Regras processuais

Constituição estabelece competência territorial no crime de lavagem de dinheiro

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8 de setembro de 2014, 12h05

ados 16 anos desde a edição da Lei 9.613/98, é inegável a constatação de um significativo avanço nas discussões da dou­trina e jurisprudência pátrias a respeito do tema.

No entanto, por se tratar de assunto ainda recente, há uma série de pontos ainda pouco explorados e que requerem um estudo mais aprofundado. Esses temas são revelados a partir das dificuldades que aparecem em nossa própria casuística.

Assim, já há alguns anos se discute questões relativas à competência no crime de lavagem de dinheiro. As atenções voltam-se, por exemplo, para os problemas relativos à criação de varas especializadas — tema que, apesar da consolidada posição dos tribunais superiores, ainda está longe de ter se esgotado — e para as dificuldades inerentes à própria defi­ni­ção da competência, levando em consideração, entre outros aspectos, a cone­­xão com o crime antecedente[1].

Pretendemos aqui, chamar a atenção para outro problema: a consumação do crime de lavagem de dinheiro em suas diferentes modali­dades típicas e a incidência das regras processuais para fixação da compe­tên­cia territorial, à luz da regra geral prevista no artigo 70 do Código de Processo Penal.

O artigo 1º da Lei 9.613/98 prevê três modalidades típicas diver­­sas, as quais se encontram descritas no caput e nos parágrafos 1º e 2º:

Art. 1o  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição,   movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes,   direta ou indiretamente, de infração penal. 

Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.

§ 1o  Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de   bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:
I – os converte em ativos lícitos;
II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem   em depósito, movimenta ou transfere;
III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verda­dei­ros.

§ 2o  Incorre, ainda, na mesma pena quem: 
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores   provenientes de infração penal; 
II – participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua   atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos   nesta Lei.

Interessante observar que, se por um lado, a Lei 9.613/98 se utilizou da técnica de criar mais de um tipo penal para criminalizar a lavagem de dinheiro, por outro, ela não buscou organizar as condutas de maneira a compreender as três etapas do processo de reciclagem, usualmente indi­ca­das pelos organismos internacionais e, de modo geral, pela doutrina[2].

Na verdade, de acordo com Isidoro Blanco Cordero, essas três fases — ocultação, dissimulação e integração — podem suceder conjunta ou separadamente e não raro se sobrepõem[3].

Veja-se, por exemplo, que o caput do artigo 1º da Lei 9.613/98 tipifica a ocultação e a dissimulação dos bens ou valo­res provenientes direta ou indiretamente de infrações penais antecedentes. Já o parágrafo 1º especifica con­dutas caracterizadoras dessas mesmas ocultação e dissimulação.

O mesmo não ocorre com o parágrafo segundo. Esse dispo­sitivo prescreve as condutas daquele que se utiliza do dinheiro já na atividade econômica ou financeira (inciso I), conduta essa correspondente à fase de integração, bem como daquele que integra grupo, associação ou escritório vol­tado para a prática da lavagem de dinheiro (inciso II), uma espécie de associação para lavagem.

De todo modo, cada uma das modalidades delineadas no artigo 1º da Lei 9.613/98 consiste em um tipo de conteúdo variado ou de ação múl­tipla, pois conta com vários núcleos.

Assim, levando em consideração a estrutura normativa dese­nhada na Lei de Lavagem, uma vez caracterizada a ocultação ou a dissi­mulação do pro­duto da infração antecedente, o crime de lavagem de dinheiro já estará consumado. Não se faz necessário, pois, que o agente promova, futura­mente, a integração dos bens, valores, direitos etc. na economia.

Nesse caso, se o mesmo agente praticar duas ou mais con­du­tas no curso de um mesmo ciclo de lavagem, não haverá concurso de crimes, mas, sim, crime único.

Portanto, se o agente oculta a origem ilícita dos valores fazendo, por exemplo, pequenos depósitos a partir de diversas contas, é for­çoso concluir que o crime se consumou, pois os elementos do tipo penal esta­rão integralmente preenchidos, nos termos do artigo 14, I, do [4].

Se o mesmo agente participa de uma nova etapa do processo de lavagem, estaremos diante de um pós-fato impunível. A imputação de concurso de crimes, em qualquer das suas modalidades, caracterizaria, nesses termos, bis in idem, dupla incriminação do mesmo fato.

Com efeito, a criminalização da lavagem de dinheiro em três tipos penais tem por função facilitar a apuração de condutas dos agentes que praticaram apenas um ato ou participaram de apenas uma das etapas da lavagem de dinheiro. No entanto, deve-se sempre ter em mente que os três tipos penais dizem respeito a uma mesma lavagem de dinheiro.

Outro aspecto importante é a classificação dos tipos penais como delitos de mera atividade ou de resultado e delitos instantâneos ou permanentes.

O problema certamente não é simples e variadas são as solu­ções propostas no âmbito da doutrina penal. No entanto, a posição majori­tária inclina-se no sentido de que se trata de crimes formais ou de mera conduta, que independem do resultado pretendido pelo agente[5]. Gostaríamos de ressalvar, contudo, a hipótese prevista no do parágrafo 2º, inciso II (associação) a qual exige o preenchimento dos requisitos estabi­lidade e perma­nência.

Feitas essas considerações, imagine-se a hipótese em que o agente se proponha a realizar a lavagem do produto de um suposto crime de peculato (artigo 312 do ) cometido por agente público federal contra a União. Para tanto, ele fracionou os valores provenientes da infração cometida pelo servidor em pequenos depósitos, realizados em diversas con­tas correntes.

Os depósitos fracionados teriam como destino comum a conta corrente de uma empresa fantasma, situada em outro Estado da Federação, sendo que o objetivo final daqueles valores seria a integralização do capital social de outra empresa, com sede em um terceiro Estado da Federação.

Nesses termos, qual seria o juízo competente para processar e julgar o caso penal?

Em primeiro lugar, é necessário asseverar que “a regra de com­petência não é um cheque em branco”, parafraseando a clássica lição de Caio Tácito. A competência se estabelece a partir das regras consti­tu­cionais e legais que fixam, anteriormente ao fato, o juízo perante o qual dar-se-á a persecução penal, desde a investigação até a sentença.

A competência não se estabelece como manifestação da von­tade pessoal das partes e, muito menos, do próprio magistrado. Assim, não é competente quem quer, mas, sim, aquele a quem as regras processuais atri­buem essa condição.

Em nosso caso hipotético, como a infração antecedente é da competência da Justiça Federal (artigo 109, inciso IV, da CF) a regra prevista no artigo 2º, inciso III, alínea "b", da Lei 9.613/98 determina que a competência para o julga­mento do crime de lavagem pertence igualmente à Justiça Federal.

Levando em conta a espécie delitiva em questão, a compe­tên­cia será de uma das várias especializadas em Crimes Contra o Sistema Finan­ceiro, Lavagem de Dinheiro e Organizações Criminosas.

Acreditamos que essa fase inicial de verificação da competên­cia não oferecerá maiores dificuldades. O mesmo não se pode dizer da fixa­ção da competência territorial, pois o ciclo de lavagem compre­endeu diver­sos atos, praticados em três diferentes unidades da Federação.

Uma vez estabelecida a competência material em favor da Jus­tiça Fede­ral e das varas especializadas, não haveria outro critério para definir o juízo competente para esclarecer o caso penal senão o local em se consumou o crime, previsto no artigo 70 do Código de Processo Penal.

Entendemos que o fracionamento do produto do crime em peque­­nos depósitos é suficiente para caracterizar o crime de lavagem pre­visto no caput do artigo 1o, nas modalidades ocultação ou dissimulação.

Aliás, essa técnica, conhecida como smurfing ou structuring, é geral­mente citada pela doutrina estrangeira e nacional para exemplificar a dissimulação da origem ilícita dos valores. Ela consiste na aquisição de ins­tru­mentos financeiros ou na realização de depósitos monetários em valo­res inferiores àqueles estabelecidos como de comunicação obrigatória à is­tração, esclarece Isidoro Blanco Cordeiro[6].

Entre nós, o autor Sérgio Fernando Moro adverte que, “na casu­ís­tica, diversas condutas podem configurar ocultação ou dissimulação. Recorrendo à rica jurisprudência norte-americana, já foram consideradas aptas à configuração do crime de lavagem: – a estruturação de transações, v.g., US vs Tekle, 329 F.3d 1108, 1114 (9th Cir. 2003) – ‘a estruturação de depósitos em frações menores que US$ 10.000,00 em múltiplos bancos no mesmo dia é prova da intenção de ocultar’ ou US vs. Prince, 214, F. 3d 740 (6th Cir. 2000) – ‘a prova da estruturação de transações monetárias para evadir uma comunicação obrigatória constitui prova da intenção de ocultar ou dissimular’… ”[7].

Consumado o crime de lavagem no fracionamento dos depó­sitos, será competente a vara federal especializada situada na unidade da Federação em que eles ocorreram, por força da regra contida no artigo 70 do P[8]. A fixação da competência perante esse juízo dar-se-ia, também, por força da conexão instrumental prevista no artigo 76, II, do P.

Os atos subsequentes não poderão ser tributados ao mesmo agente que fez o fracionamento dos depósitos, sob pena de dupla incriminação da mesma conduta. Haverá apenas “um sentido de ilícito absolutamente dominante e ‘autónomo’, a par de outro ou outros sentidos dominados e ‘dependentes’. É o que sucederá frequentemente com os grupos dos factos tipicamente acompanhantes e, sobretudo, dos factos posteriores co-punidos”[9].

Portanto, não restam dúvidas de que esta­mos diante de uma só lavagem de dinheiro, dividida em vários atos que se encontram tipificados no artigo 1º da Lei 9.612/98. O crime será sempre único[10]. O agente deu início ao percurso da lavagem com a dissimulação dos valores de origem ilícita e procedeu à integração desses mesmos valores ao final do processo, como se eles tivessem origem lícita.

Eventuais coautoria e participação nas outras etapas do ciclo de lavagem levará os agentes a responder pelo mesmo crime de lavagem de dinheiro e não por outras ou novas infrações. Haverá concurso de agentes — que participaram de fases distintas do mesmo crime — mas inexistirá con­curso de crimes.

Em havendo concurso de agentes para um mesmo fato crimi­noso, aplica-se a regra de continência, prevista no artigo 77 do P. Logo, a competência para julgamento dos fatos posteriores atribuídos aos demais agentes seria estabelecida no local em que se consumou o crime de lava­gem. Ou seja, na unidade da Federação em que se fez o fraciona­mento dos depósitos.

É bem verdade que em alguns casos a existência de diversas condutas e o protagonismo de diversos autores pode levar a ocorrência daquilo que se denominou em Portugal de “processos-monstro”. Nessas hipóteses, é comum a utilização do artigo 80 do P que permite ao magis­trado o desmembramento do feito (desde que o faça em decisão devi­da­mente fundamentada).

Mas é necessário advertir que cabe somente ao juiz natural da causa — constituído previamente segundo as regras constitucionais e legais — a competência para decidir a respeito do desmembramento do processo, consoante pacífico entendimento dos tribunais superiores.

A legislação brasileira relativa à lavagem de dinheiro não está imune a críticas, já que nela é possível constatar pontos problemáticos que têm sido foco de recentes debates acadêmicos e jurisprudenciais. Trata-se inegavelmente de uma modalidade delitiva complexa, em torno da qual ainda circulam ares de novidade e não raro de indevida e temerária inovação.

No entanto, podemos afirmar que apesar das dificuldades, a questão da competência territorial nos crimes de lavagem de dinheiro pode ser plenamente resolvida com base na interpretação da Constituição Federal, do Código de Processo Penal e da Lei 9.613/98.

Nossa legislação constitucional e infraconstitucional nos fornece elementos suficientes para que, mesmo diante dos casos com complexa movimentação financeira nacional e internacional, a competência territorial seja delimitada em respeito às garantias constitucionais do juiz natural e do devido processo legal e aos direitos fundamentais da mais alta suposi­ção.

Não há, portanto, qualquer justificativa para que sejam criadas regras ad hoc em caráter retroativo, que não sejam observadas as regras de competência estabelecidas no artigo 78 do P ou que sejam tomadas quaisquer outras medidas que, embora aparentem ser uma solução conveniente, subtraiam do acusado as garantias constitucionais e diretos fundamentais mencionados.


Bibliografia
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. LAVAGEM DE DINHEIRO – Aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

BITENCOURT, Cezar Roberto.  Tratado de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2008.

BLANCO CORDERO, Isidoro. El Delito de Blanqueo de Capitales. Cizur Menor: Thomson Reuters, 2012.

CERVINI, Raúl; Oliveira, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

GOMES, Abel Fernandes. Lavagem de dinheiro: notas sobre a consumação, tentativa e concurso de crimes. In Lavagem de dinheiro. Org.: José Paulo Baltazar Junior; Sergio Fernando Moro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

MENDONÇA, Andrey Borges de. Do processo e julgamento. In Lavagem de Dinheiro – Prevenção e Controle Penal. Org.: Carla Veríssimo de Carli. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011.

MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.


[1] A respeito desses temas, cf., por exemplo: BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. LAVAGEM DE DINHEIRO – Aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 207-268. MENDONÇA, Andrey Borges de. Do processo e julgamento. In Lavagem de Dinheiro – Prevenção e Controle Penal. Org.: Carla Veríssimo de Carli. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011, p.479-491.

[2] Acerca das três fases individualizadas da lavagem de dinheiro, cf., por todos, CERVINI, Raúl; Oliveira, Willian Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 81-107. MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 33.

[3] El Delito de Blanqueo de Capitales. Cizur Menor: Thomson Reuters, 2012, p. 64.

[4] "Consuma-se o crime quando o tipo está inteiramente realizado, ou seja, quando o fato concreto se subsume no tipo abstrato da lei penal" (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 528).

[5] Neste sentido: BLANCO CORDERO, Isidoro, op. cit., p.  448. BADARÓ;BOTTINI, op. cit., p. 77-82. MORO, Sérgio Fernando, op. cit, p. 33. GOMES, Abel Fernandes. Lavagem de Dinheiro: notas sobre a consumação, tentativa e concurso de crimes. In  Lavagem de dinheiro. Org.: José Paulo Baltazar Junior; Sergio Fernando Moro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 75-89.

[6] Op. cit., p. 66 – 67.

[7] Op. cit., p. 34.

[8] Nesse sentido, por analogia, STJ, Terceira Seção, CC 132.897/PR, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJ 03/06/2014: “Em não havendo dúvidas acerca do lugar da consumação do delito, da leitura do caput do artigo 70 do Código de Processo Penal, torna-se óbvia a definição da competência para processamento e julgamento do feito, uma vez que é irrelevante o fato de as sementes de maconha estarem endereçadas a destinatário na cidade de Londrina/PR”. Grifos do original.

[9] Direito Penal: Parte Geral. Tomo I: questões fundamentais: a doutrina geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 1016.

[10] BLANCO CORDEIRO, Isidoro, op. cit., p. 448 – 449. 

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