Os artigos 37, V, da Constituição da República, e 115, V, da Constituição do estado de São Paulo, dispõem que “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”.
Trata-se de normas que excepcionam a regra constitucional da investidura nos quadros da istração Pública mediante concurso público (cf. artigo 37, II, da Constituição da República), instrumento que confere efetividade aos princípios da igualdade, impessoalidade, moralidade e eficiência.
Alicerçado no sistema do mérito, garante a seleção dos candidatos mais aptos ao exercício de cargos, funções e empregos públicos. Entretanto, algumas especificidades exigidas no desempenho de certas ocupações resultam na sua inadequação como melhor método para o seu preenchimento. Em determinadas hipóteses, em virtude de atribuições atinentes à função pública, a escolha do servidor deve recair sobre pessoa de confiança do governante. Daí a previsão constitucional de cargos comissionados e de funções de confiança destinados, apenas, às atribuições de direção, chefia e assessoramento.
Para Cármen Lúcia Antunes Rocha [1], “função de confiança é aquela que se caracteriza por ser destinada ao provimento de agentes que atendem a uma qualidade pessoal que o vincula, direta e precariamente, a determinadas diretrizes políticas e istrativas dos governantes em determinado momento”.
“Assim, o elo de vinculação pessoal identifica o agente que é indicado para o exercício da função e denota a sua ligação com a política ou com as diretrizes istrativas estabelecidas.”
Orientação jurisprudencial do STF 5t6u6b
Outra não é a orientação jurisprudencial do STF (Supremo Tribunal Federal), ao realçar o componente pessoal da relação entre nomeante e nomeado:
“Cargos em comissão e funções de confiança pressupõem o exercício de atribuições atendidas por meio do provimento em comissão, que exige relação de confiança entre a autoridade competente para efetuar a nomeação e o servidor nomeado.” (ADI 3.145)
É a presença das atividades de direção, chefia e assessoramento e do vínculo de lealdade ou fidelidade pessoal que legitima a criação de cargos comissionados e funções de confiança, na quantidade e nas situações legalmente assentadas pelos entes federados.
Por conseguinte, pode-se afirmar, inequivocamente, que a criação de cargos comissionados e funções de confiança para o desempenho de funções técnicas, burocráticas e operacionais, na ilustrativa e pedagógica expressão utilizada pelo STF (ADIs 3.706 e 4.125 e RE 1.041.210 RG [2]), não encontra resguardo constitucional, porquanto não apresenta qualquer especificidade diferenciadora a justificá-la. Tais funções devem ser exercidas por servidores titulares de cargos efetivos, sem quaisquer ônus remuneratórios adicionais ao Estado, como o pagamento de gratificações.
Requisitos para criação de cargos e funções de confiança o3k5k
A excepcionalidade da inexigibilidade de concurso público demanda, pois, a sua plena demonstração por parte do legislador, mediante a descrição na lei das atribuições correspondentes aos cargos comissionados e às funções de confiança, única forma possível de aferir o cumprimento da Constituição (STF, ADI 3.233), de controlar a criação de funções e cargos simulados, de verificar a ocorrência de desvios de função e de finalidade, de garantir que sejam aplicadas aos seus ocupantes as normas istrativas, trabalhistas e previdenciárias apropriadas para as posições, de fato, exercidas, e, principalmente, de assegurar que somente sejam previstos cargos comissionados e funções de confiança para atividades de direção, chefia e assessoramento, e não para o desenvolvimento de atribuições rotineiras, próprias de cargo efetivo — o que representaria patente burla à exigibilidade de concurso público e à partilha funcional de encargos.
Dessa forma, a omissão da lei quanto à especificação das ocupações funcionais e sua necessidade para o funcionamento istrativo culmina na inconstitucionalidade por ação do que restou ali contemplado, em nítida fuga do regime jurídico especial relativo a cargos comissionados e funções de confiança constitucionalmente estabelecido.
A designação de servidor para o exercício de funções de confiança implica, obrigatoriamente, a assunção de outras atribuições (de direção, chefia e assessoramento). Todavia, a criação injustificada, inespecífica e indiscriminada dessas funções, sobre culminar na inconstitucionalidade da lei instituidora, tende, no mundo fenomênico, a acarretar desequilíbrios, distorções e descontinuidades funcionais na istração Pública, em prejuízo à regular prestação de serviços, e, no âmbito da Advocacia Pública em especial, tem o condão de afetar a eficiência da defesa judicial e das atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Estado (cf. artigos 131 e 132 da Constituição), em vista do desfalque e da consequente sobrecarga de trabalho dos procuradores que remanescem em exercício nos cargos efetivos, além de comprometer a independência técnica profissional, imanente à Advocacia.
Lei Orgânica da PGE e o posicionamento do TJ-SP 50733l

Para ilustrar a relevância do assunto, cabe registrar que, em 2017, foi ajuizada ação direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) [3], a fim de questionar a validade jurídico-constitucional da Lei Complementar Estadual nº 1.270, de 2015 — Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Lopge) —, que criou diversas funções de confiança, sem, contudo, descrever as suas respectivas atribuições [4].
A omissão em questão — argumentou o autor da ação — obviamente não podia ser suprida por decreto ou por outro ato infralegal, não obstante o artigo 73 da lei impugnada prescrever: “Caberá ao Conselho da Procuradoria Geral do Estado deliberar sobre a fixação das atribuições das funções de confiança previstas nesta lei complementar, mediante proposta do Procurador Geral” [5].
A descrição das atribuições de direção, chefia e assessoramento é, constitucionalmente, matéria reservada com exclusividade à lei formal — indelegável, portanto, a atos istrativos normativos infralegais.
A respeito, o Órgão Especial do TJ-SP, por unanimidade, já havia decidido: a) “não pode a lei delegar competência reservada a ela pela Constituição do Estado para decreto estabelecer as atribuições dos cargos” (ADI nº 9056304-85.2008.8.26.0000); e b) “A definição das atividades e condições de exercício dos cargos de provimento em comissão devem ser expostas na própria lei que os criou” (ADI nº 2227159-41.2016.8.26.0000).
Relativamente à criação de funções de confiança, outro precedente do Órgão Especial do TJ-SP [6], também por unanimidade, pontificava:
a) “No caso em apreço, observa-se que os artigos impugnados não descrevem as atribuições conferidas às referidas funções de confiança, a serem contempladas pelo adicional instituído, o qual, da mesma forma, não conta com parâmetros fixados para sua concessão (…)”; e
b) “Dessa forma, não há como se aferir se as funções gratificadas pelas Leis Complementares 63/05 e 64/05, do Município de Cajamar, são funções que se revestem de típicas atribuições de direção, chefia e assessoramento, ou se consistem apenas em atividades burocráticas, técnicas ou profissionais que independem de vínculo de lealdade ou fidelidade com o superior hierárquico”.
Malgrado esses e outros precedentes e todo o arcabouço jurídico-constitucional aqui exposto, o TJ-SP julgou improcedente o pedido aduzido na ADI contra a Lopge sob os seguintes fundamentos — que são relevantíssimos citar, porquanto podem inspirar más legislações estaduais e municipais sobre Advocacia Pública:
“(…) em relação às funções de confiança, que só podem ser exercidas por servidores de carreira, não é preciso todo esse rigor no que se refere à descrição solene e individual de cada uma das atribuições.
Na verdade, a descrição continua sendo necessária, porém, é possível que o preenchimento desse requisito seja aferido com base no contexto da lei ou do ordenamento jurídico, considerando inclusive as atribuições dos respectivos órgãos istrativos, sem excesso de formalismo, diante da finalidade (menos abrangente) da exigência.
(…)
Como se nota, portanto, as funções de confiança (…) têm suas atribuições identificadas na própria lei 1.270/2015, por meio da descrição das tarefas dos respectivos órgãos istrativos, daí o reconhecimento de improcedência da ação (…)” (sem grifos no original).
Vencida, a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, em declaração de voto, asseverou que a ausência de explicitação das funções do agente junto ao órgão, “em um primeiro momento, impede que seja verificada que a função de confiança tenha sido criada dentro das situações constitucionalmente permitidas e, num segundo momento, a fiscalização da regularidade do ato istrativo atinente ao provimento da função de confiança, na medida em que, sendo desconhecidas as funções a serem desempenhadas (parâmetro), não há como fiscalizar se a função de confiança fora posta nas mãos de agente que reúne as características inerentes a ela”.
Politização e engajamento partidário da Advocacia Pública 255w6x
Não obstante a divergência jurisprudencial — mantida, dentre vários outros, no julgamento da ADI nº 2103399-74.2024.8.26.0000 [7] —, é de rigor, a fim de evitar o desvirtuamento da natureza jurídica do cargo de Advogado Público, que as leis instituidoras de cargos comissionados e funções de confiança no âmbito da Advocacia Pública atentem para a minudente especificação das relevantes e necessárias atribuições de direção, chefia e assessoramento inerentes a tais espécies de provimento e para a demonstração da efetiva necessidade da sua instituição, além da necessária proporcionalidade do número de comissionados em relação ao número de ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os criar.
Funções de confiança e cargos comissionados servem à finalidade pública, não a deleites ou privilégios. Constituem exceção e não a regra no serviço público. A regra é a predominância de cargos efetivos, a efetividade do provimento de cargos, a estabilidade e a segurança funcional dos servidores públicos, e não a alternância e a instabilidade imanentes a cargos e funções de confiança.

A propósito, o comissionamento desregrado, infundado, irrazoável ou excessivo [8] pode conduzir à politização da Advocacia Pública, à sua transformação em instituição de governo, em virtude de seu engajamento partidário na realização de políticas públicas, no assessoramento e consultoria jurídica e na defesa judicial e extrajudicial do Estado e seus agentes [9]. Afinal, como preleciona Márcio Cammarosano [10], o “comprometimento político”, a “fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos” e a “lealdade pessoal à autoridade superior” é que caracterizam e animam o provimento comissionado.
Ademais, comissionamentos desse jaez podem resultar no desvirtuamento de função pública, em razão da hierarquização e burocratização indevidas da relação funcional entre os advogados públicos, relação que deve ser, pela sua natureza, coordenativa, técnica e horizontal, pautada pelo dever de eficiência istrativa, a reverenciar a igualdade entre profissionais dotados da mesma capacidade e de independência e a estimular não a subordinação — que é absolutamente imprópria![11] —, mas a cooperação, a parceria e a interação técnica entre membros de carreira típica de Estado constitucionalmente preordenada a precatar, empreender e defender o interesse público.
Aliás, como bem esclarecem os arts. 6º, caput, e 31, § 1º, da Lei federal nº 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a hierarquia é estranha à instituição da advocacia, e “o advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância”.
[1] Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 177 (sem grifos no original).
[2] Neste sentido, a tese firmada pelo STF no julgamento de mérito de tema de repercussão geral: “I – A criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais; II – Tal criação deve pressupor a necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado; III – O número de cargos comissionados criados deve guardar proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os criar; IV – As atribuições dos cargos em comissão devem estar descritas, de forma clara e objetiva, na própria lei que os instituir” (Tema 1010 – RE 1.041.210 RG).
[3] ADI nº 2248498-22.2017.8.26.0000.
[4] Entre os dispositivos questionados, o art. 72, II e III, diz constituírem funções de confiança privativas de Procurador do Estado as de Procurador do Estado Coordenador Geral de istração, Procurador do Estado Coordenador dos Órgãos de Apoio, Procurador do Estado Ouvidor Geral, Procurador do Estado Assessor, Procurador do Estado Assessor Chefe e Procurador do Estado Assistente. Mas não há, no dispositivo em referência, nem em qualquer outro, a especificação dos encargos relativos às aludidas funções.
[5] ados mais de 9 (nove) anos de vigência da LOPGE, aludido Conselho ainda não deliberou sobre o assunto.
[6] ADI nº 2184155-17.2017.8.26.0000.
[7] Ementa do acórdão: “1. Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo contra dispositivos da Lei n. 517/2022 do Município de Barretos. 2. Criação de cargos comissionados e de funções de confiança. Ausência de atribuições típicas de chefia, direção e assessoramento. Inconstitucionalidade configurada. 3. Função criada sem descrição legal de suas atribuições. 4. Inteligência de tese fixada no STF, em julgamento de repercussão geral (Tema 1010). Ofensa aos artigos 111, 115, II e V e 144, todos da Constituição Bandeirante. 5. Modulação dos efeitos da decisão determinada, em razão da segurança jurídica e irrepetibilidade dos valores recebidos ressalvada. 6. Ação julgada procedente, com modulação de efeitos e ressalva quanto à irrepetibilidade” (sem grifos no original).
[8] “Uma estrutura de confiança política muito alargada – observa Aldino Graef – inevitavelmente desestrutura o funcionamento das organizações públicas, causa descontinuidade e ineficiência istrativa, além de constituir-se em elemento de permeabilidade excessiva que favorece os grupos de interesses e, até mesmo, a corrupção. A profissionalização da istração, essencial para sua modernização e melhoria da eficiência, da eficácia e da efetividade da ação istrativa, implica necessariamente na redução da estrutura de cargos de direção providos por critérios de confiança política” (Cargos em comissão e funções de confiança: diferenças conceituais e práticas, in Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental, vol. 7, nº 2, jul./dez. 2008, p. 67).
[9] A Lei Complementar paulista nº 1.400, de 6 de junho de 2024, disciplina a representação judicial e extrajudicial de agentes públicos do Poder Executivo, no âmbito da istração Pública direta e autárquica, exceto das universidades públicas, nos seguintes processos e procedimentos, relativos a atos praticados no exercício regular do cargo, emprego ou função: a) ações judiciais de natureza cível; b) ações judiciais de natureza penal; c) processos istrativos; e d) procedimentos preliminares de cuja conclusão possa resultar a propositura das ações a que se referem as alíneas a e b (cf. artigo 1º).
[10] Provimento de cargos públicos no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 95.
[11] A propósito, o saudoso publicista Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma, com acerto, que os advogados públicos não estão funcionalmente subordinados a qualquer Poder do Estado. O que existe, segundo ele, “são relações legalmente definidas, que são incompatíveis com a subordinação funcional”. “Nem mesmo em relação ao Chefe dos órgãos colegiados das procuraturas – complementa – existe hierarquia funcional: apenas istrativa” (As funções essenciais à justiça e as procuraturas constitucionais, in Revista de Informação Legislativa, a. 29, n. 116, out./dez. 1992, p. 96).