Liberdade de expressão e redes sociais virtuais
12 de abril de 2020, 13h45
Nos últimos dias, temos acompanhado as notícias da pandemia global da Covid-19, o conhecido coronavírus, Trata-se de uma situação excepcional, cujas repercussões sociais e econômicas, bem como a restrição à liberdade, inclusive a contratual e a da propriedade individual, não encontram paralelo na história brasileira recente.
Em comparação com a última situação parecida vivida pelo mundo, com o H1N1, chama a atenção que na atual o volume de informações é muito maior e as redes sociais e os aplicativos de mensagem já são elementos incorporados à nossa realidade há tempos.
Por isso, certas singularidades.
A informação tem um enorme volume e chega até nós em forma de textos, vídeos, fotos, “memes”, “gifs”, “figurinhas”. Até o tempo parece ar mais rápido durante o isolamento social da quarentena.
E, nesse ambiente de hiperinformação, que já trouxe alterações paradigmáticas a todos os campos e episódios de nossas vidas — trabalho, família, política, etc. —, este texto tem por recorte a (ir)responsabilidade do conteúdo inserido por terceiros nos sites de redes sociais. No último 18 de março, o Twitter anunciou uma modificação na sua política de uso para vetar conteúdos que forem eventualmente contra informações de saúde pública orientadas por fontes oficiais.
Afinal, o provedor de aplicações pode unilateralmente apagar as postagens realizadas por seus usuários, especialmente quando contrariam as orientações do Ministério da Saúde? É censura? E a liberdade de expressão?
Sabe-se que são ao menos três os tipos de regras sobre retirada de conteúdo: 1) Desregulamentação ou irresponsabilidade, ou seja, o provedor não se responsabiliza pelo conteúdo inserido pelos usuários, sendo o usuário o único responsável; 2) Regulamentação contratual, em que o site é obrigado ao menos a determinar através de seus termos de uso quais conteúdos podem ou não ser postados, também chamado de sistema de autotutela; 3) Sistema da responsabilização do provedor pelo conteúdo inserido por terceiros, sendo este subdividido em: 3.1) Responsabilidade civil objetiva ou independente da culpa pelo provedor, em que este se responsabiliza solidariamente com o causador do dano pela informação consumida pelos usuários; 3.2) O do notice and takedown extrajudicial, adotado como regra na Europa e nos Estados Unidos, em que o provedor é obrigado a manter ao menos uma forma rápida de aviso de conteúdo ilícito (o popular link "denuncie aqui"), devendo ser responsabilizado pela ilicitude do conteúdo caso não o remova em prazo razoável; e, finalmente, 3.3) O notice and takedown judicial, sistema adotado no Brasil — Artigo 19, MCI —, em que, para proteger a liberdade de expressão de quem posta e a livre inciativa de quem istra a rede social, o provedor somente será responsabilizado subsidiariamente se houver uma ordem judicial que contenha o local específico da informação que o estado-juiz — e somente ele! — considere como ilícito se, após notificado, não retirar a informação em tempo razoável.
A regra brasileira se consolidou nos últimos anos, tendo sido em grande medida lapidada pela jurisprudência, que trouxe regras sobre a abrangência do conteúdo específico, cabendo à vítima o ônus da indicação do link ou da URL, ou que o tempo razoável seja, em regra, 24 horas.
Pela doutrina, críticas de que o sistema brasileiro tem por resultado uma espécie de superproteção do provedor de internet, dando-lhe ampla liberdade contratual, escolhendo quais conteúdos considera ilícito ou não e em quanto tempo pode retirá-los, combinado com um sistema de responsabilidade subjetiva que incrementa os riscos aos usuários das plataformas, expondo-os — não só individualmente, mas também como coletividades — a toda a sorte de informações perigosas, nocivas, preconceituosas, falsas, etc. Um verdadeiro conteúdo tóxico, prejudicial aos indivíduos e à sociedade.
Por detrás dessas regras, ao fim e ao cabo, dois valores fundamentais: a liberdade de expressão de quem fala (e permite que se fale) versus a proteção de quem escuta.
Duas estratégias nessa ponderação de valores sempre foram elencadas pela doutrina.
Nos EUA, o free speech abrange até os discursos extremos, de ódio, sem prejuízo da liberdade de quem responde. Lá, sempre houve mais liberdade para falar o que se quer, e a maior possibilidade de ouvir o que não se quer seria a maior consequência.
Na Europa continental, por sua vez, aponta-se que há um ambiente de maior aceitação de limites jurídicos a priori para os discursos de ódio. Logo, no velho continente, o "quem fala o quer…" não é bem assim. Há coisas que sequer deveriam ser ditas. Todo mundo sabe que é proibido!
Como exemplos, a Section 230 do U.S. Code comparada à Lei Alemã (NetzDG), de 2017, que traz uma série de obrigações aos provedores de aplicações, sendo a mais emblemática a que estabelece multa de até 50 milhões de euros para os que não retirarem conteúdo sabidamente fruto de discurso de ódio em um prazo de 24 horas após notificado extrajudicialmente.
Na Alemanha, o Twitter deletou o post e suspendeu a conta de uma parlamentar do partido de extrema direita "Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland — AfD)" que criticava o fato de que felicitações de Ano Novo pela Polícia de Colônia eram comunicadas também em língua árabe, referindo-se aos imigrantes muçulmanos como "horda de bárbaros, gangsters e estupradores".
O fundamento da rede social, entretanto, parece ter sido o mesmo que lastreia a decisão da retirada unilateral de conteúdo em todo o mundo: violação das "regras da comunidade".
No Brasil, portanto, o artigo 19 do MCI não impede o provedor de retirar o conteúdo que ele mesmo considere ilícito. Apenas o deixa imune a priori da responsabilidade enquanto não notificado judicialmente. Quando o faz, age, em principio, amparado pelo poder de polícia assegurado pelas condições gerais dos contratos celebrados com os usuários, reforçadas pelo interesse público no sentido da observância das diretrizes dos órgãos oficiais de saúde.
Aguarda-se o posicionamento do STF através do tema de repercussão geral 987, vinculado ao Recurso Extraordinário 1.037.396/SP, relatado pelo ministro Dias Toffoli, esperando-se que os fatos recentes façam a Corte refletir o quanto um usuário de rede social, consumidor do serviço nos termos do CDC, está sendo desproporcionalmente exposto a riscos.
Fica a pergunta: "Ainda que retirado o conteúdo, quem viu não sofreu danos? E a responsabilidade civil pela reparação destes danos?".
Ouvir o que não se quer talvez não seja o suficiente.
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