Opinião

O Supremo cansou das suas próprias atribuições — e inventou a roda

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13 de junho de 2018, 6h19

A operação “lava jato” tem sido a força propulsora das mais variadas discussões jurídicas atuais. A suprema corte, como tal, não poderia se afastar dos temas centrais que envolvem as inovações trazidas pela referida operação, ao o que terminaram por criar um novo paradigma no sistema penal brasileiro. A execução provisória da pena e suas consequências, a exasperação das novas relações fáticas que introduziram novos conceitos a institutos já consagrados como conexão e prevenção, o novel instrumento de investigação surgido com a colaboração premiada, enfim, inúmeros temas palpitantes e conectados que inundaram nossos tribunais e bateram à porta do STF.

Não demorou para se ter em pauta uma reanálise interpretativa do conceito de foro privilegiado . Desta feita, a matéria não foi imposta pelo natural escalonamento hierárquico dos recursos cabíveis ou através da utilização constitucional do Habeas Corpus. Em relação à discussão sobre o foro privilegiado, a própria suprema corte optou, por se tratar de matéria afeta à política judiciária, em trazer o tema para uma reavaliação.

Numa questão de ordem incidental, o assunto foi tratado, revestido de uma conotação jurídica constitucional, sob o pálio de se adequar a realidade atual a princípios que se chamou de estruturantes, como igualdade e república.

O ministro relator Luis Roberto Barroso chegou a enfatizar que a restrição ao foro privilegiado — o nome já fornece um conceito pejorativo —, enfim, a restrição ao foro por prerrogativa de função simboliza um “país que está abolindo privilégios”; enalteceu que a decisão contribuía para o que chamou de uma “visão republicana, igualitária, inclusiva”.

E quais seriam, de fato, esses antigos privilégios que desnaturavam essa nova visão republicana?

A instância única, com certeza, não é! Enquanto o cidadão comum é julgado monocraticamente por um juiz, tendo direito a um novo julgamento em sede de apelação, no qual se revisitam as provas e o direito, possuindo ainda a prerrogativa de discutir novamente a matéria de direito afeta ao seu julgamento nos tribunais superiores, alargando a discussão, inclusive, pela impetração de Habeas Corpus, o detentor de foro por prerrogativa de função só é julgado por um único tribunal, com uma capacidade resumidíssima de questionar o teor de um julgamento que lhe seja desfavorável.

Malgrado a instância única só prejudicasse os interesses do acusado com foro por prerrogativa de função, a decisão proferida pelo Supremo repetiu por inúmeras vezes que a prática atual impedia a responsabilização dos agentes públicos por crimes de natureza diversa. Chegou-se a afirmar que a prerrogativa de foro era a grande vilã e servia ao fim ilegítimo de assegurar impunidade.

A morosidade dos julgamentos dos processos com foro privilegiado seria, segundo o Supremo, o grande vetor da impunidade. A tramitação dos processos nessas instâncias especiais seria extremamente lenta, chegando ao ponto de alguns processos tramitarem por intermináveis dez anos na corte.

Claramente se percebe que o próprio STF considerou que um julgamento em praticamente três instâncias, submetido a uma gama enorme de recursos, seria mais rápido e eficaz do que o julgamento único naquela corte, ao ponto de se entender que o benefício auferido pelos detentores de foro por prerrogativa de função feriria de morte uma visão igualitária da prestação jurisdicional. Algo está errado! Essa conta não fecha.

O ministro Barroso, em seu voto, explicita que o “prazo médio para recebimento de uma denúncia pela Corte é de 581 dias”, calcula que “a média de tempo transcorrido desde a autuação de ações penais no STF até o seu trânsito em julgado seja de 1.377 dias”, revela dados graves dos entraves e da morosidade daquela corte sem, no entanto, tecer uma única linha sobre quais as medidas que foram adotadas — mesmo que infrutíferas — para resolver essas questões.

Como argumento subsidiário, afirmaram que outro grande gargalo da prerrogativa de foro seriam as frequentes modificações de competência. Os processos iniciavam em outra instância e eram enviados, após o acusado ar a ocupar o cargo com foro, ao Supremo. Ou em situação inversa, os processos iniciavam no Supremo e desciam posteriormente, com a perda do cago determinante do foro. Ou seja, essa sanfona processual seria determinante como causa do retardo no processamento do feito.

Essa premissa é extremamente curiosa e causa espanto, ao o que foi o próprio STF que revogou, também em questão de ordem, a Súmula 394, que entendia que a competência especial por prerrogativa de função não cessava com o fim do exercício funcional. A Súmula 394 protegia justamente a movimentação indevida do mesmo processo entre instâncias diversas, ao sabor do cargo momentaneamente exercido pelo acusado. Naquela questão de ordem, e não só nesta última, prevaleceu outra questão de política judiciária: seria contraproducente fazer permanecer na corte — aumentando sobremaneira a demanda processual — processos de acusados por foro privilegiado que não mais exercessem a função protegida.

Mas não foi essa a primeira vez que o Supremo laborou em torno de argumentos de exclusiva política judiciária. Como se sabe, adotou aquela corte o entendimento, em mais uma questão de ordem, acerca da possibilidade de se cindir um mesmo processo, uma mesma investigação conexa, separando acusado entre os que detinham e não detinham foro por prerrogativa de função, atribuindo a instâncias diversas a possibilidade de julgar separadamente o mesmo processo.

A cisão se justificaria pela pretensão de conceder maior celeridade ao processamento das eventuais ações penais e em virtude da grande complexidade dos casos.

De início, além de não ser possível priorizar uma hipotética velocidade da tramitação processual em prejuízo à busca pela verdade real dos fatos, a cisão dos feitos acabou por retardar a apuração dos delitos em análise, dada a relação de simbiose entre os fatos em investigação em processos distintos. A prova a ser produzida em um dependia necessariamente da produção probatória a ser realizada no outro feito, o que recomendava justamente o contrário: a união para uma apuração mais célere.

Diferentemente do que se poderia vislumbrar ab initio, a complexidade do caso só aumentou com a cisão, na medida em que foi criada não apenas uma dinâmica investigatória, mas inúmeras, absolutamente independentes entre si. O caso ou, pois, a ser compreendido a partir das perspectivas isoladas dos distintos feitos, dificultando severamente a compreensão global dos fatos, levando a decisões claramente contraditórias entre si.

Não se tratava apenas de uma mera conveniência quanto à apuração única, mas de evidente relação de prejudicialidade, de modo que a prova a ser realizada em relação ao detentor do foro dependia, necessariamente, da produção probatória empreendida sobre as supostas irregularidades praticadas pelos demais acusados.

Não havia como cindir a investigação sem comprometer irremediavelmente a própria apuração fático-probatória, até mesmo porque a cisão obrigava que a investigação continuasse não apenas de maneira apartada, como também em instâncias distintas.

O fato é que a decisão foi tomada para facilitar a celeridade dos processos em tramitação perante o Supremo e terminou por contribuir com sua própria morosidade e lentidão. O Supremo se viu, mais uma vez, coagido pelas próprias circunstâncias que o envolviam.

A corte maior já tinha utilizado do mesmo motivo e fundamentação quando entendeu constitucional a execução provisória da pena, ao afirmar que a lentidão dos recursos perante os tribunais superiores era vetor determinante da impunidade. Da mesma forma, a decisão foi tomada sem que nenhuma crítica recaísse no STJ ou no STF. Qual o verdadeiro motivo para que recursos especiais e extraordinários possuam julgamentos intermináveis, ao ponto de se interpretar a Constituição em flagrante esforço de retórica, para determinar uma prisão antecipada, antes mesmo do trânsito em julgado de sentença condenatória?

Como se vê claramente, a falta de aptidão do Supremo em julgar processos que necessitavam a produção de fatos e provas e a própria morosidade natural dos tribunais superiores em julgar os recursos constitucionais têm sido utilizadas como fundamento e justificativa para se interpretar a Constituição.

O legislador constituinte fez atribuir ao Supremo um papel para o qual não tinha sido criado, isso é fato, distanciando-o de seu papel maior como guardião da Constituição. A disfunção não foi remediada e se enraizou em sua própria estrutura, abalando-a ao ponto de se confeccionar uma declaração pública de mau funcionamento.

Esta é a questão fulcral! A decisão do Supremo não visava abolir privilégios, até porque inexistentes, não se tratava de enaltecer princípios estruturantes como igualdade e república, mas, sobremaneira, reformar suas próprias estruturas, fortificar seu alicerce, para que pudesse voltar a funcionar com vigor e eficácia.

Não vou dar os largos para enfrentar o problema da impossibilidade de o Supremo em modificar regras constitucionais tendo como critério o reconhecimento de uma disfunção interna, que superlotou os gabinetes e enfraqueceu sua capacidade de prestação jurisdicional. O fato é que não se tratou a decisão de nova interpretação de uma garantia, muito menos de uma ponderação de princípios, até porque não haviam outros princípios em flagrante e irremediável contradição.

A operação “lava jato” veio arrimada no interesse social, em busca do fim da impunidade em nosso país. Não se pode olvidar que a preservação do interesse social também invoca a ideia de justiça social, e, por conseguinte, de julgamentos justos.

A sociedade, como um todo, também precisa confiar no Judiciário e na justiça como instrumento democrático e republicano, consubstanciado no o a um julgamento justo, mediante a obediência às regras processuais penais (ótica formal, mas também o mais protegido possível de influências externas (ótica material).

Um dos grandes desafios atualmente colocados ao Judiciário é justamente o esforço de não ser permeabilizado pela influência de agentes externos. A prerrogativa de foro foi criada justamente para evitar, com o julgamento colegiado e sob a pena de tribunais hierarquicamente superiores, o argumento de perseguições políticas por parte do Judiciário, reverberando na população o sentimento de um julgamento imparcial.

A decisão proferida pelo STF atingiu uma classe de agentes públicos bombardeados de forma reiterada pela grande mídia, sem credibilidade e apoio da população. Agora resta esperar a concretização da história. A mitigação do princípio constitucional talvez revele apenas o acirramento das desigualdades, principalmente quando os magistrados arem a ser julgados monocraticamente pelos seus pares.

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