Opinião

A desconsideração da personalidade jurídica na falência e a Lei 11.101/2005

Autores

9 de fevereiro de 2021, 6h04

No último dia 23 de janeiro, visando a atualizar a legislação brasileira referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária, entrou em vigor a Lei nº 14.112/2020. Entre as mudanças promovidas, destaca-se a norma do artigo 82-A, parágrafo único, da Lei de Falência e Recuperação.

Segundo o dispositivo, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do artigo 50 do Código Civil e dos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, não se aplicando, porém, a suspensão de que trata o §3º do artigo 134 do C.

Como se vê, o legislador toma partido de antiga discussão doutrinária e jurisprudencial, itindo a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito falimentar e, mais ainda, condicionando sua aplicação à instauração de um incidente cognitivo, apto a viabilizar contraditório ao terceiro que se pretende responsabilizar.

Sobre o tema, uma rápida digressão histórica.

Desde sua redação original, o artigo 82 da Lei 11.101/2005 prevê que a responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos es da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o ivo, observado o procedimento ordinário previsto no C.

Nesse momento, conquanto houvesse certa oscilação a respeito da aplicabilidade da teoria da desconsideração no âmbito do procedimento falimentar, acabou prevalecendo o entendimento segundo o qual caberia ao magistrado, nos próprios autos da falência, desconsiderar a personalidade jurídica da empresa por simples decisão interlocutória, sendo, pois, desnecessário o ajuizamento de ação autônoma para esse fim [1].

Sucede que esse posicionamento, a despeito de bem itir a desconsideração da personalidade jurídica no terreno falimentar, era criticado por dispensar a observância de um contraditório prévio e efetivo para responsabilização do sócio da falida. Já em 2014, aliás, percebendo o ponto, embora em voto vencido, o ministro Raúl Araújo entendeu não ser possível estender a sócio que não foi citado para integrar a lide os efeitos da sentença que declarou a falência de sociedade empresária, desconsiderou a personalidade jurídica da sociedade falida e, ainda, aplicou a regra de ineficácia de alguns negócios [2].

Em 2015, o novo C ou a disciplinar, entre os artigos 133 a 137, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Conquanto o STJ tenha se mantido resistente [3], a nova legislação impactou algumas decisões sobre o tema no ambiente falimentar. Veja esse exemplo do TJSP, de 2017: "Pretendendo o judicial a extensão dos efeitos da quebra aos sócios e ex-sócios da empresa, diante da presença dos requisitos do artigo 50, do Código Civil em vigor (desvio de finalidade ou confusão patrimonial), deve apresentar o pedido incidental ao d. juízo que preside a falência, que deverá, por sua vez, providenciar a citação dos réus para que apresentem defesa e as provas que possuam para impugnar o pedido" [4].

Em 2019, a Medida Provisória nº 881 acrescentou à Lei de Falência e Recuperação o artigo 82-A, prevendo que "a extensão dos efeitos da falência somente será itida quando estiverem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica de que trata o art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Código Civil". O texto, porém, não foi mantido com a conversão da MP na Lei da Liberdade Econômica.

Mais recentemente, com a Lei 14.112/2020, o artigo 82-A da Lei de Falência e Recuperação a a estabelecer que "é vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos es da sociedade falida, itida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica", seguido do parágrafo único, já transcrito, segundo o qual deve ser observado, para tanto, o respectivo incidente de desconsideração previsto no C.

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, tratado pelo C como uma modalidade de intervenção de terceiros, representa autêntico pedido de tutela jurisdicional em face do sujeito cujo patrimônio se busca atingir. A pretensão dirigida ao terceiro envolve exercício do direito de ação, sendo que o juiz, ao acolher o pedido, reconhece a responsabilidade patrimonial do interveniente, liberando os meios executivos sobre seu patrimônio. Cuida-se, em suma, de ação incidental, ajuizada em processo cujo objeto é outro, razão pela qual se pode afirmar que essa forma de intervenção de terceiros amplia o objeto litigioso da causa [5].

É possível, ademais, que a desconsideração seja requerida logo na petição inicial, ocasião em que o sócio ou a pessoa jurídica (no caso de desconsideração inversa) deverão ser citados, desde logo, como réus, formando-se um litisconsórcio ivo com o devedor principal. É o caso de se constatar, já no início do processo falimentar, indícios de formação de grupo econômico que tenha sido usado de maneira fraudulenta para prejudicar credores.

Pois bem. Na doutrina e na jurisprudência, é comum haver certa confusão entre desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida, ação de responsabilidade de sócios e, até mesmo, extensão dos efeitos da falência aos sócios.

O STJ, em voto do ministro Luis Felipe Salomão, já chegou a afirmar que "não há como confundir a ação de responsabilidade dos sócios e es da sociedade falida (art. 6º do Decreto-lei n.º 7.661/45 e art. 82 da Lei n.º 11.101/05) com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa. Na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/, ao o que na segunda, supera-se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente para evidenciá-la como verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos. Ou seja, a ação de responsabilização societária, em regra, é medida que visa ao ressarcimento da sociedade por atos próprios dos sócios/es, ao o que a desconsideração visa ao ressarcimento de credores por atos da sociedade, em benefício da pessoa oculta" [6].

Mais recentemente, enfrentando a discussão, afirmou o STJ que "a ação de responsabilidade emoldurada pelo artigo 82 da Lei n. 11.101/05 destina-se precipuamente à responsabilização pessoal dos sócios, controladores e es, independentemente da realização do ativo e de prova de sua insuficiência para cobrir o ivo, pelo pagamento dos créditos constantes no quadro geral de credores da massa falida, não se prestando à desconstituição da personalidade jurídica da sociedade nem se confundindo com a extensão da falência, notadamente porque a responsabilização pessoal do gestor independe da superação da autonomia patrimonial, derivando da subsistência da prática de ato ilícito ou que infringe o contrato social (CC, art. 1.080)" [7].

Ainda nesse último caso, pontuou-se que "a ação de responsabilidade não se afigura a via adequada para aplicação da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica indireta, porquanto engendrada como instrumento apto a viabilizar a apuração se a conduta dos sócios de responsabilidade limitada, dos es e dos controladores contribuiu para o estado falimentar, legitimando sua responsabilização, não encerrando, pois, instrumento adequado para aferição da existência de ingerência comum em relação a dois empreendimentos a caracterizar eventual grupo econômico em razão da identidade de sócios, localização no mesmo endereço comercial e, ainda, confusão patrimonial, porquanto matéria afeta à doutrina da desconsideração indireta da personalidade".

Nessa linha distintiva, o Enunciado 48 da I Jornada de Direito Comercial do CJF confirma que "a apuração da responsabilidade pessoal dos sócios, controladores e es feita independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o ivo, prevista no art. 82 da Lei n. 11.101/2005, não se refere aos casos de desconsideração da personalidade jurídica".

No mais, já se afirmou também que a extensão dos efeitos da falência aos sócios não se confunde com a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, uma vez que a primeira vai além dos efeitos meramente patrimoniais, sujeitando os terceiros atingidos a obrigações de outra natureza, além de diversas restrições de direito, como a de não se ausentar do lugar da falência sem autorização judicial [8].

Pois para nós, em primeiro lugar, a extensão dos efeitos da falência aos sócios somente pode ser aplicada no campo da responsabilidade ilimitada, o que foi reforçado pelo caput do artigo 82-A da Lei 11.101/2005. Aqui, a repercussão da falência da sociedade sobre a pessoa dos sócios é tão relevante que a lei determina que eles também devem ser citados quanto aos termos da ação falimentar [9]. Como se vê, não parece correto falarmos em extensão da quebra a sócios de empresa com limitação de responsabilidade. Nesse terreno das sociedades com limitação de responsabilidade, temos o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, contemplado no artigo 82-A da Lei de Falência e Recuperação, e a ação para responsabilização dos sócios, controladores e es, prevista no artigo 82 da mesma legislação.

O foco da desconsideração da personalidade jurídica é a extensão da responsabilidade patrimonial a um terceiro que, originariamente, não é o devedor. Busca-se, aqui, atingir o patrimônio de sócio, ou grupo por divida contraída pela sociedade falida. Já a ação de responsabilização envolve algo além da mera responsabilidade patrimonial secundária, sendo apta a tornar o sócio legítimo devedor, com todas as consequências daí decorrentes. Na sociedade limitada, isso pode ocorrer em duas hipóteses: falta de integralização do capital social (artigo 1.052, CC) e participação de deliberação social infringente da lei ou contrato social (artigo 1.080, CC). Se for , a lei ainda prevê a responsabilização em caso de descumprimento do dever de diligência que cause prejuízo à empresa (artigo 1.011, CC). No campo das sociedades anônimas, haverá responsabilidade do acionista controlador por danos à sociedade que decorram do abuso de poder de controle (artigo 117, Lei 6.404/1976), assim como do , em caso de ato ilícito praticado na condução dos negócios da sociedade (artigo 158, Lei da SA).

Seja como for, o que nos parece crucial é perceber que, nas sociedades com limitação de responsabilidade, para que os bens dos sócios, controladores ou es se sujeitem ao pagamento de dívidas da sociedade falida, é necessário que se observe, ao menos, o incidente processual previsto nos artigos 133 a 137 do C. Mais do que isso: mesmo que se ita, nesse campo, a extensão de certos efeitos da falência a terceiros (como a inabilitação do próprio sócio para exercício de atividade empresarial), a existência de prévia cognição sobre o ponto, mediante incidente ou ação autônoma, mostra-se imprescindível para validade do processo.

É que a busca pelo patrimônio do sócio, , controlador, ou mesmo de uma empresa coligada, traduz verdadeiro pedido de tutela jurisdicional, objetiva e subjetivamente mais amplo do que o pedido falimentar, fundado em fatos específicos capazes de deflagrar a responsabilidade do terceiro. Assim, para que ocorra a modificação subjetiva, na linha do que já se defendeu em outros contextos, como no "redirecionamento da execução fiscal", mostra-se necessária a instauração de um incidente cognitivo dentro do processo falimentar, culminando-se numa decisão de mérito acerca dessa nova pretensão formulada, desde que após contraditório prévio (citação) outorgado ao sujeito a quem se imputa a responsabilidade [10].

Naturalmente, é possível o requerimento de tutela provisória cautelar já no momento da instauração do pedido, visando, por exemplo, a afastar determinado sócio do controle societário ou, então, bloquear seu patrimônio particular, considerando indícios de istração fraudulenta e risco de dilapidação de bens. Mas isso não significa, frise-se, que seja o incidente dispensado.

A partir desse novo artigo 82-A, parágrafo único, da Lei de Falência e Recuperação, portanto, espera-se que a jurisprudência, em especial o STJ, não mais resista à aplicação do incidente de desconsideração no processo falimentar. Eis a razão de ser do recente dispositivo aprovado.

Há, por fim, uma peculiaridade digna de nota.

Estabeleceu o legislador que não se aplica à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida o disposto no § 3º do artigo 134 do C. Ou seja: no âmbito da falência, a instauração do incidente não suspende o processo. De fato, andou bem o legislador nesse ponto, já que a razão de ser do procedimento especial previsto na Lei 11.101/2005 é, essencialmente, permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia.

Sucede que a instauração de um incidente predominantemente cognitivo, somada à essa inexistência de suspensão processual, pode gerar, por vezes, tumulto processual. Assim, parece possível que, em algumas causas mais complexas, o juízo falimentar remeta a discussão sobre a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida para a via ordinária, analogicamente ao que se dá no âmbito do processo de inventário e partilha, em que o juiz decidirá as questões no próprio bojo do processo, remetendo para as vias ordinárias as questões de alta indagação (artigo 612, C). Trata-se, aliás, de interessante exemplo de intercâmbio de técnicas processuais entre procedimentos especiais. Mas isto é assunto para um próximo texto.

 


[1] STJ, REsp n. 881.330, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe 10.11.2008.

[2] STJ, REsp n. 476.452, Rel. p/ acórdão Min. Luís Felipe Salomão, DJe 11.02.2014.

[3] STJ, AREsp n. 1.108.142, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 16.08.2017.

[4] TJ-SP, AI 2193650-85.2017.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi, j. 11.12.2017

[5] RODRIGUES, Daniel Colnago. Intervenção de terceiros. São Paulo: RT, 2017, p. 100.

[6] STJ, REsp 1.180.191, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 09.06.2011.

[7] STJ, AREsp n. 1.563.824, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 08.11.2019.

[8] STJ, REsp n. 1.293.636, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 08.09.2014.

[9] SANTA CRUZ, André. Direito empresarial. 10. ed. São Paulo: Método, 2020, p. 785.

[10] Assim, de maneira ampla: SANTOS, Silas Silva. Modificações subjetivas na execução e o objeto litigioso. Tese (Doutorado). São Paulo: USP, 2016. p. 146-147.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!