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Distribuição desproporcional de lucros nas sociedades profissionais 273211

21 de maio de 2025, 8h00 1s1zu

Por Carlos Augusto Daniel Neto, Caroline Rosado Junqueira

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A livre iniciativa, um dos princípios fundantes da ordem econômica da CF/88, assegura a faculdade na estruturação da forma em que a atividade profissional será organizada, se diretamente ou se por meio de sociedade de idêntico escopo, independentemente de uma estrutura empresarial.

O Código Civil prevê, em seu artigo 983, a possibilidade de organização dos profissionais na forma de sociedade simples uniprofissional (SUP), caracterizada pela organização societária de profissionais, com uma mesma formação técnica, cuja atividade-fim é prestada diretamente pelos quotistas, sendo essa estrutura comum às profissões legalmente regulamentadas (e.g. médicos, advogados, contadores etc.).

Tendo em vista que os quotistas prestam o serviço diretamente aos clientes da sociedade, a estrutura empresarial costuma ser modesta, frente a relevância da participação do trabalho dos profissionais, normalmente envolvendo um edifício, equipamentos e um staff de apoio. Esse modelo de operação se reflete, naturalmente, sobre a forma de repartição dos lucros entre os sócios.

É comum, nas SUPs, que os quotistas tenham a sua participação dos lucros balizada de acordo com o montante de serviços prestados em nome da sociedade, de modo a refletir uma proporção entre trabalho e dividendos recebidos. Nesse sentido, há um afastamento do tradicional critério de distribuição proporcional às quotas possuídas [1].

Em razão disso, a Receita Federal, tem entendido que a distribuição de lucros desproporcional às quotas sociais consistiria em pro-labore disfarçado de dividendos, pois seriam a contraprestação direta do seu trabalho, e vem promovendo a autuações para a cobrança de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) e Contribuição Previdenciária () sobre os valores pagos. Na visão do Fisco, haveria uma interposição abusiva da pessoa jurídica entre os profissionais e os consumidores dos serviços, por se tratarem de serviços, em regra, prestados diretamente e de forma pessoal.

Isso porque, no entender do órgão, somente são isentos do IRRF os valores pagos aos sócios que tenham caráter de divisão de lucros, conforme o caput do artigo 10 da Lei nº 9.249/1995, havendo a incidência dos dois tributos quando se tratar de remuneração por seu trabalho. Da mesma forma, em se tratando de remuneração, haveria também a incidência da , enquadrando-se o sócio como contribuinte individual de que dispõe o artigo 12, V, “f” da Lei nº 8.212/91 c/c/ artigo 22, III da Lei nº 8.212/91.

Na coluna de hoje, trataremos exclusivamente da qualificação dos dividendos pagos, desproporcionalmente às quotas sociais, como pro-labore, sem adentrar propriamente em questões específicas do IRRF e da , que seriam eventualmente prejudicadas pela resolução da vexata quaestio qualificatória. Nossa análise será focada na jurisprudência do Carf sobre a matéria, buscando identificar critérios fáticos e jurídicos que são considerados como juridicamente relevantes para o convencimento dos conselheiros a respeito do ponto suscitado.

Sociedade simples x empresária: uma nova velha questão? 586k1u

A compatibilidade entre a pessoalidade do trabalho prestado pelos quotistas e a utilização de uma forma societária (no caso, sociedade simples) não é uma questão jurídica recente, mormente no âmbito do Direito Tributário.

Spacca

Essa discussão remonta à interpretação do artigo 9º, §1º do Decreto-lei nº 408/68 [2], que, ao versar sobre o ISS, permitia a cobrança desse imposto por uma alíquota fixa, no caso de “prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte”. A tese fazendária se baseava no argumento de que a adoção da forma societária, com responsabilidade limitada, a atividade pessoal do profissional seria descaracterizada, afastando a aplicação do referido dispositivo.

Após longa controvérsia, a jurisprudência do STJ foi pacificada pelo Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei (PUIL) 3608/MG (j. 28/2/2024), no sentido de que a atividade profissional (no caso, uma sociedade de médicos), mesmo que prestada por uma sociedade de responsabilidade limitada, não seria necessariamente uma atividade empresarial, na qual os fatores organizacionais da empresa se sobrepõem ao trabalho intelectual e pessoal de seus sócios. Nas sociedades simples, afirmou o STJ, “o labor dos sócios é fator primordial para o desenvolvimento da atividade, sem o qual não há como se cogitar qualquer prestação de serviço, ou mesmo o desenvolvimento do objeto social da pessoa jurídica, ou talvez, ainda, a sua existência”.

A relevância da análise da corte, nesse ponto, foi reconhecer expressamente que “a sociedade simples, ao revés do que afoitamente se possa pensar, também executa atividade econômica e seus integrantes partilham, entre si, resultados que venham a ser auferidos. Se assim não o fosse, não seria sociedade” (EAREsp 31.084/MS, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 24/3/2021). Portanto, o fato de as atividades profissionais serem prestadas com pessoalidade, mas por meio de uma sociedade simples: 1) não descaracteriza o caráter pessoal do serviço, se não estiverem características de atividade empresarial; e 2) tampouco descaracteriza a própria sociedade simples enquanto tal.

Interessante observar que, para além da tese acima, que é uníssona no STJ, a divergência nos tribunais girava sobre a existência ou não de características de “sociedade empresarial” nos casos concretos, no qual a questão da distribuição de lucros acabou sendo enfrentada também.

Entre outras coisas, afirmou a corte que:

1) A adoção da forma limitada, com remuneração das sócias, que prestam diretamente o serviço, por meio de dividendos, não interferiria na pessoalidade do serviço nem a descaracterizaria como sociedade simples (AgInt no REsp 2.031.039/RS);

2) A distribuição dos lucros da sociedade de acordo com a participação de cada sócio no capital social “descaracteriza ainda mais a natureza pessoal da sociedade, pois, se assim fosse, cada sócio deveria receber proporcionalmente às tarefas desenvolvidas” (AgInt no REsp 2.014.175);

3) A remuneração dos sócios exclusivamente por meio de pró-labore pelo trabalho, além da repartição dos lucros e prejuízos entre eles, evidenciaria o caráter empresarial da sociedade (AgInt nos EDcl no REsp 1.713.140/SP).

Os argumentos da Receita Federal 4k205k

Apesar do entendimento pacífico do STJ sobre a questão, como isso tem ensejado autuações fiscais federais? A RFB tem trazido argumentos que possuem diferentes níveis de profundidade.

Um dos principais argumentos é o de que se trataria de um planejamento tributário abusivo, pois os profissionais poderiam pagar menos tributos prestando o serviço por meio de sociedades simples, optantes do Lucro Presumido ou do Simples Nacional, do que se fossem tributados como pessoas físicas. Sustentam também a impossibilidade de que serviços personalíssimos sejam prestados por meio de pessoas jurídicas, entendendo que se trataria de uma interposição da empresa, que deveria ser afastado para fins tributários.

Além disso, em diversos casos, afirma-se que a distribuição desproporcional dos lucros, de acordo com o volume de serviços prestados por cada sócio, os caracterizaria como verdadeiro pro-labore, estando sujeito ao tratamento tributário de remuneração. Além disso, questionam a existência de previsão para a distribuição desproporcional de lucros no contrato social, exigindo não a mera autorização, mas a determinação de um critério objetivo.

A esse respeito, a própria Receita já esclareceu, na SC SRRF06/Disit nº 46/2010 que são isentos os lucros distribuídos desproporcionalmente, desde que tal distribuição esteja devidamente estipulada no contrato social. Entretanto, a posição manifestada ressalva a incidência de contribuição previdenciária sobre a antecipação de dividendos, na forma do artigo 201, §1º c/c §5º, II do Decreto nº 3.048/1999 (Regulamento da Previdência Social – RPS).

Para além desses argumentos, há outros casuísticos, como a ausência de levantamento de balancete para pagamento de dividendos antecipados ou mesmo de evidenciação contábil dos lucros; pagamento de dividendos a não sócios; inclusão da cláusula de distribuição desproporcional no ano-calendário de apuração do lucro etc.

O que o Carf tem decidido a respeito? 49n4g

De forma geral, pode-se adiantar que o Carf tem reconhecido de forma reiterada a possibilidade de profissionais se organizarem na forma de sociedades simples, sendo remunerados por meio de lucros apurados por ela, ainda que na proporção de suas atividades prestadas.

Apesar disso, ainda há decisões, a exemplo do ac. 2301-011.411, que, contrariando a jurisprudência do STJ, e as próprias manifestações da RFB, entendem que os dividendos pagos proporcionalmente ao serviço dos sócios devem ser considerados como remuneração e sujeito à . Nesse caso específico, afirmou a relatora que, após a mudança da forma de cooperativa para sociedade simples, o serviço seguiu sendo prestado da mesma forma, pelas mesmas pessoas e no mesmo lugar, o que caracterizaria a natureza de remuneração, dos lucros pagos. Em termos práticos, concluiu que a forma jurídica adotada seria irrelevante para a tributação desses profissionais – o que nos causa espécie, diante da ausência de qualquer regra jurídica que determine isso.

Com a devida vênia, o argumento acima já deveria, há muito ter sido superado. Com efeito, o artigo 1.007 do Código Civil autoriza expressamente não apenas a existência de sócios que colaboram com o seu serviço, como é típico nas SUPs, como também a possibilidade de distribuição desproporcional às quotas.

Tanto é assim, que a maioria dos acórdãos do Carf condicionam o afastamento do IRRF e da à existência expressa previsão no contrato social que permita a distribuição desproporcional. É o que se observa dos acórdãos nº 2102­001.496, 2301-003.368, 2302-003.211, 2401-005.592, 2301-005.705, 2403-001.958. 2402-003.821, 2201-010.359 e 2401-005.677.

No acórdão nº 2201-010.359 e 2201-010.363 (j. 8/3/2023), por exemplo, a estipulação no contrato social é necessária para que o critério da distribuição desproporcional seja previamente estipulado e acordado por todos os sócios, sob pena de uma desvirtuação do conceito de lucro. Exigiu-se também que, se o critério for fixado em ata de reunião dos sócios, é necessário que contenha a de todos os sócios para que se possa aplicar o artigo 1.007 do Código Civil – como se vê, há aqui uma preocupação maior com a validade jurídica do ato que delibera a forma de distribuição dos lucros.

Além disso, a contabilidade da SUP deve cumprir todas as formalidades intrínsecas e extrínsecas de regularidade, devendo ser capaz de evidenciar com clareza os montantes de lucros apurados e que serão distribuídos aos sócios, como se vê nos acórdãos nº 2401-005.592, 2301-005.705, 2403-001.958, 2402-003.821, 2201-010.359, 2302-002.892, 2401-003.436 e 2201-012.005. Naturalmente, em sendo a contabilidade regular, o lucro lá apurado deve ser aceito, incluindo aí a distribuição desproporcional, se prevista no contrato social (acórdão nº 1302-005.286).

Por outro lado, na hipótese de os pagamentos serem realizados a sujeitos que não ostentam o caráter de sócio, ou em valores superiores aos montantes de lucros apurados no exercício, é o suficiente para que esses valores sejam tratados como pro-labore, a exemplo dos acórdãos nº 2301-005.705 e 2402-003.821.

Em suma, podemos, então, definir com base na jurisprudência do Carf quatro critérios gerais que devem ser seguidos pela SUP pra que os lucros distribuídos desproporcionalmente aos sócios possam ser considerados dividendos: (1) previsão no contrato social acerca da possibilidade de distribuição desproporcional de lucros aos sócio; (2) determinação prévia do critério no contrato social ou deliberação em assembleia atendimento aos requisitos legais; (3) apuração contábil de forma regular e (4) o beneficiário ter a condição de sócio.

Naturalmente, buscamos elencar apenas critérios gerais que têm sido recorrentes nos acórdãos sobre o tema. Ainda há questões específicas que demandariam aprofundamento, como os efeitos da alteração do contrato social no curso do exercício de produção do lucro (e.g. acórdão nº 2201-012.014) ou a inexistência de discriminação de pró-labore e dividendos na contabilidade (para a , e.g. 2301-011.411, 2403-001.958 e 2402-003.821).

Conclusão: ‘um museu de grandes novidades’ v5b1e

A organização dos profissionais em SUPs, para prestação de serviços pessoalmente, em nome da sociedade, é plenamente reconhecida pelo STJ – que também pontuou que a distribuição desproporcional dos lucros (cf. volume de trabalho) – longe de se tratar do “abuso” pugnado pela RFB – é elemento típico das sociedades simples, nas quais o trabalho dos sócios é mais relevante que a organização empresarial.

Desse modo, a discussão jurídica toma a validade dessa estrutura societária e modelo de prestação dos serviços como premissa para, a partir daí, se avançar à análise dos critérios gerais que devem orientar a validade da distribuição desproporcional de dividendos nas SUPs.

A tentativa de questionar a liberdade dos profissionais de auto-organização na forma societária, ao desqualificar os dividendos distribuídos para remuneração, é, parafraseando Cazuza, um “museu de grandes novidades” ou uma tentativa de “o futuro repetir o ado”, buscando revolver pontos já pacificados após anos de discussão. As discussões jurídicas devem, inexoravelmente, avançar, seja em favor do seu encerramento, seja para dar espaço às outras e novas questões sucessivas.

Nesse caso, o afunilamento das questões é essencial para que o Carf defina, finalmente, quais as condições jurídicas, contábeis e fiscais que deverão ser atendidas para que as SUPs possam, com segurança, distribuir dividendos aos seus sócios na proporção dos serviços prestados.

 


[1] Sobre o tema, v. PINTO, Alexandre Evaristo. Efeitos tributários da distribuição desproporcional de lucros

[2] Art 9º A base de cálculo do impôsto é o preço do serviço.

§1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o impôsto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.