Em meio aos muitos assuntos do nosso dia a dia profissional, surgem alguns mais interessantes que nos inspiram a escrever e compartilhar. Um desses assuntos é a tributação dos contratos de conta corrente pelo Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), que deverá ser apreciada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) no julgamento de REsp nº 2.127.919/RS.
Há ainda muita confusão sobre um tema que nos parece ter premissas teóricas muito claras e que possibilitam a solução das controvérsias de forma bastante objetiva e satisfatória. Não podemos confundir “alhos com bugalhos”.
Transferência de recursos entre empresas intragrupo 4553h
De início, ressaltamos que é comum em grupos econômicos a realização de transferências recíprocas de recursos financeiros entre empresas. Essas operações têm finalidades múltiplas, dentre as quais se destacam a gestão eficiente de recursos e a otimização do fluxo de caixa das empresas, que oscilam de acordo com o nicho de atuação de cada empresa integrante do grupo.
O grupo econômico é como um ecossistema. Essa é uma realidade empresarial, e não uma artificialidade, com repercussões não apenas financeiras e societárias, mas também tributárias.
Breves considerações sobre o IOF 3y1i4s
De competência privativa da União, o IOF está previsto no artigo 153, V, da Constituição, mas sua instituição encontra como marco legal a Lei nº 5.143/66, a qual estabeleceu que o imposto incide “nas operações de crédito e seguro, realizadas por instituições financeiras e seguradoras” (artigo 1º, caput).
A Lei nº 9.779/99, por meio de seu artigo 13, estendeu a abrangência do IOF, de forma a tornar pessoas jurídicas não-financeiras como contribuintes sujeitos ao imposto, determinando a incidência sobre “operações de crédito correspondentes a mútuo de recursos financeiros entre pessoas jurídicas (…) segundo as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas pelas instituições financeiras”.
Como explica o professor Marcus Abraham, as operações que configuram o fato gerador do IOF “se materializam por negociações realizadas através de contratos de crédito, câmbio, seguro, ouro e títulos e valores mobiliários” [1].

No exercício da competência constitucional, verifica-se que houve a opção legislativa de, em relação às operações de crédito concedido por pessoas jurídicas não financeiras, limitar a incidência do IOF às hipóteses de mútuo. Essa interpretação é ratificada pelo Ato Declaratório nº 30/99, por meio do qual a Receita Federal esclareceu que o “IOF previsto no artigo 13 da Lei nº 9.779, de 19 de janeiro de 1999, incide somente sobre operações de mútuo que tenham por objeto recursos em dinheiro, disponibilizados sob qualquer forma, e quando o mutuante for pessoa jurídica” (artigo 1º).
Está nesse ponto o cerne da discussão, já que é necessário analisar se há a ocorrência do fato gerador do IOF no caso de contrato de conta corrente.
Distinção entre contrato de conta corrente e de mútuo 1h5u3h
O contrato de mútuo pressupõe a entrega efetiva de coisa fungível, a qual deverá ser devolvida pelo mutuário com acréscimo de juros ou não, estando assim caracterizada sua natureza unilateral e real [2].
Já contrato de conta corrente serve à gestão de um caixa único, por meio do qual as partes facultativamente realizam lançamentos e se obrigam a escriturar créditos e débitos, assumindo idênticas posições em relação a deveres e direitos, o que confere ao contrato natureza comutativa, bilateral e consensual. Trata-se de um contrato típico, expressamente previsto no artigo 4º, §2º, ‘b’, da Lei do Cheque [3].
De acordo com Fran Martins, o conta corrente “é o contrato segundo o qual duas pessoas convencionam fazer remessas recíprocas de valores sejam bens, títulos ou dinheiro, anotando os créditos daí resultantes em uma conta para posterior verificação do saldo exigível, mediante balanço” [4].
Uma importante distinção do contrato de conta corrente é a exigibilidade do saldo somente na liquidação da conta [5], não havendo que se falar na figura de credor e devedor ao longo da vigência do contrato.
Por fim, Galdino e Schoueri reforçam que os dois negócios jurídicos são inconfundíveis em razão de sua finalidade, pois “[E]nquanto a causa do mútuo reside no uso e disponibilidade de um bem fungível, sendo que a propriedade sobre ele é transferida ao mutuário, a causa do contrato de conta corrente está em facilitar as relações negociais entre as partes mediante uma conta comum (caderneta), cuidando das entradas e saídas de créditos e débitos (bens, serviços, dinheiro etc.), que porventura venham a ocorrer” [6].
Logo, a incidência de IOF sobre os contratos de mútuo, por si só, não justifica a cobrança do imposto sobre os contratos de conta corrente, sendo necessária a análise da adequação dessa espécie de contrato à matriz de incidência do imposto.
Controvérsia à luz da jurisprudência 143u7
A incidência do IOF sobre a escrituração de créditos e débitos, com base em contrato de conta corrente, é questão controvertida no Conselho istrativo de Recursos Fiscais (Carf) desde longa data [7].
Não é raro encontrar na jurisprudência istrativa o entendimento de que o contrato de conta corrente seria uma junção entre o contrato de mútuo e o de mandato, por meio do qual o mutuário/mandatário realizaria o pagamento das despesas em nome do mutuante [8].

Por outro lado, há decisões tecnicamente relevantes que ressaltam que os recursos financeiros das empresas controladas que circulam nas contas da controladora não constituem de forma automática a caracterização de mútuo, especialmente diante da existência e do cumprimento dos requisitos do contrato de conta corrente entre as empresas do grupo econômico para operacionalizar a gestão de caixa único (cash pooling) [9].
Por ocasião do julgamento do RE nº 590.186/RS, em Repercussão Geral (Tema nº 104), o ministro relator trouxe importante consideração ao afirmar ser relevante o argumento levantado pelos amici curiae, no sentido de que “o IOF não poderia incidir sobre contratos de conta corrente entre empresas de um mesmo grupo econômico, mediante a reunião de seus caixas individuais em um caixa único, ao qual todas têm o para o pagamento de gastos e realização de investimentos”, diferenciando-se do mútuo.
Este ano, foi submetido ao STJ ao menos um recurso especial que tratou dessa exata controvérsia (REsp nº 2.127.919/RS), cujo mérito ainda não foi objeto de julgamento. O tema foi igualmente suscitado no RE nº 1.209.149/RS, mas se entendeu, em decisão monocrática, que as operações que teriam gerado a incidência do IOF não estariam abarcadas em contrato de conta corrente, mas em contrato para cessão de crédito com características de mútuo.
Conclusão 4n2wp
É evidente que o contrato de conta corrente deve ser tratado como figura própria — com natureza de contrato bilateral, comutativo e consensual —, e não como uma combinação de outras figuras contratuais.
Nessa linha, a definição do contrato de conta corrente como uma junção de mútuo e mandato parece ser uma construção artificial cuja única finalidade seria justificar a incidência do IOF. Afinal, como visto, não há a figura do mútuo, tal como definido pela legislação aplicável, no contrato de conta corrente, não caracterizando o fato gerador do IOF, como estabelecido pelo artigo 13 da Lei nº 9.779/99.
O recente pronunciamento do STF, no Tema 104 de Repercussão Geral, é relevante para o debate, uma vez que trouxe luz para a natureza jurídica do contrato de conta corrente, em que pese não ter sido esse o objeto de julgamento e análise. Ainda assim, as decisões proferidas nos tribunais superiores até o momento não adentraram no mérito da questão.
Por fim, a despeito de consideráveis avanços jurisprudenciais e doutrinários, é inegável que a confusão em relação à natureza jurídica dos contratos de conta corrente ainda prejudica, infelizmente, a obtenção de um consenso sobre a não incidência do IOF sobre essas operações.
[1] Abraham, Marcus. Curso de direito tributário – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 348.
[2] O artigo 586 do Código Civil estabelece: “Art. 586 O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.”
[3] Nesse sentido: SCHOUERI, Luís Eduardo; GALDINO, Guilherme. IOF sobre Mútuo de Recursos Financeiros abrange Contratos de Conta Corrente? Revista Direito Tributário Atual nº 53. ano 41. p. 261-302. São Paulo: IBDT, 1º quadrimestre 2023. p. 278.
[4] MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais, 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. P.366.
[5] Nos moldes dispostos no §2º do artigo 4º da Lei do Cheque.
[6] Op. cit. p. 282.
[7] CARF. Processo nº 10980.726938/2011-81 – Acórdão nº 3401-010.529 – 3ª Seção de Julgamento / 4ª Câmara / 1ª Turma Ordinária; CARF. Processo nº 10480.730388/2016-41 Acórdão nº 3301005.647 – 3ª Câmara / 1ª Turma Ordinária; CARF. Processo nº 13855.721879/2018-55 – Acórdão nº 3201-009.809 – 3ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária; CARF. Processo nº 10980.727509/2018-06 – Acórdão nº 3301-013.475 – 3ª Seção de Julgamento / 3ª Câmara / 1ª Turma Ordinária; CARF. Processo nº 10480.725910/2014-19 – Acórdão nº 3402-009.581 – 3ª Seção de Julgamento / 4ª Câmara / 2ª Turma Ordinária; Processo nº 13227.720870/2016-61 – Acórdão nº 3201-010.568 – 3ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária.
[8] CARF. Processo nº 10580.722670/2017-15 – Acórdão nº 9303-012.914 – CSRF / 3ª Turma.
[9] CARF. Processo nº 11060.722406/2011-10 – Acórdão nº 3402005.232 – 4ª Câmara / 2ª Turma Ordinária.