O Código de Processo Penal disciplina a prova testemunhal entre os artigos 202 e 225. Dentre as disposições que tratam da matéria, consta no artigo 213 que “o juiz não permitirá que a testemunha apresente apreciações pessoais, salvo quando inseparáveis da narrativa do fato”. Da inteligência da norma, afere-se, portanto, que é relevante ao processo tão somente a descrição do fato que a testemunha presenciou, sendo impertinente qualquer consideração pessoal alheia que não diga respeito àquilo que apreendeu pelos sentidos.
Por essa razão, ao trabalhar a conceituação da chamada testemunha indireta, aquela que não presenciou os fatos, mas soube deles por intermédio de terceiros, a corrente doutrinária majoritária entende ser reduzido ou inexpressivo seu valor probante. Para Gustavo Henrique Badaró:
“A ‘testemunha por ouvir dizer’ não pode ser aceita como verdadeira prova testemunhal, mas sim como uma ‘prova de segunda mão’. Devem, segundo Bento de Faria, ‘ser consideradas elementos indignos de informação, sem o caráter de testemunho’. Tal elemento de informação pode ser válido para que se descubra a fonte da prova originária, isto é, a testemunha presencial, e produzir esta prova em juízo. Entretanto, a testemunha indireta não é prova válida para o juiz formar seu convencimento. A ‘testemunha de ouvir dizer’ não tem nenhuma responsabilidade por seu testemunho, mesmo que ele não corresponda à verdade. Além disso, seu depoimento, quanto ao fato, não poderia ser explorado contraditoriamente, pois ela não é fonte originária dos fatos” [1].
No mesmo sentido, posiciona-se Fernando da Costa Tourinho Filho. Conforme leciona, a testemunha indireta
“é a testemunha de auditu, ou ‘testemunhos de ouvir dizer’. Quanto a estes, hearsay is no evidence, os americanos não lhe dão valor. E o art. 129 do P português dispõe não servir como meio de prova o testemunho de pessoa que não indicar a fonte pela qual tomou conhecimento do ocorrido. Em última análise, trata-se da proibição da testemunha ‘por ouvir dizer’” [2].
Tal posicionamento foi parcialmente acolhido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que entende que nem mesmo a decisão de pronúncia — que exige um standard de prova menor do que a decisão condenatória —, pode basear-se exclusivamente em testemunhos indiretos. Nesse sentido:
“DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. DESPRONÚNCIA. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. AGRAVO PROVIDO.
I. Caso em exame
1. Agravo regimental interposto contra decisão que deu provimento ao agravo ministerial, mantendo a pronúncia da agravante em ação penal por homicídio qualificado tentado, com base em depoimento judicial que a apontava como mandante do delito.
2. A decisão de pronúncia foi fundamentada em depoimentos indiretos e em um único depoimento que foi posteriormente retratado em juízo, sem outros indícios suficientes de autoria colhidos na fase judicial.
II. Questão em discussão
3. A questão em discussão consiste em saber se a decisão de pronúncia pode ser mantida com base em depoimentos indiretos e em um depoimento retratado, sem outros indícios suficientes de autoria.
III. Razões de decidir
4. A decisão de pronúncia não pode se basear exclusivamente em depoimentos indiretos e em um depoimento retratado, sem outros indícios suficientes de autoria, conforme jurisprudência reiterada.
5. A ausência de indícios suficientes de autoria na fase judicial impõe a despronúncia da agravante, aplicando-se o princípio do in dubio pro reo.
6. A decisão de pronúncia deve ser fundamentada em indícios convincentes de autoria, não se contentando com meras suspeitas ou possibilidades.
IV. Dispositivo e tese
7. Agravo provido.
Tese de julgamento: ‘1. A decisão de pronúncia não pode se basear exclusivamente em depoimentos indiretos e retratados, sem outros indícios suficientes de autoria. 2. A ausência de indícios suficientes de autoria impõe a despronúncia’.
Dispositivos relevantes citados: P, art. 414, parágrafo único.
Jurisprudência relevante citada: STJ, AgRg no HC 676.342/RS, Sexta Turma, DJe 28/8/2024.” (STJ. AgRg no AgRg no HC nº 920.481/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 1/4/2025, DJEN de 30/4/2025).
A tese exarada no julgado exposto prestigia o que há de mais relevante em matéria de epistemologia da prova. Com efeito, o testemunho “por ouvir dizer” esvazia a possibilidade de contraditório. Se a testemunha narra ao juiz o fato que apreendeu pelos sentidos, não é possível atestar a confiabilidade da apreensão fática quando ela foi realizada apenas por terceiro.

Para Rafael Ayala Yancce, a informação fornecida por uma testemunha indireta carece de qualidade, pois, não tendo presenciado o evento diretamente, ela conhece apenas uma parte da história — frequentemente manipulada ou distorcida por quem a relatou, especialmente quando essa narração ocorre enquanto a testemunha apenas ouve, sem interagir ou participar do diálogo [3].
Distinguishing 6h6r1c
Não obstante, embora reconheça as razões apresentadas acima, recentemente o Superior Tribunal de Justiça realizou um distinguishing de seu posicionamento.
Julgando um caso em que testemunhas indiretas relataram que as pessoas que presenciaram o fato não testemunharam por medo de ameaças de terceiros, a Corte da Cidadania, à primeira vista, entendeu que, nessa hipótese, excepcionalmente o testemunho indireto pode ser valorado pelo julgador para manter a condenação dos acusados. Vejamos:
“PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. JÚRI. CONDENAÇÃO. ALEGAÇÃO DE EXISTÊNCIA EXCLUSIVA DE TESTEMUNHOS DE “OUVIR DIZER”. TESTEMUNHOS AFIRMANDO QUE A COMUNIDADE POSSUI PAVOR DO DENUNCIADO. CRIME ENVOLVENDO CONFLITO COM O TRÁFICO DE DROGAS. DISTINGUISHING. EXCEPCIONALIDADE QUE JUSTIFICA A INEXISTÊNCIA DE DEPOIMENTOS DE TESTEMUNHAS OCULARES DO DELITO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. A quebra da soberania dos veredictos é apenas itida em hipóteses excepcionais, em que a decisão do Júri for manifestamente dissociada do contexto probatório, hipótese em que o Tribunal de Justiça está autorizado a determinar novo julgamento. E, como é cediço, diz-se manifestamente contrária à prova dos autos a decisão que não encontra amparo nas provas produzidas, destoando, desse modo, inquestionavelmente, de todo o acervo probatório.
2. Segundo entendimento desta Corte Superior, o testemunho de “ouvir dizer” ou hearsay testimony não é suficiente para fundamentar a condenação. É que o testemunho indireto (também conhecido como testemunho de “ouvir dizer” ou hearsay testimony) não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu. Sua utilidade deve se restringir a apenas indicar ao juízo testemunhas referidas para posterior ouvida na instrução processual, na forma do art. 209, § 1º, do P (AREsp 1940381/AL, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, 5ª TURMA, julgado em 14/12/2021, DJe 16/12/2021).
Precedentes.
3. No presente caso, verifica-se que apesar de nenhuma testemunha ocular ter sido ouvida perante o juízo, diante das peculiaridades do caso, entendo não assistir razão à defesa, isso porque, extrai-se dos autos que todas as pessoas da comunidade tinham medo dos envolvidos. A testemunha velada nº 01, em sessão plenária, registrou ter recebido ameaças pela sua condição; o genitor da vítima informou que uma senhora lhe relatou que seu filho viu o momento da execução, mas que não o permitiu testemunhar, acrescentando que várias pessoas no local foram agredidas para não prestarem testemunho; a genitora do ofendido esclareceu que várias pessoas presenciaram o delito, tendo sido algumas ameaçadas no bairro a não prestar depoimento, e outras agredidas.
4. Conforme observado nos esclarecimentos testemunhais, a autoria do crime foi indicada por diversos populares, que não prestaram depoimento devido ao medo de represálias. Essas informações foram comunicadas ao primeiro policial que chegou à cena do crime e aos pais da vítima. Como é de conhecimento geral, em crimes envolvendo conflitos com o tráfico de drogas, o receio de represálias dificulta a obtenção de informações de possíveis testemunhas oculares, algo confirmado pelos depoimentos das testemunhas veladas e pelas contundentes declarações dos pais da vítima.
5. Portanto, embora a jurisprudência desta Corte Superior considere insuficiente o testemunho indireto para fundamentar a condenação pelo Tribunal do Júri, excepcionalmente, o presente caso, devido à sua especificidade, merece um distinguishing. Extrai-se dos autos que a comunidade teme os recorrentes, visto que eles estão envolvidos com o tráfico de drogas, com atuação habitual na região, razão pela qual as pessoas que presenciaram o crime não se dispam a testemunhar perante as autoridades policiais e judiciais.
6. Agravo regimental não provido.” (AgRg no REsp n. 2.192.889/MG, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 18/3/2025, DJEN de 26/3/2025).
O precedente em questão, de pronto, indica a tendência do Poder Judiciário, movido por pressão popular, de abrir mão da técnica em detrimento de um enrijecimento da persecução penal contra organizações criminosas, que, de fato, provocam temor na população e por vezes inviabilizam a apuração dos fatos pelos órgãos competentes. Não obstante, é necessário realizar uma análise mais profunda da ratio decidendi do julgado, seja para analisá-lo com justiça, seja para evitar aplicações errôneas do precedente.
Em seu voto, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, transcreveu a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo para manter a condenação, na qual levou-se em consideração que as testemunhas relataram: (1) que a vítima sofreu ameaças de um dos réus dias antes do crime, (2) que um dos acusados contraiu dívida de drogas com a vítima executada, dona de uma “boca de fumo”, (3) que foram ameaçadas por serem testemunhas e (4) que várias pessoas no bairro foram ameaçadas e agredidas para não testemunhar. Em seguida, o voto prossegue alegando que “considerando as peculiaridades do caso concreto”, excepcionalmente o testemunho indireto pode ser utilizado como meio de prova quando há receio por parte das testemunhas diretas em testemunhar, por medo de represálias dos acusados.
Fator subjetivo 235e3o
Todavia, embora a conclusão do voto leve a essa interpretação, o testemunho indireto não foi o único elemento de prova considerado pelas instâncias inferiores para manter a condenação dos réus. Na verdade, a fundamentação constante no acórdão destoa da abordagem mais técnica que costuma adotar o ministro Reynaldo. Analisando os elementos de prova elencados, o “medo” ou “temor” que a população nutre pelos réus não foi (ou ao menos não deveria ser) o fator juridicamente determinante para a condenação, e não deveria ter recebido o destaque que recebeu no acórdão.
A expressão, como posta, abre margens para interpretações equivocadas. Medo ou temor é um fator subjetivo. Como consequência do aspecto estigmatizante do processo penal, é comum que a sociedade tenha medo de alguém acusado por homicídio, mormente quando, em conjunto, há a acusação de que o réu integra facções criminosas. Esse fator, isoladamente, não deveria ser levado em consideração, por depender de fatores incontroláveis e não aferíveis objetivamente.
A situação é diferente, claro, quando o réu dá motivos concretos para esse temor, como aparentemente é o caso analisado no AgRg no REsp nº 2.192.889/MG. Mas ainda assim, é necessário ter cautela na valoração dessa prova.
Em primeiro lugar, é importante frisar que, nessas hipóteses, não se deve valorar o hearsay testimony, visto que, pelas razões já abordadas, é absolutamente imprestável como meio de prova. O que se deve valorar é o testemunho direto da testemunha que recebeu ameaças por imputar o crime ao réu. Ainda que a imputação do crime derive de fontes indiretas, a imputação das ameaças deriva de um conhecimento direto da testemunha, podendo, logo, ser levado em conta na decisão.
Sem embargo, é imprescindível que, no caso concreto, as ameaças provenham do réu ou estejam a ele associadas e que existam outros elementos de prova aptos a confirmar a autoria delitiva, pois a ameaça, por si só, não é indicativo seguro da autoria do crime investigado. Réus inocentes, temendo uma condenação, podem ameaçar testemunhas, sobretudo quando já são conhecidos pela prática de crimes. Ainda que haja um histórico de delitos associado ao réu, o direito penal democrático trabalha somente os fatos, e não com a condução de vida do autor.
Essas duas balizas são fundamentais para que o testemunho “por ouvir dizer” não sustente uma condenação por homicídio. O arcabouço probatório deve ser vasto e coerente para sustentar a condenação, e a ameaça proferida contra as testemunhas, no contexto exposto acima, deve ser um dentre vários elementos de prova aptos a confirmar a autoria delitiva, pois é temerário que uma condenação tão grave derive apenas de provas artificialmente indiciárias, sobretudo no contexto do julgamento por leigos, que ocorre no Tribunal do Júri.
O que não se pode ter é, sob o pretexto de enfrentamento de organizações criminosas, a valoração de testemunhos indiretos, como dá a entender o acórdão divulgado no informativo do Superior Tribunal de Justiça. É compreensível, em um país subjugado por organizações criminosas das mais diversas, a crescente pressão popular por um enfrentamento rigoroso das facções. Mas tal competência é alheia ao judiciário. A segurança pública é dever e responsabilidade do executivo, e somente do executivo.
Voltando ao caso abordado no AgRg no REsp nº 2.192.889/MG, as testemunhas relataram fatos que presenciaram diretamente e que ocorreram antes do crime (dívida por drogas do réu com a vítima) e depois do crime (ameaças) que possibilitaram reconhecer a autoria delitiva, sem que a condenação se baseasse no testemunho indireto.
Infelizmente, em tempos de análise rasa dos precedentes dos tribunais superiores, há grandes chances do julgado ser mal interpretado, e orientar pronúncias e condenações baseadas exclusivamente em testemunhos por ouvir dizer, em parte pela atecnia do relator ao formular seu voto e acórdão.
[1] BADARÓ. Gustavo Henrique. Processo Penal. 9. Ed. São Paulo: Thompson Reuters, 2021. p. 556.
[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 3. 32. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. pp. 339-340.
[3] AYALA YANCCE, Rafael. Credibilidad testimonial del testigo en el proceso penal. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 453-480, jan./abr. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i1.246. o em: 23 maio 2025.