A hermenêutica jurídica nunca foi tão maltratada. Na calada da noite de 28 de março de 2025, o governo Meloni promulgou o Decreto-Lei nº 36/2025, perpetrando não apenas uma ruptura com a tradição jurídica italiana, mas um autêntico “parricídio normativo”. Ora, o que é este decreto senão o assassinato do próprio pai jurídico da cidadania italiana — o princípio do jus sanguinis que há mais de um século definia a identidade jurídica dos italianos?

Não estamos diante de ajustes técnico-procedimentais, mas de uma verdadeira revolução paradigmática imposta sem transição democrática. Trata-se de uma ruptura unilateral do pacto tácito entre a Itália e sua diáspora, aquele que mantinha unidos, pelo liame jurídico da cidadania, os italianos peninsulares e os descendentes da grande emigração histórica.
Triângulo contextual: demografia, nacionalismo e securitização 266a13
Não existe interpretação sem pré-compreensão, nos lembra Lenio Streck sempre em seus diversos textos publicados no Conjur e em seus livros. E a pré-compreensão deste decreto está ancorada em um triângulo contextual que precisa ser explicitado: a crise demográfica europeia (o “inverno demográfico”), o neonacionalismo político e a obsessão securitária contemporânea.
A Itália enfrenta o envelhecimento populacional, baixa taxa de fecundidade e a ascensão de um governo de matriz nacionalista-identitária que busca redefinir o pertencimento nacional em termos excludentes. A istração Meloni, com sua retórica de “Italians first”, transforma a cidadania em problema de segurança nacional, subordinando direitos fundamentais a considerações contingentes de política.
Presenciamos uma metamorfose constitucional silenciosa — a transição de uma concepção de cidadania baseada na herança sanguínea (jus sanguinis) para outra fundamentada no controle territorial (jus territorialitatis). Tal transição não é feita pela via constitucionalmente adequada, mas através de um instrumento excepcional que deveria servir apenas para situações emergenciais.
Ficção jurídica da ‘não-aquisição retroativa’: sofisma normativo 2p2d4r
O cerne operativo do decreto encontra-se no artigo 1º, que insere o novo artigo 3-bis na Lei nº 91/1992, estabelecendo que:
“é considerado nunca ter adquirido a cidadania italiana quem nasceu no exterior mesmo antes da data de entrada em vigor do presente artigo e possui outra cidadania…”
Esta construção linguística esconde uma contradição performativa profunda. Ao estabelecer que determinadas pessoas são “consideradas nunca ter adquirido” um status que, segundo a interpretação jurídica consolidada, já possuíam, o decreto tenta contornar a proibição de retroatividade prejudicial através de uma ficção jurídica indefensável.

Ora, uma norma jurídica não pode retroagir para negar a existência de fatos jurídicos já consumados sob a égide do ordenamento anterior. Ao pretender que certas pessoas “nunca adquiriram” a cidadania que já era reconhecida como sua, o decreto incorre em uma contradição normativa — a tentativa de negar, por via normativa, um fato jurídico já consolidado pelo próprio sistema.
Data-limite fatal: paroxismo da desproporcionalidade 5m6c6h
O decreto estabelece como data-limite fatal o dia 27 de março de 2025 (até as 23h59) para a apresentação de requerimentos istrativos ou judiciais, data anterior à própria publicação do decreto. Uma análise que até um estudante de primeiro período de direito faria mostra que esta previsão falha em todos os critérios de proporcionalidade:
- Não é adequada, pois estabelece uma data-limite já ultraada quando da publicação da norma, criando uma situação juridicamente impossível;
- Não é necessária, pois objetivos istrativos poderiam ser alcançados com um prazo razoável após a publicação do decreto;
- Não é proporcional em sentido estrito, pois o sacrifício imposto aos direitos individuais é manifestamente excessivo.
Mesmo em situações extremas como conflitos territoriais, os prazos para opção de nacionalidade são tipicamente contados em meses ou anos, não retroativamente. Isto não é simplesmente desproporcional — é o Estado descaradamente zombando da segurança jurídica, criando uma norma com efeitos praticamente instantâneos e retroativos.
Exceções à regra geral: insuficiência e arbitrariedade 46448
As exceções ao decreto (pedidos já apresentados até a data-limite de 27 de março de 2025; filhos de italianos natos; filhos de quem residiu na Itália por dois anos; netos de avós nascidos na Itália) são manifestamente insuficientes e arbitrárias.
Não há justificativa substancial para limitar o reconhecimento a filhos de nascidos na Itália, mas não a bisnetos; ou para exigir dois anos contínuos de residência parental, e não um ou três. Estas distinções criam um sistema de privilégios e exclusões que dificilmente se sustentaria sob escrutínio de proporcionalidade.
Restrições probatórias: a barreira processual intransponível 3671j
O decreto modifica o regime probatório das ações de reconhecimento, excluindo a prova testemunhal e o juramento, além de impor ao requerente o ônus de provar fatos negativos — a inexistência de causas de perda da cidadania.
Esta inversão constitui o que chamamos de “probatio diabolica” — a prova impossível. Como demonstrar a inexistência de um fato? Como provar que algo não ocorreu? Esta exigência viola o princípio da igualdade de armas no processo e cria um desequilíbrio injustificado em favor do Estado.
Múltiplas inconstitucionalidades do decreto 213772
O decreto colide frontalmente com diversos princípios fundamentais:
- Princípio da igualdade (artigo 3º da Constituição italiana): Ao discriminar descendentes de italianos com base apenas no local de nascimento, o decreto estabelece um critério arbitrário de diferenciação.
- Princípio da solidariedade (artigo 2º): O rompimento abrupto do vínculo com descendentes de emigrantes contraria a dimensão intergeracional deste princípio estruturante.
- Princípio da proteção da identidade cultural (artigos 6º e 9º): A italianidade da diáspora constitui patrimônio cultural que o Estado deveria proteger, não extinguir.
- Princípio da proporcionalidade: As restrições impostas falham manifestamente no teste de adequação, necessidade e proporcionalidade.
No plano europeu, o decreto viola limites à discricionariedade estatal em matéria de nacionalidade estabelecidos pelo TJUE nos casos Micheletti e Rottmann, comprometendo a efetividade da cidadania europeia como estatuto fundamental.
No contexto internacional, o decreto aproxima-se perigosamente da proibição de privações arbitrárias de nacionalidade protegida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e viola o princípio da confiança legítima.
Entre o sangue derramado e a esperança constitucional 6l636z
O que revela-se, para além do debate técnico-jurídico, é uma profunda crise de identidade do Estado italiano, que oscila entre sua herança como “pátria expandida” e suas aspirações contemporâneas como “fortaleza territorial”. Esta crise não será resolvida por decretos de urgência ou ficções jurídicas, mas exige um amplo debate sobre o significado da cidadania em tempos de globalização.
A Constituição não é apenas um texto normativo, mas um processo cultural vivo. A “italianidade constitucional” não pode ser definida por decreto, mas deve emergir de um diálogo contínuo entre cidadãos, instituições e comunidades diversas.
Para os milhões de descendentes que agora veem seu vínculo jurídico com a terra ancestral em risco, resta a esperança de que a robusta tradição constitucional italiana e europeia prevaleça sobre o oportunismo político do momento. Que o sangue italiano — metáfora de uma ligação que transcende fronteiras e gerações — não seja derramado no altar do nacionalismo territorial. Que a promessa de uma Itália plural, solidária e aberta ao mundo não seja sacrificada por um decreto que, em sua pressa e desproporcionalidade, trai o próprio espírito da Constituição.
É isso. Onde está a Constituição neste decreto? Como diria Lenio Streck ( creio, eu!): onde está Wally?“