objetiva, sobretudo relacionados aos dados pessoais políticos, atrelados à "opinião política" e à "filiação a […] organização de caráter […] político" (artigo 5º, II, Lei 13.709/2018 — LGPD) , que são, a propósito, antepostos como sensíveis, reivindicando níveis de proteção especiais.
Realizando-se um recorte para esse artigo, questiona-se: é válido ao Estado construir um banco de dados [1], seja físico, ou digital, para classificar as pessoas politicamente? Do mesmo lado, é válido aos empreendimentos privados, conglomerados que dominam o setor, realizar esse tipo tratamento de dados pessoais?
Em geral, coloca-se esses comezinhos questionamentos, pois parece estar naturalizada, no Brasil, a prática "privada" de perfilamento e classificação política das pessoas, com a finalidade de disseminação e aperfeiçoamento de marketing político na esfera digital (targeting online ads), em redes sociais e circunstâncias assemelhadas.
Por claro que o assunto necessita de abordagens amplas, de variados ângulos, epistemológicos, políticos, antropológicos, filosóficos, econômicos, históricos, jurídicos etc., inclusive, com formatos distintivos entre tradições e atividades "estatais" e "privadas", e suas possíveis "relações".
De uma paragem constitucional-jurisprudencial, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF), no que diz à prática de classificação política de pessoas pelo Estado, já pôde se manifestar, produzindo indícios semânticos sobre a temática. Fala-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722 [2], que, embora não tenha sido apreciada com um horizonte de "proteção de dados" [3] que, no caso, suscita uma abordagem imperativa sobre a separação informacional de poderes e devido processo informacional [4], resulta como um caso paradigmático sobre o que se está, resumidamente, expondo.
Não se adentrará nas minúcias abordadas na ADPF 722, a qual mostrou-se vinculada à temática de inteligência (de dados) do Estado, em seus limites e finalidades.
Cita-se, todavia, a decisão, que, julgando procedente a referida ADPF, concluiu:
"O Tribunal, por maioria, julgou procedente o pedido formulado na arguição de descumprimento de preceito fundamental para, confirmando a medida cautelar deferida, declarar inconstitucionais atos do Ministério da Justiça e Segurança Pública de produção ou compartilhamento de informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas, as práticas cívicas de cidadãos, servidores públicos federais, estaduais e municipais identificados como integrantes de movimento político antifascista, professores universitários e quaisquer outros que, atuando nos limites da legalidade, exerçam seus direitos de livremente expressar-se, reunir-se e associar-se, nos termos do voto da relatora, vencido o ministro Nunes Marques. Falou, pelo amicus curiae Associação Direitos Humanos em Rede, o doutor Gabriel de Carvalho Sampaio. Afirmou suspeição o ministro André Mendonça. Plenário, Sessão Virtual de 6.5.2022 a 13.5.2022."
Do julgamento em particular, é possível extrair uma preocupação com a classificação política de pessoas, no caso, perpetrada pelo Estado. Encontra-se um ponto de partida jurisprudencial que reivindica reflexões.
Igualmente, como colocado acima, as atividades privadas, na via de prestar serviços de marketing político digital, em vezes, se utilizam de tratamento de dados pessoais, ou não pessoais (essa é uma outra discussão), e de suas características de interseccionalidade, para inferir "conteúdo" político de "seus usuários", por consequência, classificando-os como "x", "a", "b", "c" ou "y". Trata-se de uma prática constitucional/legal? Quais os riscos disso? Se tem notícia de relatórios de impacto sobre essa modalidade de tratamento de dados? Os referidos relatórios preenchem requisitos essenciais? Quais são eles? Os requisitos, por exemplo, para o Brasil, Estados Unidos, Alemanha, China ou França, podem ser encarados com o mesmo cuidado? Para além da doutrina, associações, cidadãos etc. as autoridades estatais deveriam estar se preocupando com isso (e estão?)? É possível "escapar" da normatividade da LGPD, e da Constituição (EC 115, artigo 5º, LXXIX), realizando-se a "anonimização" dos dados pessoais">[5] Para além de outros questionamentos que poderiam ser levantados, centraliza-se: quais as salvaguardas necessárias para que se respeite a normatividade do direito humano e fundamental de proteção aos dados pessoais nesse contexto?
O presente, em sua superficialidade, pode apresentar exageros involuntários e voluntários, mas, o tema, já abordado por melhores mãos, não pode mais ser ignorado, pois, como aduzido na decisão de 1983, do Tribunal Constitucional Federal Alemão, citada em uma miríade de oportunidades – o que não significa que não possa ser esquecido — "não existem mais dados 'insignificantes' no contexto do processamento eletrônico de dados" [6]. Se à esse texto puder ser atribuída a característica de lembrete à essa mensagem, a sua finalidade estará cumprida.
[1] Conceito legal de banco de dados: conjunto estruturado de dados pessoais, estabelecido em um ou vários locais, em e eletrônico ou físico (artigo 5º, IV, LGPD)
[3] No voto vencedor, pronunciado pela ministra Cármen Lúcia, há a apreciação do objeto a partir das condições sugeridas na arguição, de contrariedade a preceitos fundamentais de liberdades de expressão, reunião, associação, inviolabilidade de intimidade, vida privada e honra.
[4] SARLET, Ingo Wolfgang; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales. Separação informacional de poderes e devido processo informacional. Consultor Jurídico. 13 de maio de 2022. Disponível em: /2022-mai-13/direitos-fundamentais-separacao-informacional-poderes-devido-processo-informacional-ordem-juridico-constitucional-brasileira
[6] […] um dado em si insignificante pode adquirir um novo valor: desse modo, não existem mais dados 'insignificantes' no contexto do processamento eletrônico de dados. MARTINS, Leonardo. Tribunal Constitucional Federal Alemão: decisões anotadas sobre direitos fundamentais. Volume 1. São Paulo: Konrad-AdenauerStiftung — KAS, 2016, p. 59.