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Entraves ameaçam ordem de Dino para desapropriar terras incendiadas 416b21

16 de maio de 2025, 8h58 j95m

Por Rafael Neves

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A ordem do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, para desapropriar terras atingidas por incêndios dolosos ou desmatamento ilegal esbarra em entraves jurídicos e econômicos. A decisão veio no âmbito de um pacote de medidas para coibir queimadas, que tendem a aumentar a partir deste mês, mas deve enfrentar obstáculos como, por exemplo, a dificuldade na constatação do dolo nas queimadas, avaliam especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

A decisão foi fundamentada nos artigos 184 e 186 da Constituição. O primeiro estabelece que a União deve desapropriar, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. O segundo afirma que a função social é cumprida quando há “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”, entre outros requisitos. Entidades ligadas ao agronegócio manifestaram preocupação com o posicionamento do ministro.

Incêndio na zona rural de Tefé (AM), em 2024: STF costura medidas para combater problema

Na visão de Dino, o desrespeito ao meio ambiente justifica a desapropriação da terra por interesse social. “A preservação ambiental revela-se componente indispensável à regular fruição do direito de propriedade, cuja validade constitucional está condicionada ao cumprimento de sua função social”, escreveu.

Dino adotou a medida depois de consultar a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-geral da República e os governos dos estados localizados na Amazônia Legal e no Pantanal, que tiveram um aumento expressivo das queimadas no ano ado.

Estes dez governos estaduais são partes na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 743, que determinou uma série de providências do poder público para prevenir e combater os incêndios florestais no país.

Base legal

Segundo a decisão de Dino, as terras queimadas ou desmatadas ilegalmente deverão ser desapropriadas “quando a responsabilidade do proprietário esteja devidamente comprovada”. Não está claro, porém, se essa comprovação se dará por meio de um processo criminal, ou se bastará uma punição nas esferas civil ou istrativa.

Para o advogado Talden Farias, professor de Direito Ambiental, um proprietário só poderia ser responsabilizado por meio de uma sentença criminal transitada em julgado. “A decisão do ministro fala em ‘incêndio doloso’. E o dolo não se infere, ele só pode ser constatado a partir de um processo judicial com ampla defesa.”

O advogado avalia que a decisão de Dino tem fundamento constitucional, mas que a falta de uma lei específica pode dificultar sua aplicação. “Seria razoável que houvesse tratamento jurídico adequado e específico, que definisse o momento em que se poderia aplicar a pena”, explica.

“A interpretação do ministro é acertada, desde que se preserve o contraditório e a ampla defesa”, diz a advogada Letícia Bellesia Cavalli, especialista em Direito Fundiário. “Como essa decisão ainda está pendente de regulamentação, não temos as bases para dizer como os proprietários serão responsabilizados”, diz.

Segundo Letícia, a determinação de Dino ainda precisa de tempo e aperfeiçoamento para sair do papel. “Quando essa decisão foi noticiada, ela foi vista por produtores rurais como uma ordem imediata do ministro para desapropriar todos os negócios envolvidos em incêndio e desmatamento. Mas tudo isso carece de lapidação”, observa.

Fiscalizar e punir

Os advogados entrevistados pela ConJur avaliam que o Brasil não tem, até o momento, ferramentas para identificar e responsabilizar os autores das queimadas. “Quando ocorre uma queimada, uma perícia policial tem, em muitos casos, como aferir se foi um incêndio voluntário ou não. Então, tecnicamente, é possível apurar. Mas nem sempre isso resolve. Às vezes, a própria perícia é inconclusiva, ela fica em dúvida. E essa dúvida deve beneficiar o proprietário”, diz Talden Farias.

Para o advogado, o uso das desapropriações para coibir os incêndios só será efetivo se for acompanhado de outras medidas de monitoramento e combate ao fogo. Esses instrumentos estão previstos na Lei 14.944/24, que entrou em vigor em agosto do ano ado, mas ainda estão em implementação.

“As decisões do ministro não podem ser vistas de forma isolada. Elas tratam da integração dos sistemas de prevenção e monitoramento do fogo, previsão orçamentária, estrutura dos órgãos ambientais e de planos de combate. Mas tudo isso ainda é muito novo”, explica.

Medida exigirá indenizações

Um dos entraves na eficácia da determinação de Dino é a necessidade de indenizações aos proprietários. Segundo o artigo 184 da Constituição, os donos de terra alvos de desapropriação devem receber uma indenização prévia e justa pela terra e pelas benfeitorias no imóvel rural. Os pagamentos podem ser feitos por meio de títulos de dívida agrária ou em dinheiro.

De início, o ministro considerou adotar uma punição ainda mais grave: a expropriação. Por meio dessa medida, que é regida pelo artigo 243 da Constituição, o proprietário perde o imóvel sem qualquer direito a indenização. A solução, no entanto, foi descartada porque o artigo 243 tem rol taxativo: ele só permite a expropriação em caso de plantio ilegal de drogas ou prática de trabalho escravo.

Dessa forma, o ministro determinou à União e aos estados que promovam ações indenizatórias contra os proprietários responsáveis pelos crimes ambientais. No caso de terras públicas, os entes federativos devem tomar providências para impedir a regularização dessas áreas, já que os incêndios e a retirada de vegetação são usados por grileiros para consolidar a ocupação ilegal.

A exigência de indenização prévia pode dificultar as desapropriações em razão do custo para os cofres públicos. Por meio de um único acordo, costurado pelo STF no ano ado para garantir a demarcação de uma terra indígena em Mato Grosso do Sul, a União pagará R$ 130 milhões para indenizar um grupo de 12 proprietários.

O arranjo proposto por Dino prevê que os proprietários sejam indenizados em títulos da dívida agrária, que são resgatáveis em até 20 anos. Em tese, esse modelo facilita as desapropriações, porque evita que a União tenha que desembolsar altos valores antecipadamente. Para a advogada Letícia Cavalli, porém, isso não deixa de ser um empecilho.

“O título da dívida agrária precisa ter previsão orçamentária. Então é um gasto que precisa ser previamente planejado pelo poder público. Por isso não acho que seja mais fácil para a União pagar as indenizações em TDA do que em dinheiro”, conclui.