Direto do Carf

As pedras no meio do caminho da aplicação da súmula nº 1

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  • é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

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16 de dezembro de 2020, 8h00

No meio do caminho de Drummond tinha uma pedra. Já no meio do caminho da Súmula Carf número 1 tem várias pedras.

Spacca
A coluna de hoje tem por objetivo apresentar algumas dessas pedras, que representam obstáculos para a aplicação tranquila do instituto de concomitância, consolidado no antigo enunciado sumular nº 1 do Carf o qual, à primeira vista, não esbanjaria maiores elucubrações ou dificuldades. Vejamos:

Importa renúncia às instâncias istrativas a propositura pelo sujeito ivo de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamento de ofício, com o mesmo objeto do processo istrativo, sendo cabível apenas a apreciação, pelo órgão de julgamento istrativo, de matéria distinta da constante do processo judicial.

Vale realçar que são recorrentes as situações em que existirá a concomitância apenas parcial.[1]  É comum, por exemplo, que pedido de declaração de inexistência de relação jurídico-tributária esteja sob pendência de tutela judicial. Assim, o contencioso istrativo sobre os valores cobrados a título de tributo (principal) em lançamentos de ofício para prevenir decadência de valores decorrentes dessa mesma relação jurídico-tributária estará em concomitância com a ação judicial. Porém, eventuais temas de defesa apresentados pelo contribuinte exclusivamente no bojo do processo istrativo a respeito da multa cominada indevidamente pelo lançamento tributário (cf. artigo 63 da Lei n. 9.430/96), nesse nosso exemplo, não estariam sob apreciação do Poder Judiciário e, por isso, não atrairiam os efeitos da Súmula Carf nº 1.[2]

Pois bem. Salta aos olhos a função precípua do enunciado: vez que a decisão judicial invariavelmente prevalece sobre a decisão istrativa, haja vista o princípio da jurisdição una adotado por nosso sistema jurídico, em sendo tomada pelo contribuinte a opção pelo litígio na esfera judicial — seja por ação de cunho preventivo ou repressivo-,[3] não faz mais sentido a permanência da discussão no âmbito istrativo. Economia processual e coerência jurisdicional ficam assim preservadas. Inclusive eventuais decisões favoráveis ao sujeito ivo da obrigação tributária proferidas no âmbito istrativo serão desconsideradas em nome da prevalência da decisão judicial, conforme determina o §5º do artigo 78 do Anexo II do Regimento Interno do Carf,[4] como ocorreu no caso analisado no Acórdão 9303-007.275.  

Dentro desse contexto inicial já aparece a primeira questão enfrentada pelo Carf sobre o tema: existe concomitância mesmo quando a ação judicial é extinta sem julgamento de mérito?

A literalidade da súmula nº 1 sugere que o único requisito para que se configure a renúncia à instância istrativa seria o ajuizamento da ação perante o Poder Judiciário, sendo desimportante o resultado do provimento judicial. Tal entendimento já foi abraçado por precedentes do Carf (e.g. Acórdãos 2202-00.948, 3102-01.222 e 1102-001.222). Contudo, também encontramos decisões no sentido de que a desistência pelo contribuinte da demanda judicial afasta a aplicação da Súmula Carf nº 1 (e.g. Acórdão 9303-01.542), assim como a extinção da ação pelo próprio Poder Judiciário, por ausência de pressupostos processuais ou condições da ação (e.g. Acórdãos 3301-001.858 e 3201-03.711), uma vez que aqui se estará diante de sentença terminativa — e não resolutiva de mérito —, a qual não faz coisa julgada material. A ideia fundadora desse entendimento é de que a concomitância se observava no momento do julgamento do processo istrativo para evitar decisões conflitantes (cf. Acórdão CSRF/02-03.690).

Interessante, nesse contexto, destacar a recente decisão proferida pela 1ª Turma da CSRF (Acórdão nº 9101-005.089).

No julgado, inicialmente foi destacado que o §3º do artigo 67 do Ricarf veda o conhecimento de recurso especial tirado contra Acórdão que aplica entendimento estampado súmula. O relator afirma que, entretanto, a "ora Recorrente, de maneira diligente e dialética esclarece, tecnicamente, que o objeto de sua insurgência é precisamente a ausência de hipótese, nessa contenda, para a correta aplicação da Súmula Carf nº 1". Superada a limitação regimental, ou-se à investigação sobre como se deu o reconhecimento da concomitância nos Acórdãos recorrido e paradigma. O relator realça que o contribuinte permaneceu litigando perante o Poder Judiciário — inclusive por meio de apelação contra sentença que extinguira o processo sem julgamento de mérito – ao mesmo tempo em que apresentava suas razões de defesa istrativamente. Essa situação fática fez com que o colegiado entendesse que o caso concreto não poderia ser comparado aos paradigmas utilizados, os quais versavam sobre episódios de desistência da ação judicial pelo contribuinte. Por conseguinte, o recurso especial não foi conhecido. Ou seja, aqui a Turma entendeu que existem diversas hipóteses de extinção de processos potencialmente concomitantes, os quais têm diferentes efeitos para estabelecer a sua ocorrência.

Uma segunda pedra que surgiu no caminho do Carf foi o significado do termo "objeto" constante da citada súmula. Como se constata, tecnicamente, que o objeto do processo judicial é o mesmo do istrativo?

Valendo-se da doutrina do direito processual acerca do conceito de litispendência, podemos encontrar julgados do Conselho atentos às noções de "partes", "pedido" e "causa de pedir" como delimitadores da demanda jurisdicional (e.g. Acórdão 2402-006.002), conforme entendimento adotado inclusive pela istração Tributária no Parecer Normativo Cosit nº 7, de 22 de agosto de 2014. Assim, somente impedirá o curso regular do processo istrativo a existência de processo judicial relativo a demanda idêntica, qual seja, aquela em verificam as mesmas partes, a mesma causa de pedir (englobando a causa de pedir próxima – ou fundamentos de fato — e a causa de pedir remota — ou fundamento de direito) e o mesmo pedido (postulação incidente sobre o bem da vida). Contudo, tal aferição na prática muitas vezes é controvertida, como se observa do Acórdão 9303-006.311, no qual o Colegiado teve que analisar pormenorizadamente a forma com que o conceito de faturamento e a inconstitucionalidade da Lei nº 9.718/1998 foram abordados na ação judicial e no processo istrativo, concluindo, no caso, serem diversas e, por isso, não ser aplicável a súmula Carf nº 1.

Outra controvérsia diz respeito à conduta a ser tomada pelo Carf diante da superveniência de decisão judicial transitada em julgado naquele processo judicial que ensejaria a concomitância com a demanda istrativa. Nos Acórdãos n.º 3402-005.549 e 3402004.987, foi julgado que inexiste concomitância quando antes do advento de decisão istrativa definitiva, "sobrevém sentença transitada em julgado em processo judicial onde se discutia o mesmíssimo débito combatido na instância istrativa". Nesta hipótese, considerou-se que não se trata de concomitância, mas sim de "aplicação dos efeitos do trânsito em julgado da decisão judicial para a resolução do correlato processo istrativo". Em sentido oposto for proferido o Acórdão 9303-008.239, reconhecendo a concomitância e afastando a aplicação a decisão judicial, ao mesmo tempo em que, sem adentrar nas limitações postas no Parecer Normativo Cosit 2/2016,[5] afirma que "havendo o trânsito em julgado da demanda judicial de forma favorável ao sujeito ivo, extinguindo a obrigação tributária, como é o caso dos presentes autos, a declaração de concomitância não traz qualquer prejuízo às partes, pois caberá à istração Tributária cumprir a decisão judicial definitiva de mérito".

Ainda nesse contexto, sobressai a situação enfrentada pelo Acórdão 9101-004.659.[6]  De início, o voto vencedor supera o emprego do instituto da concomitância no caso concreto,[7] porém assume que o processo istrativo é umbilicalmente ligado ao judicial em questão. Diante da pendência de decisão final da ação judicial, o voto vencedor destaca que inexiste previsão regimental para a suspensão do processo no contencioso istrativo federal, no intuito de aguardar o resultado da tutela judicial. Mas esclarece que a situação configura uma questão de prejudicialidade externa, devendo então ser promovida a suspensão do processo istrativo nos moldes do artigo 313, inciso V, alínea "a" do Código de Processo Civil,[8] assim como do seu artigo 15,[9] o qual determina a aplicação subsidiaria do C ao PAF.[10]

O assunto das ações coletivas também implica em problemas atinentes à concomitância. Afinal, é preciso que os requisitos legais relativos à substituição processual estejam preenchidos para que um determinado contribuinte possa se valer de uma decisão judicial proferida em ação proposta por sua associação, por exemplo. Nessa toada, o Acórdão 3301-007.622, valendo-se das decisões proferidas pelo STF com repercussão geral a respeito da matéria (RE 573.232/SC e RE 612.043/PR), consignou que: i) "a legitimação processual da Associação Civil para propor ação coletiva somente é conferida por autorização expressa e prévia ou concomitante à propositura da ação judicial"; ii) "eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes da relação jurídica juntada à inicial do processo de conhecimento, e desde que residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador". Constatando então que a decisão proferida pela DRJ não conheceu da impugnação sob o argumento da existência de concomitância com ação coletiva proposta por Associação Civil sem a presença dos requisitos acima elencados, o Colegiado decretou a nulidade do acórdão recorrido, para que uma nova decisão fosse proferida a respeito dos argumentos de mérito trazidos pelo contribuinte em sua defesa istrativa.[11]

Finalmente, tema que foi amplamente debatido na jurisprudência do Carf e hoje encontra-se praticamente pacificado é o da não configuração da concomitância entre o mandado de segurança coletivo, por substituto processual, e o processo istrativo promovido pelo substituído. O argumento central desse entendimento funda-se no artigo 22 da Lei n. 12.016/2009, segundo o qual "o mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva", nos dizeres do Acórdão 9303-010.579 (no mesmo sentido foram proferidos os Acórdãos 3201-006.395, 2401-006.924, 1302-003.518 e 9101-003.676).

De tudo quanto exposto, vemos que as pedras no caminho da aplicação da Súmula Carf nº 1 são diversas. Algumas já foram chutadas para fora da sua agem jurisprudencial, como o conceito de "objeto" constante do texto sumular; ou ainda a inexistência de concomitância entre o processo istrativo e mandado de segurança coletivo promovido por substituto processual do contribuinte. Todavia, outras pedras permanecem fazendo com que o Carf tropique em decisões conflitantes, como a concomitância na hipótese de extinção da ação judicial sem julgamento de mérito; bem como a necessidade de aplicação da decisão judicial transitada em julgado, oriunda do processo concomitante perante o Poder Judiciário.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Lembremos que a Súmula em apreço nasceu sob a vigência do Ato Declaratório COSIT nº 3, de 1996, que já dispunha que “quando diferentes os objetos do processo judicial e do processo istrativo, este terá prosseguimento normal no que se relaciona à matéria diferenciada (p. ex., aspectos formais do lançamento, base de cálculo etc.).”

Tal ato foi revogado pelo Parecer Normativo COSIT nº 7, de 2014, o qual corroborou o ponto nos seguintes termos: “9.6. Seguindo essa lógica, caso o processo istrativo fiscal contenha pedido mais abrangente que o do processo judicial, ele deve ter seguimento somente em relação à parte que não esteja sendo discutida judicialmente. Se, por exemplo, a ação judicial requer a anulação de um lançamento em relação a determinada multa, mas nada diz sobre a base de cálculo do tributo, e a impugnação istrativa tratar também da discussão sobre a base de cálculo, esta parte deverá ser objeto de julgamento istrativo.”

[2] Outro exemplo sobre a concomitância parcial, em que a multa de ofício sobre lançamento de direito antidumping, foi apreciada no Acórdão 3402-004.834.

[3] O que demonstra como elemento identificador da concomitância a causa de pedir, e não unicamente o pedido formulado, pois do contrário jamais haveria concomitância entre ações preventivas e processo istrativo tributário.

[4] “§5º Se a desistência do sujeito ivo for total, ainda que haja decisão favorável a ele com recurso pendente de julgamento, os autos deverão ser encaminhados à unidade de origem para procedimentos de cobrança, tornando-se insubsistentes todas as decisões que lhe forem favoráveis

[5] O qual limita a possibilidade de recurso do contribuinte contra a liquidação da decisão pela autoridade fiscal de origem.

[6] No mesmo diapasão, ver a Resolução 3402-001.362.

[7] O entendimento que prevaleceu foi que inexistia concomitância in casu porque o Contribuinte requereu istrativamente a suspensão do PAF, além da não aplicação de multa isolada aos débitos de estimativas não recolhidas, pedidos esses que inexistiam perante o Poder Judiciário

[8]  Art. 313. Suspende-se o processo: (…)

V – quando a sentença de mérito:

a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente;

[9] Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou istrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

[10] O voto vencedor conclui então que: “Não há, assim, identidade de objetos entre a ação judicial e o processo istrativo. O desfecho da ação judicial pode, sim, resultar na exoneração do crédito tributário aqui constituído. Porém, se a Contribuinte não lograr êxito no âmbito judicial, a exigibilidade do crédito tributário dependerá da solução, neste contencioso istrativo especializado, das questões ainda em debate nestes autos. Assim, voto no sentido de converter o presente processo em diligência, determinando o seu sobrestamento para aguardo da decisão final acerca dos efeitos do Mandado de Segurança preventivo n. 0015243-17.2012.4.05.8300 no presente PAF.”

[11] Realçando que “a doutrina entende que a propositura da ação coletiva não impede o manejo de ações individuais com o mesmo objeto visado pela demanda coletiva sem que ocorra o instituto de litispendência, previsto no artigo 337, §§1º a 3º.”, foi proferido o Acórdão 3401-008.161.

Autores

  • é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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