Quando o juiz trata o Ministério Público como incapaz ou incompetente
14 de setembro de 2018, 8h05

Ao não responder satisfatoriamente a essas questões, o juiz criminal assume um lugar e uma função que não lhe correspondem, inserindo-se assim na perspectiva do sistema (neo)inquisitório, com uma postura ativista (juiz-ator) absolutamente incompatível com a estrutura acusatória demarcada pela Constituição e, principalmente, ferindo de morte o princípio supremo do processo penal: a imparcialidade do julgador (Pedro Aragoneses Alonso e Werner Goldschmidt).
Obviamente que, para compreender esse tema, não se pode mais pensar "sistemas processuais penais" com o olhar do medievo, como fazem alguns reducionistas de plantão. É preciso situar a discussão no marco do processo penal do século XXI, à luz do contraditório (Fazzalari) e da necessidade de criarmos condições de possibilidade para a imparcialidade (pensada na sua complexidade, a partir dos problemas apontados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, mas também a partir de toda a doutrina da originalidade cognitiva, do efeito primazia e da teoria da dissonância cognitiva, já explicadas em outras oportunidades nesta coluna).
Nesse contexto surge mais um problema: qual o lugar do Ministério Público? Ora, partindo da premissa carnelutiana[3] de que o Ministério Público é uma parte artificialmente construída para ser o contraditor natural do sujeito ivo (afastada assim a contradição semântica de "parte-imparcial", além de sua ilogicidade), na transição do sistema inquisitório para o acusatório, compreende-se como é importante que tenhamos partes claramente demarcadas para a construção da imparcialidade (também com lugar do juiz) do julgador.
Ou seja, o Ministério Público é fundamental para que se tenha um processo acusatório, com a retirada de poderes do juiz (poderes de iniciativa e gestão da prova) e a demarcação de parte ativa, parte iva e julgador-não-parte (imparcial). Só assim se dá eficácia a outro princípio básico da jurisdição: ne procedat iudex ex officio.
Para tanto, é preciso que se respeite o Ministério Público enquanto parte acusadora. Sem falar que é uma instituição séria e sólida, formada por gente muito bem preparada e competente para acusar e provar sua tese. Ademais, por trás do MP ainda existe toda a polícia judiciária para auxiliá-lo na produção da prova. Então, se a polícia+Ministério Público não forem capazes de provar a acusação, será que deve o juiz "descer" na estrutura dialética para ajudá-los? A resposta é óbvia, sob pena de assumirmos que se trata de um "consórcio de justiceiros", absolutamente inquisitorial e que o processo penal virou um vale-tudo para condenar. Se for isso, então acabou o processo penal brasileiro.
O problema é que muitos juízes não compreenderam essa questão estrutural e o seu "lugar" na estrutura dialética e seguem operando na lógica inquisitorial. Exemplo disso está no juiz que abre a audiência e sai perguntando. Faz toda a inquirição-inquisição até a satisfação de suas expectativas, ando então, ao final, a palavra para as partes, que ficam com a "sobra". Reparem na inversão de valores: as partes, que são as gestoras da prova, são deslocadas para um lugar completamente secundário, quando deveriam ter o protagonismo absoluto.
O juiz que pergunta primeiro trata o Ministério Público como incompetente ou incapaz. Não há terceira opção. Respeitar as partes pressupõe que tenham liberdade tática no tocante às perguntas. Antecipar e se meter em atividade probatória típica da acusação é demonstração de profundo desrespeito. Isso porque se o Ministério Público exerce a ação penal, elege a imputação e é formado em Direito, aprovado em concurso público. Aceitar ivamente que juízes continuem perguntando primeiro significa ou comodidade em ser tratado como menos do que a Instituição merece ou não ter se dado conta da condição de curatelado/tutelado.
Pior é quando vemos promotores defendendo essa situação! Ou seja: quando um promotor aceita ou defende que o juiz deve ir atrás da prova, está assumindo sua incompetência funcional e desmerecendo o seu lugar institucional. Em última análise, não honra a toga que usa e a instituição que representa, na medida em que prega a sua absoluta desnecessidade processual.
A atividade probatória de um juiz democrático é restrita, aliás, nos termos do artigo 212, parágrafo único, do P, justamente no sentido de que poderia — respeitada a linha de argumentação já apresentada pelas partes — esclarecer alguma questão nesse sentido, sem que jamais possa inovar nem sair perguntando o que quiser. Mas como o processo penal é ainda povoado por gente que pensa a partir de mentalidade inquisitória (Jacinto Coutinho), rebaixando o lugar e a função do Ministério Público. A audiência de instrução e julgamento acaba tendo as partes como mero coadjuvantes. A luta pelo processo penal democrático pressupõe um giro de sentido que coloque cada um dos personagens em seus devidos lugares. Juiz não é Sherlock Holmes, não é investigador nem muito menos descobridor de verdades reais. Aliás, o jurista que em 2018 ainda acredita em verdade real tem sérios problemas de cognição, porque delira em suas fantasias de totalidade. Esforço por cognição adequada nada tem a ver com verdade real.
No fundo, o juiz que começa perguntando tem desprezo pela função do Ministério Público, que nem sequer pode exercer papel fundamental para angularizar o processo penal. Enquanto os filhos se postam como filhos, jamais ocupam o lugar de pai/mãe. Para se autorizar como adulto, é necessário bancar o jogo e se opor a quem finge te respeitar, mesmo em nome de bons sentimentos. Quem sabe o que é melhor para os outros sempre te trata como incapaz.
Enfim, no processo penal todo juiz que começa perguntando em uma audiência não respeita o Ministério Público, tendo-o como incapaz ou incompetente em sustentar e bancar a acusação, quase inimputável. Parafraseando Cazuza: declare guerra a quem finge te amar; ou continue sendo curatelado/tutelado por quem não te respeita, mas aceite o lugar de inferioridade.
[1] Sobre o tema, entre outros, remetemos o leitor para a obra Fundamentos do Processo Penal, de Aury Lopes Jr, publicada pela editora Saraiva, 2018, cujo capítulo I trata especificamente dessa problemática.
[2] Sobre a "gestão de expectativas" remetemos o leitor para as obras O Ponto Cego do Direito e A hora dos cadáveres adiados, de Rui Cunha Martins.
[3] CARNELUTTI, sco. Mettere il pubblico ministero al suo posto. In: Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1953, Volume VIII, Parte I, 257-264.
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