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Michel Bosso: Narrativas tributárias instrumentos de arrecadação 2h5a1b

19 de junho de 2023, 18h27 1w58b

Por Michel Bosso

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Há décadas se discute a tributação federal  ou não  dos incentivos fiscais relativos ao ICMS, concedidos pelos estados e Distrito Federal. Isso porque, qualquer benefício fiscal, como isenção, redução de base de cálculo ou crédito presumido, reduz o ICMS a ser recolhido e, consequentemente, a despesa com esse imposto, resultando em aumento do lucro apurado.

A Receita Federal quer tributar o aumento do lucro oriundo da redução da despesa com o ICMS, mas a legislação determina que, atendidas a determinadas condições, os valores dos benefícios podem ser excluídos do cálculo do imposto de renda (IRPJ) e da contribuição social (CSLL), das pessoas jurídicas que apurem o chamado "lucro real".

Essa discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que decidiu, em 2018 [1], que o benefício fiscal do ICMS na modalidade "crédito presumido" não poderia ser tributado pela União, através do IRPJ e da CSLL, entre outras razões, por "ofensa ao princípio federativo", pois a União retiraria "por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou".

Atento a essa questão controversa, o Senado incluiu no Projeto de Lei Complementar nº 130/2014, que tratou da guerra fiscal entre as unidades da federação, a previsão para que todos os benefícios fiscais relacionados ao ICMS fossem considerados "subvenção para investimento", já que esse tipo de subvenção já possuía autorização legal para ser excluída da tributação do imposto de renda, conforme disposto no artigo 30 da Lei nº 12.973/2014.

Após longa tramitação desse projeto, foi publicada, em 2017, a Lei Complementar nº 160 afirmando que os incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS são considerados subvenção para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos no citado artigo 30 da Lei nº 12.973/2014.

Ou seja, de um lado o STJ decidiu que o benefício fiscal do ICMS denominado "crédito presumido" não pode ser tributado pela União, através do imposto de renda; por outro lado, a Lei Complementar nº 160/2017 alterou a Lei nº 12.973/2014, para considerar todos os benefícios fiscais do ICMS como subvenção para investimentos, desde que tais valores sejam registrados em reserva de lucros, garantindo que tais recursos, livres de tributação, sejam utilizados em prol da empresa, não podendo ser distribuídos aos sócios, o que tecnicamente se cumpre registrando tais valores em "reserva de lucros" na contabilidade.

Portanto, até aquele momento a questão parecia pacificada… apenas parecia…

Isto porque as discussões no âmbito do Poder Judiciário, bem como no tribunal istrativo da Receita, o Carf, tinham viés amplamente favorável aos contribuintes. O próprio órgão arrecadador reconheceu esse entendimento, com orientação vinculante à fiscalização [2].   

Repentina e sorrateiramente, porém, a Receita mudou seu entendimento no final do mês de dezembro de 2020, aproveitando a distração das festas natalinas, para adicionar, de forma infralegal, outra condição para que os benefícios do ICMS pudessem ser excluídos do lucro real: "a necessidade de que tenham sido concedidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos" [3].

O "bode na sala" estava colocado. Ou seja, a empresa beneficiada por incentivos do ICMS teria de comprovar, além dos requisitos legais, que a concessão da benesse governamental teria ocorrido com a condição vaga e subjetiva de "estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos".

Com vistas a tentar colocar um "ponto final" a essa celeuma, o STJ afetou, em 2023, dois recursos especiais com o chamado rito dos "recursos repetitivos", que visa uniformizar a jurisprudência, cuja decisão e orientações deverão ser seguidas pelas instâncias do Poder Judiciário [4], bem como pela própria Receita Federal, após manifestação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional [5] e pelo Conselho istrativo de Recursos Fiscais (Carf) [6].

A questão submetida a julgamento foi assim delineada:

"Definir se é possível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS,  tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, imunidade, diferimento, entre outros  da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (extensão do entendimento firmado no Eresp 1.517.492/PR que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL)."

Simplificando: se quer saber se o argumento utilizado na decisão do próprio STJ, em 2018, quanto ao tipo de benefício fiscal do ICMS denominado "crédito presumido", se aplicaria aos demais benefícios fiscais, como "isenção, redução de base de cálculo, entre outros".

O julgamento ocorreu em 26/4/2023, apenas com a publicação das teses fixadas, sem maiores detalhes acerca das discussões e da fundamentação dos votos dos ministros da Corte Superior.

Aproveitando-se da densidade do tema e do vácuo de informações acerca do julgamento que se sucedera, o governo federal deu início a sua "narrativa tributária" oficial como instrumento de incremento na arrecadação federal.

"Vitória no STJ é o importante para equilibrar contas públicas, avalia Haddad [7].
Em entrevista à rádio CBN, ministro comemorou liberação da cobrança de tributos sobre benefícios fiscais relacionados ao ICMS; medida abre caminho para aumento da arrecadação e ajuste das contas em 2024."

A reportagem publicada no site oficial do governo federal rapidamente foi replicada pela grande mídia.

"Haddad obtém vitória no STF que pode render R$ 90 bi a arcabouço fiscal"
"André Mendonça, do STF, revogou a suspensão a um julgamento no STJ após receber a visita do ministro" [8]
"Haddad comemora 'vitória' no STJ em caso de benefícios fiscais do ICMS" [9]
"Apesar de suspensa por Mendonça, decisão do STJ é vitória para Haddad"
"
STJ decidiu que a União está autorizada a cobrar IRPJ e CSLL sobre benefícios fiscais concedidos por meio de ICMS" [10]

Ato contínuo ao "bombardeio" de notícias sobre a "vitória de Haddad", alardeada através dos diversos veículos de imprensa, a Receita Federal emitiu comunicado a cinco mil contribuintes, a título de "orientação", oferecendo "oportunidade para regularizar IRPJ e CSLL antes do início dos procedimentos de fiscalização, sem acréscimo de multa moratória (20%) ou de ofício (75% ou mais), até o dia 31/07/2023" [11].

Os contribuintes ficaram em polvorosa. Não sem razão. O tema é deveras complexo e envolve valores relevantes.

Apenas quase dois meses após, em 12/06/2023, foi publicada a íntegra do acórdão e dos votos relativos ao julgamento, cujos contornos indicam que não houve a "vitória" entoada pelo governo e que, certamente, haverá frustração na estimativa de incremento de R$ 90 bilhões na arrecadação federal.

Foram firmadas três teses que pretendem resolver a questão submetida a julgamento, de forma objetiva, motivo pelo qual se deve, para a total compreensão da ratio decidendi, analisar detalhadamente os votos dos eminentes ministros.

Nesse sentido, o voto do ministro relator traz algumas luzes importantes para o correto entendimento do conteúdo das teses e de seu alcance.

A tese nº 1 [12] responde à questão submetida a julgamento, afirmando que não se pode excluir os "demais benefícios fiscais" relacionados ao ICMS (redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros) da apuração do IRPJ e da CSLL aplicando o mesmo entendimento da Corte para os "créditos presumidos" do imposto estadual.

No entanto, os "demais benefícios fiscais" podem ser excluídos quando atendidos os requisitos previstos no artigo 10 da Lei Complementar 160/2017 e artigo 30 da Lei 12.973/2014.

A tese nº 2[13] fulmina a condição vaga e subjetiva imposta pela Receita, através da Solução de Consulta Cosit nº 145/2020, para a fruição da exclusão dos benefícios do ICMS do lucro real, determinando que: "não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos".

A tese nº 3 [14] reafirma o quanto dito na tese anterior, mas prevê a possibilidade da Receita, em procedimento fiscalizatório, verificar a utilização dos valores oriundos de benefícios fiscais do ICMS para "finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico".

Mas qual seria essa "finalidade estranha" a ser verificada em procedimento fiscalizatório?

Ao final de seu voto, na "análise do caso concreto", o relator explica: "Portanto, no caso concreto, devem os autos retornarem à origem para, afastada a exigência de comprovação de que os incentivos foram estabelecidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, verificar se houve ou não a comprovação do registro em reserva de lucros e limitações correspondentes, consoante o disposto expressamente em lei, observando-se os limites da cognição permitida pela lide (mandado de segurança)" [15].

Portanto, à semelhança da verificação a ser realizada pelo TRF-4 por determinação do STJ no caso acima, um procedimento fiscalizatório levado a cabo pela Receita Federal, quanto aos demais benefícios fiscais do ICMS que não o "crédito presumido" [16], deverá:

1) verificar se há comprovação do registro dos valores dos benefícios fiscais do ICMS utilizados como subvenção para investimentos em reserva de lucros, na conta "reserva de incentivos fiscais", como forma de preservar os recursos beneficiados para utilização nas atividades da empresa, conforme descrito em seu objeto social, garantindo, assim, a viabilidade do empreendimento econômico;

2) caso o benefício fiscal do ICMS seja irregular, ou seja, concedido à revelia do Confaz, verificar se houve a publicação, registro e depósito da documentação relativa à benesse, em conformidade com o artigo 3º da Lei Complementar nº 160/2017;

3) se abster de fazer qualquer exigência relacionada à comprovação de que os incentivos foram estabelecidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, ou de outros requisitos ou condições não previstos no artigo 30 da Lei nº 12.973/2014.

Diante de todo o exposto, podemos confirmar que o governo realmente obteve uma vitória no julgamento do STJ: a "vitória de Pirro".

 

[1] No âmbito do Eresp nº 1.517.492/PR

[2] Soluções de Consulta Cosit nº 11 e nº 15

[3] Solução de Consulta Cosit nº 145, publicada em 22/12/2020.

[4] Conforme previsto no artigo 1040 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).

[5] Nos termos dos artigos 19 e 19-A da Lei nº10.522/2002

[6] Nos termos do artigo 62, §1º, II, b, do Regimento Interno do Carf (Portaria MF nº 343/2015),

[12] 1. Impossível excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS, — tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros  da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, salvo quando atendidos os requisitos previstos em lei (artigo 10, da Lei Complementar nº 160/2017 e artigo 30, da Lei nº 12.973/2014), não se lhes aplicando o entendimento firmado no Eresp 1.517.492/PR que excluiu o crédito presumido de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.

[13] 2. Para a exclusão dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS,  tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento, entre outros  da base de cálculo do IRPJ e da CSLL não deve ser exigida a demonstração de concessão como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.

[14] 3. Considerando que a Lei Complementar 160/2017 incluiu os §§4º e 5º ao artigo 30 da Lei 12.973/2014 sem, entretanto, revogar o disposto no seu §2º, a dispensa de comprovação prévia, pela empresa, de que a subvenção fiscal foi concedida como medida de estímulo à implantação ou expansão do empreendimento econômico não obsta a Receita Federal de proceder ao lançamento do IRPJ e da CSSL se, em procedimento fiscalizatório, for verificado que os valores oriundos do benefício fiscal foram utilizados para finalidade estranha à garantia da viabilidade do empreendimento econômico.

[15] Recurso Especial, de nº 1987158/SC, no âmbito do Tema 1182

[16] Os benefícios fiscais do ICMS denominados "créditos presumidos" serão excluídos da apuração do lucro real, base de cálculo do IRPJ e da CSLL, sem qualquer condição a ser observada, nos termos da decisão do STJ no EREsp nº 1.517.492/PR.