Nos últimos anos, as autoridades antitruste ao redor do mundo parecem ter escolhido um novo alvo para as suas investigações: os mercados de trabalho. No entanto, a aplicação das regras de concorrência nos mercados de trabalho ainda parece ser incipiente em muitas jurisdições. E no Brasil, o Conselho istrativo de Defesa Econômica (Cade) tem aderido à tendência global e considerado esses mercados como objeto do Direito da Concorrência? Quais práticas desse mercado podem ser consideradas como violações antitruste e quais regras de análise têm sido aplicadas: per se ou regra da razão? Existe alguma racionalidade pró-competitiva nesses tipos de práticas?
No início de outubro deste ano, a Superintendência-Geral do Cade (SG/Cade) instaurou dois processos istrativos visando a apurar a prática de condutas anticompetitivas consistentes em trocas de informações comerciais sensíveis sobre o mercado de trabalho. Ambos os processos investigam o compartilhamento de informações como, por exemplo, salários atuais, vales (alimentação, refeição e transporte), planos de saúde, seguros, bônus e benefícios diversos.
Segundo a SG/Cade, tais condutas teriam sido viabilizadas por meio de grupos de cooperação, que alegadamente conduziam suas atividades de maneira institucionalizada através de encontros periódicos presenciais e de plataformas virtuais, bem como por meio de trocas sistemáticas de informações concorrencialmente sensíveis, principalmente por meio de pesquisas enviadas por e-mails, via website e em grupo de WhatsApp.
A partir da análise das informações públicas disponibilizadas até então, as duas investigações parecem ter sido segmentadas pelos diferentes períodos de duração das condutas, pelos diferentes grupos de cooperação envolvidos e pelos tipos de empresas investigadas. O Processo istrativo nº 08700.000992/2024-75 investiga supostas condutas praticadas entre 1994 e o início de 2021 por empresas do setor de produtos de consumo mediante o denominado Grupo de Empresas de Consumo (Gecon). Já o Processo istrativo nº 08700.001198/2024-49 apura a prática de condutas entre 2004 e o início de 2021 por empresas multinacionais através do Grupo Executivo de Salários (GES) e do Grupo Executivo de es de Benefícios (GEAB).
Para a SG/Cade, essas condutas teriam o efeito de limitar e dificultar a livre concorrência entre empregadores na disputa para contratação e manutenção da força de trabalho disponibilizada no mercado de trabalho brasileiro com potenciais impactos que recaem especialmente sobre a força de trabalho sujeita a um grupo de empresas com alcance nacional.
Defesa da concorrência 5n706
Como se sabe, a Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência) trata da prevenção e repressão de infrações contra a ordem econômica, visando a garantir a livre concorrência e combater o abuso de poder econômico para manter a competitividade do mercado. Isso resulta em menores preços, maior variedade e qualidade de produtos, além de estimular a inovação.
Logo, conforme leciona Hovenkamp[1], assim como o exercício de poder de mercado na venda elevam preços para consumidores, a concentração de poder na compra de insumos laborais também pode prejudicar as condições profissionais e salariais. Embora a Lei Antitruste seja mais aplicada ao mercado de produtos, ela também abrange a compra de insumos, como o trabalho, e o Cade, bem como outras autoridades antitruste, ou a investigar práticas com possíveis efeitos anticompetitivos nos mercados de trabalho.

O trabalho pioneiro mais notável foi realizado pelas autoridades dos EUA. A Federal Trade Commission (FTC) e o Department of Justice (DOJ) emitiram, em 2016, a Antitrust Guidance for Human Resource Professionals[2], uma orientação antitruste para profissionais de recursos humanos (RH), alertando sobre acordos que possam reduzir a concorrência em relação a salários, condições de trabalho e contratação. A orientação estabelece que empregadores concorrentes no mercado de trabalho são considerados competidores, independentemente de seus produtos ou serviços.
De acordo com o paper, a livre concorrência entre empregadores traz benefícios aos trabalhadores, como melhores salários e condições de emprego, assim como a concorrência entre vendedores beneficia consumidores com preços mais baixos e produtos de melhor qualidade. A competitividade no ambiente de trabalho também pode gerar bens e serviços mais inovadores e eficientes.
Diretrizes similares relacionadas a práticas trabalhistas também foram publicadas, por exemplo, pelas autoridades de concorrência do Japão (Study Group on Human Resource and Competition Policy, 2018), de Hong Kong (Competition Commission Advisory Bulletin, 2018), de Portugal (“Acordos no mercado de trabalho e política de concorrência — Issues Paper”, de setembro 2021), do Reino Unido (Guidance Employers advice on how to avoid anti-competitive behaviour, 2023) e do Canadá (Enforcement Guidelines on wage-fixing and no poaching agréments, 2023), bem como a Nota da OCDE Competition Concerns in Labour Markets, de 2019.
Tratamento do antitruste 2l1k57
Assim, muito embora ainda prevaleça o desequilíbrio entre o tratamento do antitruste em relação a mercados de produtos e em relação ao mercado de trabalho, tal cenário vem se alterando nos últimos anos. Verifica-se uma concordância cada vez maior de que a concorrência deve abordar de forma mais incisiva as preocupações com o poder de monopsônio no mercado de trabalho não só através da publicação dos guias supramencionados, como também com o recente surgimento de novas investigações e aplicações de sanções indicam a intensificação da aplicação da legislação antitruste no mercado de trabalho em diferentes jurisdições.
Em 2023, a Autoridade da Concorrência Belga acusou empresas do mercado de serviços de segurança por implementar acordos de não contratação e a Autoridade da Concorrência da Turquia multou 16 empresas também por acordo de não contratar funcionários umas das outras. Em 2022, a autoridade romena anunciou investigação de sete empresas de engenharia automotiva por suposto acordo de não-contratação (no-poach) e conduta de fixação de salários. Em 2021, a agência húngara multou uma associação de recrutamento em 2,8 milhões de euros por impor regras que estabeleciam acordos de proibição de contratação. Em 2020, o Conselho da Concorrência da República da Lituânia abriu uma investigação em um suposto acordo anticompetitivo entre clubes da Liga de Basquete Lituano sobre conduta de compartilhamento de informações confidenciais sobre os salários dos jogadores. Em 2017, a autoridade sa multou três fabricantes de pavimentos em mais de 300 milhões de euros devido a um acordo de proibição de contratação e troca de informações sobre salários, como parte de um acordo de cartel mais amplo. Em 2016, a autoridade italiana multou oito agências de modelos em 4,5 milhões de euros por acordos de fixação de salários[3].
Nesse sentido, nos parece claro que os mercados de trabalho podem ser objeto do direito da concorrência, mas quais são as práticas trabalhistas que podem ser consideradas violações antitruste?
As condutas horizontais nos mercados de trabalho consistem em:
- (i) acordos de limitação ou fixação de salários ou outros termos/elementos de remuneração (wage-fixing agreements);
- (ii) acordos de não contratação ou solicitação de funcionários de outra empresa (no-poaching agreements), que consistem em práticas trabalhistas que podem gerar maiores preocupações competitivas;
- (iii) a conduta autônoma de troca de informações trabalhistas sensíveis para coordenar parâmetros competitivos.
Acordos de remuneração 6x3mj
Em relação aos acordos de fixação de remuneração, entende-se que concorrentes que cheguem a um acordo em relação a qualquer aspecto ou elemento da remuneração de seus funcionários estão fixando o preço da mão de obra e, nesse sentido, incorrendo na infração de cartel. Logo, esse tipo de conduta é considerado como infração por objeto no ordenamento brasileiro, assim como pelas autoridades de concorrência do Japão, de Hong Kong e dos EUA, de acordo com as diretrizes dos guias mencionados acima, que determinam a aplicação da regra per se para esses casos.
Já com relação aos acordos de não contratação, trata-se de um tipo de conduta colusiva na qual empresas concordam em se abster de solicitar, contratar ou recrutar trabalhadores umas das outras, essencialmente renunciando à competição por este insumo (a força de trabalho). Conforme explica Hovenkamp[4], esses acordos se assemelham a um pacto de divisão de mercado no âmbito dos produtos. Por esse motivo, são também classificados como cartéis clássicos. Assim, considerando que os acordos para não contratar trabalhadores apresentam poucas ou nenhuma justificativa pró-competitiva, além de impactarem significativamente a mobilidade laboral, eles também são considerados ilícitos por sua própria natureza, submetidos à análise per se.[5]
Por último, as trocas de informações comercialmente sensíveis envolvem situações nas quais se verifica o compartilhamento entre competidores de informações que poderiam impactar em suas decisões competitivas no mercado de trabalho em questão. Logo, quando os dados reados não estão inseridos em um contexto mais amplo de fixação de preços (nessa hipótese, salários e/ou outros elementos de remuneração) ou de divisão de mercado, enfrenta-se a troca de informações sobre termos de trabalho como uma conduta autônoma em que, a depender da natureza e do conteúdo da informação e seu uso, pode ter efeitos anticompetitivos[6].
Nesse sentido, diferentemente dos acordos explícitos de fixação de salários e de não contratação, o guia estadunidense estabelece que essa conduta não é considerada ilegal per se e não está sujeita a persecução criminal naquele país. Assim, deve ser analisada pela chamada regra da razão, dependendo das especificidades de cada caso.
Esse também tende a ser o entendimento a ser adotado pela autoridade antitruste brasileira tendo em vista as manifestações da SG/Cade nos únicos três processos istrativos que tratam de condutas nesse mercado. Nesse sentido, o acordo de troca de informações entre concorrentes, embora não seja um ilícito per se, pode ser uma infração concorrencial quando tem — ou provavelmente teria — um efeito anticompetitivo, isto é, “[a] troca de informações sensíveis sobre termos e condições de trabalho pode representar uma conduta anticompetitiva no contexto em que é usada por empregadores para diminuir e uniformizar salários de determinada categoria de empregados[7]“.
No entanto, aplicando-se a regra da razão como regra de análise da conduta autônoma de troca de informações trabalhistas, é possível que investigados aleguem e comprovem a existência de uma racionalidade pró-competitiva e a ausência de efeitos anticompetitivos da conduta investigada.
Lógica de competição do mercado 3u5x1n
Embora seja imprescindível a repressão de condutas colusivas consistentes em wage-fixing agreements e no-poaching agreements, é possível se sustentar que o compartilhamento de informações e práticas de RH, em especial o benchmarking de RH, pode possuir uma lógica pró-competitiva no mercado de trabalho. Essa prática pode ser reconhecida como uma ferramenta valiosa para alinhar empresas às melhores práticas, ajudando na captação e retenção de funcionários, na melhoria da satisfação e produtividade, bem como na redução tanto de custos de transação quanto da assimetria de informações no mercado de trabalho.
Um estudo empírico de Cullen, Li e Perez-Truglia[8], com base em dados americanos, demonstrou que o benchmarking pode levar a aumentos nos salários para posições de menor especialização e melhorar a retenção de funcionários pelas empresas, gerando economias nos custos de contratação e treinamento.
Considerando essas e outras nuances a serem devidamente analisadas nas investigações instauradas pelo Cade, é extremamente relevante que a autoridade de defesa da concorrência analise os casos de compartilhamento de informações sobre mercados de trabalho sob a perspectiva da regra da razão. Ou seja, avaliando as especificidades do caso e os possíveis efeitos sobre os mercados afetados para determinar se as informações foram usadas para alinhar estratégias de RH de maneira pró-competitiva ou não.
[1] HOVENKAMP, Herbert. Competition Policy for Labour Markets. Escola de Direito da Universidade da Pensilvânia, Instituto de Direito e Economia, Artigo de Pesquisa nº 19-29, 2019, p. 3.
[2] Disponível em: https://www.justice.gov/atr/file/903511/dl.
[3] BANK, Jeffrey C. et al. Antitrust and Labor Issues Around the World: A Comparative Analysis, Vol. 36, No. 3, Summer 2022 by the American Bar Association, tradução nossa). Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/antitrust_law/resources/magazine/2022-summer/antitrust-labor-issuesaround-world/.
[4] Op. cit. HOVENKAMP, p. 5.
[5] De fato, a US HR Guidance estabelece que os acordos explícitos de fixação salarial e de não contratação de funcionários são considerados ilegalidades per se segundo as leis antitruste dos EUA e, portanto, sujeitos a processos criminais no país. Por outro lado, segundo a US HR Guidance, acordos de não-concorrência que sejam órios a transações corporativas (por exemplo, a criação de t ventures) ou resultantes de relações verticais (como franquias) podem ser analisados pela regra da razão, de modo que a possível ilegalidade da prática dependerá do equilíbrio entre sua justificativa econômica e seus efeitos anticompetitivos reais ou potenciais no mercado de trabalho.
[6] No ordenamento jurídico brasileiro, a troca de informações concorrencialmente sensíveis sobre termos de trabalho, como uma conduta autônoma, podem se enquadrar no art. 36, § 3º, II, da Lei nº 12.529/2011, na medida em que promovam ou influenciem a adoção de uma conduta uniforme ou concertada entre concorrentes. Ademais, em alguns casos, a depender da natureza e do conteúdo da informação e do uso (por exemplo, o valor do salário de um determinado cargo em uma determinada empresa usado para embasar decisões individuais que levem a paralelismo no mercado) pode não ser sequer necessária a comprovação de efeitos da prática, visto que a potencialidade de efeitos anticompetitivos pelo compartilhamento desses dados já é suficiente para violar a lei antitruste. Tal constatação, reforça a conclusão de que a conduta, nos termos da jurisprudência do CADE em relação à influência à adoção de conduta uniforme, também pode estar sujeita à ilicitude pelo objeto, nos termos da doutrina europeia. Isto porque, nesses cenários, mesmo ausente o acordo expresso, o efeito anticompetitivo de uniformização do mercado é equivalente ao da coordenação colusiva.
[7] ATHAYDE, Amanda; DOMINGUES, Juliana; SOUZA, Nayara. 10 anos da lei 12.529/2011: os avanços no debate que resultaram na incontornável interface entre concorrência e trabalho. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 1, p. 52, 2022.
[8] CULLEN, Zoe; LI, Shengwu; PEREZ-TRUGLIA, Ricardo. What’s My Employee Worth? The Effect of Salary Benchmarking. National Bureau of Economic Research Working paper series. Disponível em: https://www.nber.org/system/files/working_papers/w30570/w30570.pdf.