DIP financing e o Direito brasileiro
3 de dezembro de 2021, 20h34
Sabe-se que a injeção de novos recursos é fundamental para o efetivo soerguimento empresarial. Existem duas modalidades principais de financiamento para empresas em recuperação judicial, as quais se diferenciam, em especial, pelo momento em que são concedidas. Há aquele previsto no plano de recuperação judicial (PRJ), e que, portanto, é celebrado pós-homologação e cujo destino principal tende a ser o pagamento dos credores concursais. Por outro lado, há também a necessidade de obtenção de recursos em momento anterior: entre o processamento da recuperação judicial e a aprovação do PRJ. Tais operações ficaram conhecidas por DIP Financing.
O debtor in possession (DIP) financing, instituto consagrado no Direito norte-americano, se consubstancia na principal forma de a empresa submetida ao Chapter 11 obter o a dinheiro novo (fresh money).
Referida modalidade de financiamento foi expressamente inserida no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei nº 14.112/2020, trazendo mais segurança jurídica e celeridade à operação. Até então, o DIP financing não possuía disciplina própria, mas já poderia ser celebrado, seguindo disposições do artigo 67 da LREF. Apesar de tal norma já conceder prioridade ao credor, esta não se mostrava suficiente para fomentar o financiamento.
Isso porque o artigo 67 enquadra o crédito como extraconcursal, mas há diversos outros valores nesta classe. Pela antiga redação do artigo 84, o financiamento com fulcro no artigo 67 estava em quinto na ordem de prioridade de recebimento, no caso de falência do devedor.
A inclusão expressa da Seção IV-A trouxe, além da chamada "superprioridade" conferida ao credor de um DIP financing, conforme nova redação do artigo 84, a possibilidade expressa de outorga de garantias de bens do ativo imobilizado e, ainda, de bens pertencentes a qualquer pessoa — inclusive sócios do devedor (artigo 69-E). Tal previsão é relevante considerando que, em regra, ao estar em recuperação judicial, o devedor não mais possui bens livres para serem dados em garantia.
Também nesse sentido, ressalta-se a inserção do artigo 69-C que autoriza a constituição de garantias subordinadas sobre ativos da recuperanda e dispensa a anuência do detentor da garantia original para tanto.
Outro problema relevante que se colocava aos potenciais financiadores era a falta de celeridade decorrente dos recursos cabíveis contra a decisão que autoriza o financiamento e da consequente insegurança jurídica diante da possibilidade de alteração desta.
Isso, inclusive, já foi impeditivo para que o DIP financing fosse implementado na prática. A título exemplificativo, cite-se a emblemática recuperação judicial da OAS S/A [1], na qual, ante a demora do trâmite processual relativo à decisão que autorizava o financiamento, a investidora então interessada — Brookfield Asset Management Inc. — retirou sua proposta [2].
Tentando trazer uma solução para tal problemática, inspirada na mootness doctrine do Direito norte-americano, a Lei nº 14.112 inseriu na LREF os artigos 66-A e 69-B.
A referida teoria dispõe que "determinados recursos interpostos no âmbito de processos falimentares (v.g. Chapter 11) tornam-se obsoletos (moot), já não podendo levar à anulação de determinados atos, ou à retroação ao status quo ante, após sejam estes implementados substancialmente, com fundamento em decisão judicial anterior" [3].
E, de acordo com os dispositivos inseridos, em suma, se o aporte foi autorizado por decisão judicial e chegou a ser consumado, o contrato deverá ser respeitado mesmo em caso de reforma da decisão judicial e o crédito continuará classificado como extraconcursal.
Ressalte-se que não há qualquer óbice à apresentação de recurso em face da decisão que autoriza o financiamento. Mas, na prática, se o recorrente não obtiver uma tutela antecipada recursal ou um julgamento que ocorra mais rápido do que o efetivo aporte financeiro, o recurso acaba perdendo o objeto e a decisão originária se perfectibilizando.
Ao afastar os riscos de uma possível alteração da decisão e, ao mesmo tempo, trazer celeridade à efetivação, sem que seja necessário aguardar o trânsito em julgado para a transferência de valores, tanto o financiador quanto a recuperanda (bem como todos os demais interesses envolvidos na RJ) se beneficiam. Até porque o tempo de um processo judicial não é compatível com a necessidade de uma empresa em recuperação obter valores para seu fluxo de caixa e incremento de sua atividade financeira, por exemplo.
Por outro lado, mas sem qualquer pretensão de esgotar o tema, cabe, de maneira breve, levantar questões que não foram objeto de positivação. Vê-se que a lei não especificou os limites da contratação do financiamento, da oneração do patrimônio ou até mesmo da destinação dos recursos, deixando isso, em princípio, para a liberdade das partes e para a análise do magistrado.
A título exemplificativo, tem-se que, a rigor, o DIP financing visa ao incremento da capacidade financeira e do fluxo de caixa e não ao pagamento de credores concursais. Contudo, isso não foi consolidado pela lei e, na prática, a condução a ser dada dependerá do caso concreto e da abrangência da decisão judicial, que pode ou não discorrer sobre isso.
Assim, vê-se que a alteração legislativa pretendeu fomentar o mercado de concessão de crédito a empresas em recuperação judicial, sem ter, contudo, abordado alguns aspectos relevantes sobre o sistema de DIP. Cabe agora aguardar os desdobramentos práticos para verificar se haverá a esperada ampliação deste mercado e de que forma os temas omissos — e até mesmo a aplicação da lei — serão endereçados pela jurisprudência e pela doutrina.
[1] Recuperação Judicial nº 1030812-77.2015.8.26.0100, 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca da Capital do Estado de São Paulo.
[2] Agravo de Instrumento nº 2150922-97.2015.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
[3] MUNHOZ, Eduardo Secchi. Mootness doctrine e o direito brasileiro. Preservação dos autos validamente implementados no âmbito da recuperação judicial. IN: ELIAS, Luis Vasco (Coord.). 10 anos da lei de recuperação de empresas e falência: Reflexões sobre a reestruturação empresarial no Brasil. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 116.
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