Funcionamento, vantagens e desvantagens do plea bargain nos EUA
15 de janeiro de 2019, 9h37
Qualquer análise do plea bargain nos EUA requer uma balança da Justiça para se pesar os prós e contras. O prato dos “prós” ficará mais vazio, porque a quantidade de “vantagens” é menor — mesmo que o peso seja maior. O prato dos “contras” ficará mais cheio, porque a quantidade de “desvantagens” é maior. No final das contas, é difícil dizer o que pesa mais.
Mas, diante das perspectivas de se adotar o plea bargain no Brasil, não custa saber mais sobre o funcionamento do sistema, suas vantagens e desvantagens, segundo os analistas dos EUA — que, por sinal, não arriscam uma opinião sobre se ele é bom ou não; apenas transpiram a ideia de que é uma faca de dois gumes.

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Plea bargain versus nolo contendere
O instituto do plea bargain tem uma variação nos EUA, a do “nolo contendere” (no contest). Significa “sem contestação” — isto é, o réu declara que aceita a culpa, tal como no plea bargain. Mas o faz após negociar com o promotor e juiz que a confissão judicial não terá efeitos civis.
Assim, ao contrário dos efeitos colaterais do plea bargain, a vítima de um crime não poderá usar a condenação criminal como issão de culpa em uma ação civil contra o réu (como de indenização).
No julgamento de um acidente de automóvel, por exemplo, em que existe o potencial de uma vítima mover uma ação de responsabilidade civil contra o réu, a parte acusada na ação penal pode negociar nolo contendere — ou culpado com ressalva civil. Essencialmente, é um plea bargain sem issão de responsabilidade civil.
Sob o aspecto penal, não há diferença. Tanto o plea bargain como o nolo contendere têm de ser aprovados pelo juiz. O réu, em qualquer dos casos, será condenado e sentenciado, e a condenação ficará registrada em seus antecedentes criminais (com possibilidade de “limpeza” no futuro). O réu também perderá direitos e privilégios, como o direito de votar.
Tipos de plea bargain
Plea bargain é uma barganha (ou negociação) entre o promotor e o réu, representado por seu advogado. No final, eles entram em um acordo (às vezes chamado de contrato), em que o réu concorda em confessar a culpa, em troca de uma pena menor do que a que poderia pegar se fosse a julgamento. O sucesso do réu/advogado ou do promotor depende do poder de barganha de cada um — e do tipo de plea bargain que vão fazer:
- charge bargaining: negociação da minimização da acusação. É uma transação em que o promotor concorda em reduzir a acusação mais grave original para uma acusação menos grave, em troca da confissão judicial. Por exemplo, o promotor pode propor a troca de uma acusação de violação de domicílio por uma de invasão de bem imóvel, de menor potencial ofensivo;
- count bargaining: negociação da quantidade de acusações. É uma transação em que o promotor concorda em retirar uma ou mais acusações de sua lista, mantendo as demais. Por exemplo, o promotor pode acusar o réu de roubo e agressão. Ele propõe — e o réu topa — retirar a acusação de roubo e manter a de agressão;
- fact bargaining: negociação dos fatos. Em troca da confissão judicial, o promotor concorda em celebrar acordo no qual ele pode omitir ou modificar um ou mais fatos na acusação que poderiam afetar a pena que seria imposta ao réu. Por exemplo, o réu foi preso com 5 kg de cocaína, um crime que resulta em muitos anos de prisão (pela quantidade). O promotor pode acusar o réu de posse de menos de 5 kg de cocaína, em troca da confissão de culpa, o que minimiza a pena;
- sentence bargaining: negociação da sentença. O promotor concorda em recomendar uma sentença mais leve do que seria a normal para o crime cometido, se o réu se declarar culpado ou nolo contendere. Por exemplo, o réu pode confessar a infração de resistir à prisão, e o promotor recomenda ao juiz que o sentencie a uma pena alternativa à prisão.
Papel do juiz
Para aprovar um plea bargain, o juiz deve estabelecer que a negociação entre as partes, para evitar o julgamento, é do interesse da Justiça. Há dois tipos de aceitação pelo juiz do acordo:
1) o plea bargain não cria a obrigação da corte de aceitá-lo como proposto. O acordo é apenas uma recomendação do promotor. E o réu não pode retirar o acordo se o juiz decidir impor uma sentença diferente do que a concordada entre as partes.
2) o plea bargain obriga a corte a aceitar a recomendação do promotor, uma vez que o aceitar. Mas o juiz pode rejeitar o plea bargain se discordar da sentença proposta. Nesse caso, o réu tem a oportunidade de retirar o acordo.
Muitos juízes não gostam do sistema de plea bargain, porque sentem que estão exercendo um papel ivo. Normalmente, eles não têm o independente às informações da situação, para que possam avaliar a força do caso contra o réu. O promotor e o réu/advogado controlam o resultado do caso através do plea bargain. Outros juízes não se importam com isso.
Renúncias do réu
Ao aceitar um plea bargain, o réu abre mão de alguns direitos dos réus — incluindo direitos constitucionais. O juiz tem de explicar ao réu os direitos que está renunciando, como:
- direito a julgamento pelo tribunal do júri, sem atrasos desnecessários;
- direito a um advogado;
- direito de conhecer a natureza das acusações e as provas contra ele;
- direito de não se autoincriminar;
- direito de confrontar os acusadores e de fazer inquirição cruzada.
Além disso, o juiz tem de se certificar de que o réu: 1) ite a conduta punível por lei; 2) entende e ite as acusações contra ele; e 3) sabe as consequências do plea bargain e as possíveis sentenças que podem ser aplicadas se for a julgamento.
Renúncia a recurso
Via de regra, um réu perde o direito a recurso contra a sentença, uma vez que, no processo de plea bargain, abre mão de seus direitos constitucionais e legais. Esse é o entendimento prevalecente nos tribunais de recursos do país, com base em precedente da Suprema Corte.
No entanto, a renúncia ao direito ao recurso não se aplica a todos os casos. Os tribunais de recurso têm decidido que certos direitos constitucionais ou legais podem sobreviver à renúncia estabelecida no plea bargain.
Por exemplo, o réu pode alegar que lhe foi negada assistência eficaz por advogado na fase de sentença, que foi sentenciado com base em sua raça, que a sentença excedeu o máximo permitido pelas diretrizes legais. Nesse caso, o processo será revisto por tribunal de recursos, a despeito da renúncia explícita no plea agrement.
Vantagens do plea bargain
Eliminação de julgamentos: indiscutivelmente, a grande vantagem do plea bargain é o esvaziamento dos fóruns criminais e dos tribunais superiores. A percentagem de processos criminais que terminam em “pizza” jurídica — ou em acordo — depende da fonte de informação e do entusiasmo dos defensores do sistema. Uns dizem que 90%, outros que 95%, e outros que 98% dos casos são encerrados com o acordo. Por outro viés, diz-se que apenas 10% ou 5% ou 2% dos casos criminais vão a julgamento nos EUA. A proporção 95%/5% é a mais popular.
Tramitação rápida: com as pressões de custos e cargas de trabalho, promotores (principalmente) e juízes se sentem estimulados a promover a tramitação rápida de processos criminais. Julgamentos levam dias, semanas ou mesmo meses, enquanto a negociação e fechamento do contrato de plea bargain podem ser resolvidos em minutos ou horas.
Economia de recursos: os estados e a istração dos tribunais agradecem penhoradamente a economia de recursos humanos e financeiros (e de tempo), quando se evita os custosos julgamentos.
Mais sucesso com menos trabalho: nos EUA, sucesso para promotores na carreira é manter uma alta taxa de sucesso em condenações. Com o plea bargain, a condenação é certa. Além disso, evitam o trabalho de lidar com o ônus da prova. Alguns advogados também preferem fechar um acordo.
Esvaziamento das prisões: embora os réus acabem na prisão de qualquer maneira, na maioria dos casos, a pena será menor. Isso aumenta a rotatividade e, por consequência, reduz o tempo de permanência dos réus nas prisões.
Bom negócio para réus culpados: nos EUA, onde as penas de prisão podem ser draconianas, a redução das acusações ou da sentença pode ser um bom negócio para os réus que sabem que são culpados de algum crime.
Caso encerrado: assim que as partes chegam a um acordo e ele é aprovado pelo juiz, o caso está encerrado. Se o réu já está preso porque não pôde pagar a fiança, pode ser condenado ao tempo cumprido ou ter a sentença suspensa. O acordo também alivia a tensão causada pela incerteza de um desfecho ruim no julgamento, principalmente quando não se tem ideia do que pode acontecer. Isso permite ao réu lidar com a consequência de seu crime imediatamente, em vez de se preocupar com isso durante meses.
Vítimas e testemunhas: escapar do trauma e da pressão de um julgamento muitas vezes é uma opção desejada por vítimas e testemunhas. Alguns cidadãos, principalmente os aposentados, gostam de servir como jurados. Mas a maioria prefere trabalhar ou ficar em casa.
Desvantagens do plea bargain
Enorme risco para inocentes: indiscutivelmente, a grande desvantagem do plea bargain é o mal que pode causar a réus inocentes. Se o réu sabe que é inocente e acredita na absolvição, corre o risco de ser condenado e receber uma pena maior do que a razoável. Ele pode ser penalizado por não fazer o acordo.
Em outras palavras, não há complacência para o réu inocente. Há para o criminoso confesso. E ao contrário do criminoso, que obtém propostas de redução de acusações, o promotor tende a relacionar todas as acusações que estão a seu dispor. Pode incluir até a acusação de que o réu (inocente) não mostrou qualquer remorso. Como pode um réu mostrar remorso por um crime que não cometeu?
Custo da inocência: não é raro que réus inocentes aceitem fazer o acordo por medo. Se forem a julgamento, poderão pegar uma pena dura, em vez de uma leve. O sentimento de que o resultado de um julgamento pode ser muito pior do que o do plea bargain é uma espécie de “custo da inocência”, segundo a Associação Europeia de Direito e Economia.
Estudos mostraram que, nos EUA, 56% dos réus inocentes aceitam o acordo de plea bargaining para não serem afastados por muito tempo de suas famílias e da sociedade em geral. A “penalidade por julgamento” foi inventada para estimular criminosos a fazer o acordo. Mas, ironicamente, penaliza os inocentes.
Porém, os réus que fazem o acordo terão uma condenação com a “ficha” suja. Perderão alguns de seus direitos e terão dificuldades para arranjar emprego. Nos EUA, os empregadores têm o fácil aos antecedentes criminais de candidatos a emprego.
Blefe da Promotoria: muitas vezes, a negociação entre promotores e réus/advogados é séria e bem-intencionada. Mas em todos os ambientes há cobras criadas. Um promotor pode blefar sobre seu poder de fogo para obter um acordo, sabendo que seu caso, na verdade, é fraco.
As provas podem não ser incontestáveis, as testemunhas podem não ser dignas de crédito, a prova forense pode não ser convincente e o réu pode ter a simpatia dos jurados. Assim, ao aceitar o plea bargain, o réu pode aceitar uma condenação que o promotor dificilmente conseguira em um julgamento.
Por exemplo, se a probabilidade de o promotor ganhar uma causa é de apenas 25%, ele pode discutir com o réu uma possível pena de 10 anos de prisão e fechar um acordo para apresentar uma acusação mais leve, com pena de apenas um ano de prisão. Mas, se o acordo não fosse aceito, ele provavelmente desistiria do caso.
Esse tipo de situação é particularmente grave nos EUA, porque o sistema criminal ite a autodefesa de réus que não podem contratar um advogado ou são representados por um advogado sobrecarregado de trabalho e sem tempo ou energia para enfrentar um julgamento.
Coerção e “tortura”: a experiência dos EUA mostra que a coerção existe — sempre existiu e existirá — na negociação do plea bargain. O professor John Langbein, da Faculdade de Direito de Yale, argumenta que o sistema moderno de plea bargaining dos EUA é comparável ao sistema medieval de tortura na Europa.
“Ninguém vai esmagar os membros de seu corpo se você se recusar a confessar nem exagerar na quantidade de anos extras que vai ar na prisão. Mas o plea bargain, como a tortura, é coercitivo. Como os europeus medievais, os americanos estão operando, agora, um sistema processual que envolve condenação sem julgamento.
Dilema do prisioneiro: um trabalho teórico sobre o “dilema do prisioneiro” mostra porque o plea bargain é proibido em muitos países, segundo a Wikipédia. O cenário do dilema do prisioneiro se aplica frequentemente: é do interesse de dois suspeitos confessar e testemunhar um contra o outro, quando, na verdade, eles poderiam colaborar um com o outro.
A pior situação acontece quando um deles é inocente, e o outro, culpado. O inocente não terá nenhuma vontade de confessar. O culpado, ao contrário, tem um grande incentivo para confessar e testemunhar contra o inocente (falso testemunho, naturalmente), para pegar uma pena menor.
Favorecimento a ricos: réus endinheirados, acusados de crimes de fraude ou corrupção, contrata um advogado especializado em contencioso, incluindo negociação. Desde logo, isso protege o réu contra pressões para fazer um acordo desvantajoso. Ao contrário, é possível que o negociador experiente consiga convencer o promotor a aceitar um plea bargain que é favorável a seu cliente, mas não é do interesse público nem do interesse da Justiça porque não reflete adequadamente a seriedade do crime.
Tradução de plea bargain
Plea bargain tem aparecido em inglês nas discussões recentes porque ainda não tem uma tradução aceita no Brasil. É mais comum uma explicação: o plea bargain é um acordo entre a acusação e a defesa, em que o réu faz uma confissão judicial em troca de uma pena mais branda, para evitar o julgamento.
O Dicionário de Direito, Economia e Contabilidade de Marcílio Moreira de Castro sugere traduzir plea bargain por “transação penal”. Afinal, plea bargain pode ser definido como uma transação penal.
Porém, o entendimento de plea bargain nos EUA conflita com o conceito de transação penal no Brasil. Por exemplo, no Brasil, a transação penal é uma medida “despenalizadora”. Nos EUA, é uma medida penalizadora — embora amenizadora da pena. No Brasil, a transação penal se aplica a infrações penais de menor potencial ofensivo. Nos EUA, para qualquer crime. No Brasil, a lei só cobre infrações com pena máxima de até dois anos. Nos EUA, pode incluir até prisão perpétua: um réu pode aceitar uma pena de prisão perpétua para escapar da pena de morte.
Com informações dos sites Nolo.com, HG Legal Resources.org, Wikipedia, FindLaw, do Legal Information Institute e do Departamento de Justiça dos EUA.
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