Novas abordagens para os programas de compliance anticartel
16 de agosto de 2021, 8h00

Um relatório da OCDE deste anoi mostrou que a instauração de investigações de cartéis por agências antitruste no mundo caíram de mais de 600 por ano em 2015 para pouco mais de 500 em 2019. De forma mais representativa, os pedidos de acordos de leniência em casos de cartéis, talvez a principal ferramenta de detecção dessa conduta nas últimas décadas, despencaram de aproximadamente 600 por ano em 2015 para pouco menos de 300 por ano em 2019.
Evidentemente, como alerta a própria OCDE, cartéis são por natureza uma atividade secreta, de modo que não existe uma estatística que indique a efetiva quantidade de cartéis ocorridos a cada ano. Os números acima, portanto, podem indicar várias coisas. A queda significativa no número de acordos de leniência a nível global tem sido alvo de grande discussão entre especialistas de política antitruste, e em tese pode apontar para diferentes diagnósticos. Um deles é que há algo potencialmente errado com os programas de leniência e sua atratividade – ou seja, os cartéis continuam operando por aí em grandes números, mas os envolvidos simplesmente não estão mais os reportando espontaneamente às autoridades da mesma forma como o faziam até recentemente. Como é de se imaginar, isso seria um problema sério em termos de políticas de combate a cartel.
Um outro diagnóstico possível ao se observar a queda do número de investigações de cartel e acordos de leniência é de que simplesmente pode haver menos cartéis ocorrendo no mundo. Isso seria ótima notícia para as políticas de combate a cartel. Significaria que todos os esforços de agências antitruste ao longo dos últimos anos deram resultado. Seria, também, um indicativo de que os programas de compliance concorrencial adotados por empresas em inúmeros países durante vários anos, muito encorajados pelas políticas agressivas de agências de concorrência, incluindo a brasileira, tiveram sucesso.
Isso não é impossível. De fato, as ferramentas e esforços investigativos de autoridades de defesa da concorrência se intensificaram significativamente nas últimas décadas, e as sanções aplicadas a cartéis em grande parte dos países tem sido severas, com potencial dissuasório palpável. No mesmo sentido, é visível que corporações de toda espécie incrementaram muito seus esforços de compliance concorrencial.
A OCDE não afasta essa possibilidade positiva, mas tampouco é muito otimista. A conclusão da Organização é de que os dados não mostram de forma tão clara que a efetividade das agências e programas de compliance tenham melhorado de forma significativa:
The obvious limitations of the available data and studies do not allow clear conclusions on the effectiveness of agency and business compliance efforts. At the same time, no data sources are available that would allow to draw the conclusion that business competition compliance has improved significantly (…).ii
Pesquisas citadas pelo escritório Slaughter&May na publicação Legal 500 são ainda menos otimistas:
[R]esearch recently published on behalf of the (…) (CMA) suggests that, at least in the UK, there is still a real lack of awareness within the business community regarding key tenets of antitrust law. The research (…) found that 77% of those surveyed did not understand competition law well and that only 18% ran any training relating to competition law. In a finding that may surprise many antitrust lawyers, 41% of those surveyed stated that they did not know that attending meetings in which competitors agreed prices – perhaps the quintessential example of cartel behaviour – was illegal. (…) (…) [A] similar assessment conducted a few years ago (…) in the USA revealed that almost two thirds of companies surveyed were not conducting antitrust audits that would meet the standards of the US Department of Justice.iii
Seja qual for o diagnóstico, há razoável consenso de que os esforços de compliance anticartel devem continuar e ser intensificados. Sob uma ótica de política pública, o self-compliance das empresas, em conjunto com os esforços de fiscalização das autoridades, ainda é o melhor meio de prevenir condutas colusivas ilegais. Sob uma ótica individualista, estejam ou não os cartéis se mantendo ou decaindo, nenhum departamento jurídico quer que justamente a sua companhia acabe no polo ivo de um processo sancionatório em razão de condutas indevidas ou questionáveis de seus executivos e funcionários.
O que nos leva à questão de como montar um bom programa de compliance antitruste de prevenção de cartéis, especialmente em um cenário atual no qual novos mecanismos de colusão surgem, e em que as próprias autoridades de concorrência tem rapidamente mudado a sua forma de classificar e investigar cartéis.
A cartilha básica da maior parte dos programas de compliance concorrencial tem como medidas usuais: (i) comprometimento dos envolvidos, preferencialmente top-down, (ii) identificação de riscos, (iii) mitigação dos riscos (introdução de políticas, procedimentos, treinamentos e comunicação) e (iv) monitoramento e revisões.
Alguns detalhes adicionais, contudo, podem fazer grande diferença na efetividade do programa. Seguem abaixo alguns exemplos.
Um problema usual e central na construção do compliance é, nas palavras da OCDE, o “foco na forma ao invés dos reais riscos de cartel”.iv É talvez a falha mais comum introduzir um programa de compliance pré-fabricado apenas para que se possa dizer que ele existe. “Os programas mais efetivos tendem a ser feitos sob medida para os riscos específicos que a companhia enfrenta”v, lembram os advogados do Slaughter&May. É claro que o desafio, aqui, é achar um equilíbrio com os evidentes custos empresariais de todos os tipos de se fazer um programa específico e bem-feito.
Talvez a forma mais efetiva de autodetectar um potencial cartel dentro da companhia seja, como sugerem Murphy e Kolasky, “auditoria e monitoramento desenhadas para detectar desvios”.vi Normalmente, achar desvios requer ativamente procurar por eles, o que hoje é altamente auxiliado por técnicas e ferramentas de investigação interna bastante efetivas. Ainda assim, mesmo entrevistas e buscas simples são capazes de revelar muitas coisas, quando se faz as perguntas certas. E para a execução dessa espécie de monitoramento, com respostas adequadas aos resultados encontrados, ajuda muito a presença de um “compliance officer empoderado respondendo ao board”, nas palavras dos mesmos autores.
Um ponto interessante levantado por Murphy e Kolasky é que ”pouco ou nada é dito sobre incentivos, o direcionador mais forte da conduta corporativa”.vii De fato, um programa de compliance que deseje ser significativamente efetivo deveria avaliar se os próprios incentivos e sinais da política comercial dados a funcionários e executivos não são de um tipo que acaba encorajando condutas anticompetitivas.
Finalmente, e muito importante, os programas de compliance clássicos desenvolvidos ao longo dos anos foram majoritariamente pensados tendo por base cartéis igualmente clássicos. Para usar a imagem comum em livros texto de direito concorrencial tradicionais, uma sala cheia de fumaça com executivos concorrentes combinando preços e dividindo mercados. Os chamados hard-core cartéis. Justiça seja feita, o compliance antitruste avançou o suficiente para contemplar grupos de e-mails substituindo as salas com homens fumando charutos, mas o fato é que os programas de compliance tradicionais ainda não tiveram tempo de se adaptar aos novos tipos de investigações de cartel que tem sido trazidos por autoridades antitruste mundo afora.
Talvez até mesmo motivadas pelo declínio parcial, demonstrado acima, de grandes investigações capazes de detectar cartéis hard-core (embora estejam longe de se extinguir), autoridades de defesa da concorrência no Brasil e no mundo têm devotado grande atenção a outras formas de condutas coordenadas, que em certos contextos têm sido reputadas como potencialmente ilegais por certas agências. É o caso de condutas de trocas de informações sensíveis entre concorrentes, cartéis hub-and-spoke (por exemplo, entre distribuidores intermediados por seu fornecedor comum), o uso de algoritmos de precificação e acordos na seara trabalhista (como os de no-poach). O compliance anticartel precisa evoluir também.
i OECD. Competition Compliance Programs, 2021.
ii Ibid
iii Slaugther&May. Legal 500 Cartels Guide: Corporate Compliance and Cartels, 2019.
iv OECD. Idem.
v Slaugther&May. Idem.
vi Joseph Murphy and William Kolasky. The Role of Anti-Cartel Compliance Programs In Preventing Cartel Behavior, Antitrust, Vol. 26, No. 2, Spring 2012.
vii Ibid.
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