Segunda Leitura

Enfrentamento ao trabalho escravo tem avanços antigos e retrocessos recentes

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24 de janeiro de 2016, 7h00

A Lei 12.064/2009 instituiu 28 de janeiro como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data foi escolhida em homenagem aos auditores-fiscais do trabalho Eratóstenes de Almeida, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e ao motorista Ailton Pereira de Oliveira, vítimas de homicídio quando investigavam trabalho escravo em Unaí (MG). Nesta semana que se inicia, serão realizados eventos que relembrem o triste fato e que possibilitem a reflexão das instituições públicas e da sociedade sobre a prática da exploração do trabalho escravo no país.

Em minha reflexão, vejo que o Brasil, nos últimos 20 anos, tem dado respostas ao problema com vigor e determinação. Tudo se iniciou em 1995, com a criação do Gertraf (Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado), em contexto em que as autoridades governamentais manifestavam-se em documentos escritos utilizando, preferencialmente, o termo “trabalho forçado”.

Hoje, “trabalho escravo” ganhou status constitucional, por força da Emenda 81/2014, que prevê a expropriação de propriedades urbanas e rurais onde houver sua exploração. Ao longo dos anos, diferentes instituições governamentais, organizações de empregadores e de trabalhadores, entidades da sociedade civil, a mídia, a Academia, entre outros, envolveram-se no tema. Muitas das medidas tomadas são criativas e únicas, mostrando a necessidade de dar os ousados para lidar com a severa violação de direitos humanos.

Se tivesse que escolher algumas ocorrências dos últimos anos, pelo grau de importância, mencionaria as seguintes: a) caso José Pereira; b) criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE); c) alteração do art. 149 do Código Penal; d) criação do cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à de escravo, também conhecido como lista suja.

a) José Pereira foi quase morto, no Sul do Pará, por tentar fugir de uma fazenda onde era escravizado. O Estado brasileiro omitiu-se em cumprir suas obrigações de proteção dos direitos humanos, de proteção judicial e de segurança no trabalho e, por isso, foi apresentada uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1994. Após anos de tramitação, o governo brasileiro reconheceu sua responsabilidade diante do caso, prontificando-se a Acordo de Solução Amistosa, no qual, entre outros compromissos, reconheceu publicamente a responsabilidade acerca da violação de direitos e se comprometeu a prevenir a prática do trabalho escravo. Foi a partir dessa denúncia que diferentes países e segmentos da sociedade brasileira reconheceram a existência, a gravidade e as particularidades do trabalho escravo no país.

Hoje, o Brasil é novamente acionado internacionalmente, relativamente ao caso Fazenda Brasil Verde. O processo está em fase mais avançada porque já submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez frustrados os esforços visando à composição. O tribunal poderá condenar o Estado brasileiro pela existência de trabalho escravo, por não preveni-lo e por violar o dever de investigar e punir esse tipo de violação.

b) O Grupo Móvel é composto por auditores-fiscais do trabalho, em parceria com Procuradores do Trabalho e da República, bem como agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Em duas ocasiões distintas, pude constatar a importância da atuação deles. Na primeira, quando estava nas trincheiras, na saudosa Marabá/PA, ocasião em que analisei dezenas de processos criminais pela prática do crime do art. 149 do Código Penal. Constatei pessoalmente quão eficiente, resolutiva e notável era a atuação do Grupo Móvel. Eles conseguiam fazer algo essencial para o bom funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro: eliminar o inquérito policial. Os relatórios de fiscalização, dotados de fotografias, depoimentos e documentos, serviam de base para o oferecimento de denúncias pelo Ministério Público Federal e permitiam que menos tempo se gastasse na longa fase que antecede a acusação criminal. A segunda ocasião foi quando participava do Tercer encuentro nacional sobre la trata de personas, realizado no final de 2015 na Colômbia. Percebi como os colombianos ressentiam-se de não ter um grupo de auditores tão atuante como o existente no Brasil. Muitos dos problemas por eles alegados, sobretudo o resgate de trabalhadores, seria solucionado se adotassem nossa estratégia.

Hoje contamos com apenas quatro grupos móveis para combater uma prática que não deu sinais de diminuição, ao o que, no início da década de 2000, havia oito grupos de auditores-fiscais. Talvez a redução havida tenha relação com os mais de 1000 cargos dessa carreira que estão vagos no país.

c) O Código Penal previa, desde 1940, o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Em 2003, o delito foi alterado e ganhou grande abrangência. Não conheço todas as legislações do mundo, mas acredito que nenhum país possui conceito de trabalho escravo tão amplo. Nem mesmo a Austrália avançou tanto, apesar de a High Court ter julgado o caso The Queen v. Wei Tang,[1] em que começou a desenvolver jurisprudência com base na moderna concepção de escravidão, que não exige trabalho forçado, nem se atém ao conceito de lock and key (fechadura e chave). Entre nós, a partir de 2003, temos dois tipos de trabalho escravo: com ou sem restrição da liberdade de locomoção. Trabalho com jornada exaustiva ou em condições degradantes caracteriza o crime sem que exista privação da liberdade. Por sua vez, há restrição da liberdade na submissão a trabalhos forçados; em razão de dívida contraída com o empregador; na proibição de usar qualquer meio de transporte por parte do trabalhador; e devido à vigilância ostensiva no local de trabalho ou à retenção de seus documentos ou objetos pessoais. Normalmente, a prática do crime ou se dá pela condições degradantes e/ou jornada exaustiva ou pela servidão por dívida.

Hoje, a definição legal de trabalho escravo é atacada por todos os lados.

Sob o pretexto de regulamentar a EC n. 81/2014, que demorou mais de uma década para se converter em realidade, o Projeto de Lei do Senado n. 432/2013, que tramitava sob regime de urgência para aprovação, visa a excluir a jornada exaustiva e as condições degradantes da definição de trabalho escravo. Na mesma toada, o Projeto de Lei da Câmara n. 3.842/12 altera o próprio art. 149 do Código Penal, a fim de, no mesmo sentido, eliminar essas modalidades.

Como consta do manifesto encabeçado pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (www.clinicatrabalhoescravo.com), “a retirada da jornada exaustiva e do trabalho em condições degradantes do tipo penal brasileiro representa retrocesso na proteção de direitos historicamente conquistados”.[2] Se o Brasil está na vanguarda mundial ao tutelar amplamente o trabalho decente, com a mudança, corre o risco de ar ocupar o último posto, ao lado de China e Índia, países que preveem as menores penas para a escravidão. Permitir que o trabalhador divida a água de beber com o gado, durma durante meses em barracas de taipa ou lona, trabalhe 15 horas por dia em fornos de carvão e faça suas necessidades fisiológicas no mato não mais deve ser punido? Por mais de uma década, tem sido considerado inissível submeter trabalhadores a condições degradantes ou a jornada exaustiva. Mudaram-se os costumes, como na descriminalização do adultério? Mudou-se a percepção de pobreza/desemprego, como quando se descriminalizou a vadiagem? É difícil explicar o que mudou na última década para justificar a pretendida mudança do art. 149.

Além disso, se for exigida sempre a restrição da liberdade para caracterizar o crime, teremos uma das penas mais brandas do mundo. A escravidão na França é punida com pena privativa de liberdade de 7 a 20 anos;[3] os Estados Unidos punem com 20 anos;[4] Itália, 8 a 20 anos;[5] Reino Unido, prisão perpétua.[6] A pena mínima de 2 anos prevista no art. 149 considera justamente as condições degradantes e a jornada exaustiva que, embora reprováveis, representam forma mais branda de redução à condição de escravo. Para as formas mais graves – com privação da liberdade – as penas deveriam ser proporcionalmente mais elevadas. Resta saber se seguiremos o modelo de Índia[7] e China,[8] cujas sanções equivalem a 1 ano e 3 anos, respectivamente, ou se adotaremos o modelo europeu.

Justificar a eliminação com o argumento de que o conceito de condições degradantes mostra-se abstrato e de difícil assimilação é — perdoem-me — balela. Como vários elementos normativos existentes no Código Penal, é mais uma expressão cujo conteúdo deve ser preenchido pelo intérprete. Não é muito mais difícil do que extrair o conceito de “decoro” e “dignidade” (artigo 140), “sem justa causa” (artigo 153) e “ato obsceno” (artigo 234).

Já ouvi dizer que o auditor-fiscal disse que a pequena espessura do colchão, a estreita dimensão da cama e a falta de armário para os empregados são condições degradantes. Claro que não são, e qualquer leigo sabe disso. A não ser que surjam concomitantemente com a água poluída servida aos trabalhadores, a comida estragada que consomem, a pernoite debaixo de barraca de palha ou ao relento. Falo de minha experiência, pois, nas dezenas de processos criminais que julguei, nunca tive dificuldade em reconhecer o que são condições degradantes de trabalho. É como aquela decisão do juiz Potter Stewart da Suprema Corte americana, quando se discutia a diferença entre arte e pornografia. “Eu não sei definir pornografia, mas não tenho nenhuma dúvida do que seja quando a vejo”.[9]

Não é preciso reduzir o conceito de trabalho escravo para retirar a efetividade da EC 81/2014. Ela já está esvaziada quando se condiciona a expropriação ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sabendo-se que os processos criminais no Brasil não têm fim. Basta lembrar que o crime que deu origem às homenagens do dia 28 de janeiro ocorreu há 12 anos e houve até agora apenas o julgamento em primeiro grau, já objeto de recurso e que certamente ará por outras instâncias e sobreviverá por sucessivos lustros. E depois dizem que o amor é que não tem fim…

As pretendidas alterações legislativas transmitem mensagem clara: amenizar a repressão de quem superexplora o trabalhador. E o Brasil correndo risco de ser condenado pela Corte Interamericana por proteção insuficiente…

d) Originalmente instituída pelas Portarias 1.234/2003 e 540/2004 do MTE, e posteriormente convertida na Portaria Interministerial n. 2/2011 do MTE/SDH, a lista suja foi criada para divulgar os nomes de empresas e pessoas físicas autuadas pelo uso do trabalho análogo ao escravo. Desde sua criação, essa relação vem sendo utilizada por bancos públicos e privados, empresas nacionais e internacionais que operam no Brasil e até mesmo importadoras de produtos brasileiros para controlar o compromisso com suas cadeias produtivas. Se produtores de carvão aparecem na lista, por exemplo, as grandes empresas automobilísticas e de eletrodomésticos podem garantir que o aço que consomem não utiliza o produto daqueles fornecedores. A divulgação da relação de nomes não obriga nenhuma instituição a agir para aplicar punições ou negar contratos e empréstimos a quem aparece na lista. No entanto, o fortalecimento do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, a partir de 2005, fez com que as principais empresas e bancos do país aderissem a este compromisso. Assim, a lista suja dificulta aspecto vital à atividade econômica: obtenção de crédito e participação no mercado.

Hoje, a lista suja está suspensa por decisão liminar do STF. Para tentar contornar as imperfeições detectadas pelo tribunal — inexistência de lei formal e impossibilidade de ampla defesa — uma nova lista foi editada pelo MTE e a Secretaria de Direitos Humanos. É a portaria 2 de 31 de março de 2015, que procura explicitar procedimentos e instâncias a serem acionadas pelos advogados do empregador acusado por trabalho escravo. Quanto à falta de lei formal, no Brasil, ausência de lei nunca foi problema. Temos, além da Lei de o à Informação (Lei 12.527/2011), a Lei 13.249/2016, que instituiu o Plano Plurianual 2016-2019. O Anexo I prevê, em seu objetivo número 974, sistema de informações e indicadores sobre trabalho escravo (Iniciativa 068G) e sistema eletrônico de monitoramento das ações do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (068H), que, por sua vez, impõe a manutenção do cadastro (Ação 57).[10] Todas essas leis fazem o óbvio, pois dispõem sobre a necessidade de dar publicidade aos atos da istração. Lei deveria haver para restringir a publicidade, focando nas exceções constitucionalmente prescritas. Posto que a lista suja traga severas consequências econômicas ao empregador flagrado explorando trabalho escravo, o mais importante é que lhe seja assegurada ampla defesa em âmbito istrativo. Assegurado este direito, a divulgação do resultado do procedimento mereceria publicidade irrestrita, como tudo que se produz na istração Pública.

Concluindo minha reflexão, quando olho para trás, noto certa semelhança entre a política de enfrentamento ao trabalho escravo e a situação da economia brasileira. Muita coisa foi construída às duras penas nos últimos 20 anos. Não foram poucos os obstáculos desde o Plano Real, as conquistas sempre árduas e os fracassos superados pela vitória seguinte.

Hoje, o risco de perder essas conquistas é real, em grau tão acelerado que chega a ser difícil acreditar. Elevada taxa de desemprego, inflação anual de dois dígitos, aumento da dívida pública, falta de credibilidade dos investidores, queda do PIB. Tem-se a impressão de que a água escorre pelos dedos sem possibilidade de reter o líquido abundante neste verão. A única diferença que percebo é que não somos influenciados pela desaceleração da China, a baixa de preço das commodities, o preço internacional do petróleo e a alta dos juros nos Estados Unidos para conseguir manter o que já existe. No enfrentamento ao trabalho escravo, só dependemos de nós e de nossas instituições para impedir que os muitos avanços dos últimos 20 anos não se convertam em desalentado retrocesso.

* O colunista Vladimir os de Freitas está de férias.


[1] Disponível neste link.
[2] Disponível em neste link.
[3] Art. 224-1 A e B e art. 225-14-1 do Código Penal francês. 

[4] US Code Chapter 77, § 1581 e 1589.
[5] Legge n. 228 de 11 de agosto de 2003, alterando o art. 600 do Código Penal italiano.
[6] Modern Slavery Act, 2015.
[7] Código Penal indiano, Seção 374.
[8] Art. 244 do Código Penal chinês.
[9] Jacobellis v. Ohio, 378 U.S. 184, 197 (1964)
[10] Dissertação de mestrado em Direito pela UFMG, em andamento, de Lília Finelli, intitulada “Construção e desconstrução da lei: a arena legislativa e o trabalho escravo”.

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