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Capítulos de história constitucional: direito e religião (parte 2) 6un6r

15 de dezembro de 2024, 8h22 4z1d5d

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

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Continuação da parte 1

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Nos Embargos Culturais desta semana dou continuidade ao tema do direito e religião, que é inesgotável. Trato hoje sobre as semelhanças que há, do ponto de vista do apego à textualidade. Esse pormenor é um ponto de diferenciação entre as tradições religiosas reveladas (judaísmo, cristianismo e islamismo) e as demais tradições que se espalham pelo mundo, e que historicamente são majoritárias.

O vínculo entre texto escrito e autoridade é notável ponto de interseção entre o direito e a religião, revelando a centralidade do registro textual como fundamento de suas rotinas. Na religião, especialmente no contexto ocidental, a Bíblia emerge como um monumento literário e espiritual, cuja canonização consolidou seu papel como fonte de orientação moral e espiritual.

No direito, os textos normativos estruturam o ordenamento jurídico, proporcionando bases sólidas para o desenvolvimento de sistemas legais. Essa fixação com a mensagem escrita reflete não apenas uma busca por estabilidade e legitimidade, mas também uma necessidade de interpretação constante.

Em uma imaginária tradição judaico-cristã o apego para com os textos bíblicos identifica um ponto de partida fixado em texto escrito. Ampla literatura dá conta da construção de textos reputados como de valor indiscutível. São os chamados textos canônicos.

A valorização dos textos bíblicos, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, reflete compromisso para com a palavra escrita, que assume posição central e sagrada na prática religiosa ocidental. Os textos religiosos não são apenas registros históricos ou literários; são considerados a voz divina, base incontestável de autoridade espiritual e moral que guia e orienta os fiéis.

Esse apego revela-se, por exemplo, nas interpretações rigorosas da Torá pelos judeus e nos Evangelhos pelos cristãos, textos que não só relatam narrativas de origem e redenção, mas que também estabelecem princípios éticos e rituais fundamentais. O apego à literalidade também é influente em algumas fórmulas jurídicas de interpretação. É o originalismo, recorrente no direito constitucional norte-americano.

Os textos bíblicos decorrem de processos de canonização e de proteção, reforçando-se critérios de estabilidade e de autenticidade. A canonização do texto inspira uma devoção que molda tradições e práticas, fixando relação com o sagrado que reverbera, ainda hoje, como compromisso inabalável para com a palavra revelada.

Com alguma variação de pormenor, a Bíblia Católica conta com 73 livros, 46 no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento, a Bíblia Protestante conta com 66 livros, 39 no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento. Exuberante conjunto de escritos de abrangente influência em toda a literatura ocidental, inspiradora de uma arte que se identifica em seus símbolos, referências, identidades e alusões; inegável que a tradição cultural ocidental seja, na essência, também um conjunto de alusões construído em torno do Antigo e do Novo Testamento.

Interpretações comuns j2d36

Direito e religião também dividem preocupações interpretativas comuns, justamente porque são campos epistêmicos que se desdobram a partir de textos escritos. Por exemplo, o tema da livre interpretação da Bíblia, encontrado nas teologias reformadas alemã e calvinista depara, de algum modo, com uma semelhança com o tema da sociedade aberta dos intérpretes da constituição, que define um modelo de interpretação pluralista e procedimental do texto constitucional. É o tema de importante livro de Peter Häberle, publicado no Brasil por Sérgio Fabris, em competentíssima tradução do ministro Gilmar Mendes.

E se os reformadores da Igreja (principalmente Lutero e Calvino) pretendiam desqualificar a interpretação única e exclusiva das autoridades da Igreja de Roma, há também doutrina constitucional que sustenta que os direitos seriam mais bem garantidos na medida em que definidos por atores que não fossem exatamente centrados no Judiciário, especialmente numa corte constitucional com poderes reais de criação de direito não discutido na arena política. É o tema de fascinante livro de Mark Tushnet, “Taking the Constitution away from the Courts”. Desconheço tradução para o português.

A interpretação bíblica, no entanto, qualifica-se por algumas características que o texto constitucional contemporâneo naturalmente não alcança. De fato, a tese da infalibilidade da Escrituras não conta com ideia congênere entre os intérpretes da Constituição, texto recorrentemente alterado, formalmente (emendas) e informalmente (é o tema da mutação constitucional).

Por outro lado, há antinomias na Constituição, do mesmo modo que há também inexatidões nos textos bíblicos, constatações empíricas que não desqualificam ou desafiam a autoridade desses textos. É o caso do criacionismo. Além de variações entre as diversas traduções bíblicas, há discrepâncias, por exemplo, nas várias genealogias do Antigo Testamento, com parentescos estranhos e indicativos de coexistências impossíveis.

O problema da tradução das Escrituras, que é essencialmente um problema hermenêutico, remete-nos, na origem, ao desejo de um rei egípcio, no sentido de conhecer o Antigo Testamento. Conta-nos um dos Pais da Igreja que após a morte de Alexandre, um dos reis Ptolomeus, que vivia no Egito, encarregou 72 homens, versados em hebraico e em grego, para que providenciassem a primeira versão grega do Antigo Testamento; trata-se da Versão dos Setenta.

Sobre esse tema intrigante, Agostinho de Hipona (354-430), cheio de entusiasmo, registrou agem frequentemente relembrada e reproduzida em nossa tradição cultural universal, isto é “conta-se que na tradução houve unanimidade tão maravilhosa, tão estupenda e tão plenamente divina, que, havendo-a feito cada um deles em separado (assim quis Ptolomeu provar-lhe a fidelidade), coincidiram de tal modo tanto no sentido como nas palavras, que parecia obra de um tradutor só”.

Escritos teológicos percebem duas naturezas na Bíblia: humana e divina; tomando-se como referência aquela primeira, humana, tão somente, deve-se levar em conta que há distanciamentos temporais, contextuais, culturais, linguísticos e autorais que exigem do intérprete cautelas e fórmulas de leitura e de compreensão que não são necessárias na exegese constitucional.

A análise das semelhanças e diferenças entre o apego ao texto na religião e no direito revela uma dinâmica complexa de autoridade e interpretação. Enquanto a religião atribui às Escrituras um caráter divino e infalível, o direito opera dentro de um campo de constante mutabilidade, reflexo das necessidades e transformações sociais.

Essa relação evidencia como ambos os campos, direito e religião, apesar de suas diferenças, recorrem ao texto escrito como alicerce para sustentar valores, moldar práticas e responder aos desafios do tempo.