A finitude da pessoa faz parte da vida e, portanto, a morte pertence ao mesmo ciclo existencial da pessoa. O “não ser” se dá antes da vida e depois da morte, entretanto a humanidade ocidental impactou-se apenas ao “medo de morrer”, despreocupando-se com “não ser” do período antes da vida, o que não faz sentido conforme anotado pela filosofia [1]. Registre-se, contudo, que o “medo de viver”, singelamente, existe para determinadas comunidades [2].
Na tensão entre humanidade e morte há também outro tema de extrema relevância e historicismo que merece o devido cuidado: a promoção dos mortos pelo tratamento funerário. As tradições funerárias desempenham função vital na forma como as sociedades lidam com a morte, servindo como meio de expressar respeito pelos falecidos, facilitar o processo de luto [3] e adaptação entre os vivos. Práticas que, variando entre culturas ao longo do tempo, refletem crenças religiosas, valores sociais e normas políticas e morais que constroem a experiência humana em relação à morte [4].
As práticas funerárias têm raízes antigas, entrelaçando-se com a evolução das civilizações. Desde os povos egípcios, que utilizavam técnicas meticulosas de mumificação para garantir a preservação dos mortos para a vida após a morte, até as cerimônias funerárias do Império Romano, em que o luto e a honra eram expressos através de rituais complexos (funus), a forma como as culturas lidaram com a morte reflete não apenas crenças espirituais, mas igualmente regras de tratamento social.
Com a ascensão do cristianismo, na Idade Média, a morte começou a ser associada à salvação da alma perante Deus, modificando aos poucos a atividade funerária que ou a priorizar o velório em locais sagrados, reforçando a conexão entre o ritual de sepultamento e liturgia religiosa, bem como propondo novas tendências para época, dentre elas enterrar filhos nas covas dos pais, o que reunia a família no mesmo espaço cristão [5].
No século 19, na Revolução Industrial, se observou transformação significativa nos serviços funerários. O aumento da população e da urbanização acelerada [6] trouxe à tona a busca de soluções organizadas para o manejo de corpos em ambientes citadinos em expansão, levando ao surgimento dos primeiros serviços funerários comerciais. Essa etapa introduziu a figura do “agente funerário”, responsável por oferecer serviços que iam desde o preparo do corpo até a realização de cerimônias. A padronização desses serviços gerou a criação de mercado consolidado, deslocando a noção de que funerais eram exclusivamente responsabilidade da família do falecido, do Estado ou das pias religiosas.
Ao longo do século 20, esse aperfeiçoamento foi acompanhado por modificações valorativas, como a crescente aceitação da cremação, que se tornou alternativa viável e prática ao enterro tradicional, refletindo mudanças nas atitudes sobre a morte e o luto.
As cerimônias funerárias não apenas homenageiam a pessoa que partiu, mas também afirmam o vínculo com a comunidade, criando espaço de solidariedade e apoio emocional para aqueles que enfrentam a perda. Além do escopo simbólico, as tradições funerárias igualmente desempenham função prática na estruturação do ritual de despedida. Ajudam a legitimar o sentimento de perda e proporcionam oportunidades para que os demais componentes comunitários expressem a respectiva dor coletivamente.
Atividades como sepultamento, cremação ou a realização de cerimônias específicas têm a capacidade de modificar a condição da morte promovendo a reflexão sobre a vida, a memória e o legado do falecido. Na base, trata-se da celebração da vida da pessoa já sem vida, tudo contribuindo para sua glorificação e para o consolo dos que ficam. Não sem razão, o adágio espartano: “De mortuis nil nisi bene“, ou seja, “não se deve falar dos mortos, senão benevolamente“.
Em termos jurídicos, a dignidade em vida é a mesma dignidade em morte, já que a despeito de momentos diferenciados, conjugam “substância” e “subsistência” sobre a mesma pessoa, mesma personalidade [7]. Não é porque se chega à ausência de vida que os direitos previstos (especialmente aqueles alinhados aos deveres de proteção) deixam de ser válidos ou de produzir efeitos necessários. É dizer, que o Direito garante “direitos” também aos mortos, com reflexos óbvios ao núcleo familiar (CC, artigo 12, parágrafo único, CDC, artigo 14, 22 e 46 e 51).
Gestão da morte 5n2i54
No Brasil, contemporaneamente, as atividades funerárias são organizadas e prestadas pelas municipalidades ou Distrito Federal (CF, artigo 30, inciso V), mediante concessão de serviços à iniciativa privada, sendo que adicionalmente ao poder público há mercado financeiro paralelo na oferta de planos funerários, nos moldes da Lei nº 13.261/16.

O modelo de concessão refere-se tanto à (1) istração de cemitérios como (2) à prestação de diversos serviços funerários correlatos, explorados pelas empresas vencedoras da licitação. Cumpre ao poder público manter a necessária fiscalização e regulação “constitucionalmente adequada” do setor. Em outras palavras: mesmo que permitida a participação do setor privado na consecução dos serviços funerários, são eles de domínio e interesse público, razão pela qual o poder público não pode ser omisso na constante sindicabilidade dessa prestação de serviços [8].
Em parte, os tipos de serviços funerários, envolvem o planejamento e a realização do velório, complementado por transporte do corpo, preparação do morto, incluindo cuidados estéticos e assepsias (se necessário), bem como auxílios burocráticos perante o poder público. Essas etapas são fundamentais para muitos, pois permitem que amigos e familiares se reúnam para prestar suas últimas homenagens de forma respeitosa.
Observe que dentre os principais objetos desse ramo se destacam justamente a crucial e necessária “gestão da morte” e “acolhimento das famílias enlutadas“, embora tais finalidades (base histórica do “funus” como já registrado) sejam frequentemente negligenciadas ou desenvolvidas mediante abusos, sem o necessário respeito ao morto, à sua memória, bem como ao núcleo familiar. As prestações dos serviços pelos operadores de mercado, muito embora resolvam em parte a grande tarefa tocada ao poder público, no mais das vezes são caracterizadas pela prática de preços abusivos, ausência de transparência no setor, não atendimento das políticas públicas destinadas aos excluídos, que têm direito à gratuidade ou descontos quanto ao pagamento dos serviços.
Exclusão social 253o7
Tornou-se comum entre muitos municípios, “capturados” pelas prestadoras de serviços funerários, atender solicitações de aumento de preços pelos serviços destinados à população, sem que sejam disponibilizadas publicamente (disclosure) as razões e motivações da decisão istrativa, inclusive com comprovação clara da necessidade (ability) de majoração, tudo levando em consideração condições justas (fairness) pelo serviço.
Não fosse a questão do preço, há outra de maior gravidade: o sofrimento das famílias em exclusão social, entre elas os hipervulneráveis vítimas do superendividamento.
Neste sentido, a melhoria das políticas públicas voltadas para os excluídos é pauta urgente e necessária no contexto do mercado funerário, onde inúmeras populações vulneráveis enfrentam barreiras significativas ao o a serviços de natureza essencial. O reconhecimento de que a morte é aspecto inevitável da vida, que exige manejo digno e respeitoso, deve se traduzir em garantias fundamentais e concretas que correspondam ao o equitativo de todos. Medidas efetivas cabem ser implementadas para evitar que grupos marginalizados sejam deixados à mercê de opções inadequadas ou, em muitos casos, da total ausência de e na hora mais crítica de sua jornada.
Para que o o equitativo a serviços funerários se torne realidade, é peremptória a reavaliação abrangente das legislações existentes e a implementação de programas que priorizem as carências das populações em situação de vulnerabilidade. Iniciativas que forneçam assistência financeira, como subsídios estatais para custear funerais ou a criação de serviços comunitários de assistência funerária, têm o potencial de transformar a realidade vivida por muitos.
Planos funerários 5c2t5g
De outro lado, o mercado “financeiro-funerário” atua fortemente no setor. São as empresas que desenvolvem atividades relacionadas aos “planos de assistência funerária”. Pois bem, a Lei 13.261/16 dispõe sobre a normatização, a fiscalização e a comercialização de planos de intermediação de benefícios, assessoria e prestação de serviço funerário mediante a contratação de empresas as de planos de assistência funerária com pagamentos mensais pela oferta de toda a infraestrutura do atendimento [9].
Referida legislação criou, não apenas um intermediário entre o consumidor e a concessionária de serviços públicos (aumentando a cadeia de fornecimento), mas igualmente figura financeira de captação econômica singular no país, porque a figura “assistência funerária” não se imbrica exatamente à noção de seguro, mutualidade, consórcio ou outra modalidade mais conhecida. Na realidade, a “mens legislatoris” veio para regular o que acontecia na prática, quando as concessionárias, sem qualquer regulação anterior e autorização governamental, celebravam contratos de adesão com consumidores para fornecimento futuro de prestação de serviços funerários.
Os planos funerários, embora ofereçam resposta planejada para o inevitável, não estão isentos do oferecimento de serviços mediante cláusulas contratuais e práticas comerciais abusivas que impactam o consumidor. Muitas vezes, os consumidores se deparam com custos ocultos que eclodem após a contratação do serviço, como taxas adicionais que supostamente deveriam estar incluídos no pacote. Essa falta de clareza rompe a legítima expectativa, levando os contratantes a questionarem a ‘verdadeira’ vantagem financeira que os planos oferecem.
Outro ponto crítico a ser considerado é a questão da solvência das empresas que oferecem esses planos. Setor marcado por alta taxa de rotatividade e a possibilidade de falências inesperadas, sendo prudente aos consumidores a avaliação da saúde financeira da empresa escolhida.
Considerações finais 1v4f1p
No contexto do mercado funerário, as práticas comerciais questionáveis emergem como tema crítico que merece atenção cuidadosa. À medida que as empresas buscam maximizar lucros em setor frequentemente marcado pela dor e pela vulnerabilidade, surgem táticas que não apenas comprometem a ética, mas também afetam a transparência e a confiança do consumidor. É comum verificar prestadores de serviços adotando abordagens agressivas que culminam na ausência de execução do funeral do morto, constrangendo familiares e agravando a perda sofrida. Isso ressoa como estratégia de pressão para inserir carga financeira indesejada e abusiva em momentos de intenso sofrimento. Enfim, contratação distante da noção de crédito responsável ou da boa-fé objetiva qualificada. Tudo a ensejar a responsabilidade civil, nos termos do artigo 14 do CDC.
Além disso, a falta de clareza nas informações fornecidas aos consumidores cria ambiente propício para a falha na prestação do serviço. Muitas funerárias omitem detalhes cruciais sobre “iter” contratual, deixando os consumidores sem capacidade de fazer escolhas informadas. Isso é particularmente problemático justamente para aquele que deveria operar de acordo com princípios de respeito e dignidade.
Desnecessário indicar que nessas hipóteses o CDC se aplica obrigatoriamente e traz de forma transversal a aplicação dos direitos fundamentais do morto, do núcleo familiar e da comunidade frente aos usos e abusos funerários, como outrora o TJ-MG em decisão modelar condenou “empresa de plano funerário” ao pagamento de danos morais coletivos pelo abandono de consumidores com legítima expectativa frustrada [10].
[1] SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor, Metafísica da Morte. Tradução Jair Barboza. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2000.
[2] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 225. Essa obra seminal explica o ‘medo de viver’ e os usos do ‘infanticídio’ comuns a alguns povos originários: “Entre essa comunidade indígena, a vida só tem sentido se não for marcada pelo excessivo sofrimento para o indivíduo e a comunidade, se for uma vida tranquila e amena’.
[3] KUBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 2017.Livro que trata das cinco fases do luto: negação, raiva, depressão, barganha e aceitação.
[4] LUPER, Steven. Filosofia da morte. São Paulo: Madras Editora, 2020.
[5] LAUWERS, Michel. O nascimento do cemitério: lugares sagrados e terra dos mortos no Ocidente
medieval. Tradução Robson M. G. Della Torre. Campinas: Ed. Unicamp. 2015.
[6] CORREIA, Fernando Alves. O plano urbanístico e o princípio da igualdade. Coimbra: Livraria Almedina, 1990.
[7] MORAES, Walter. Concepção Tomista de Pessoa. Um contributo para a Teoria do Direito da Personalidade. Revista de Direito Privado 2, abr.-jun. 2000, p. 187-204.
[8] BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito istrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 187. Leciona: “Ao lado da função bloqueadora, os direitos fundamentais irradiam também uma eficácia habilitadora da atuação do poder de polícia”.
[9] Ver por todos: MARQUES, Claudia Lima. Comentários à Lei 13.261, de 22 de março de 2016, dispõe sobre a normatização, a fiscalização e a comercialização de planos de assistência funerária (legislação comentada). RDC, São Paulo, v. 25, 2016. p. 654-655: “Para alcançar esta segurança da morte digna, aceita contratar, prever, transferir tarefas a terceiros que – confia – realizarão seus serviços com qualidade e boa-fé, acompanhando-o neste último contrato de consumo, a garantir um enterro digno, serviços funerários de qualidade e um fim apropriado para a imagem que forjou de si próprio”.
[10] BRASIL. TJ-MG. Apelação cível nº 1.0000.18.013182-3/003. Relator: Des. José Marcos Rodrigues Vieira. Data de julgamento 12/03/2025. Excerto do voto: “Na prática, em delicado momento de luto, significativa parcela de consumidores ficou à mercê do inadimplemento da primeira apelante, que, ademais de não entregar o serviço contratado, tampouco promovia a restituição dos valores recebidos”.