Tribunal do Júri: a utilização do inquérito policial em plenário
11 de março de 2021, 9h04
O inquérito policial pode impactar na formação da convicção dos jurados? Se sim, essa influência é indevida? Qual a função do inquérito? São questões centrais que, para serem devidamente ponderadas, é necessário analisar em ordem inversa.
O inquérito policial é uma fase istrativa em que não vigora o princípio do contraditório ou da ampla defesa. O objetivo principal é subsidiar o Ministério Público para eventual oferecimento da denúncia. Como não poderia ser diferente, a polícia judiciária investiga o fato utilizando técnicas e métodos próprios para a identificação do autor e as circunstâncias do delito. Ao final, elabora um relatório que justifica a investigação realizada, aponta os elementos informativos colhidos e indica a conclusão. Portanto, o inquérito policial serve para que o MP forme a sua opinio delicti e avalie se existem elementos para oferecer a denúncia, a qual servirá para assinalar o que deverá provar no curso da persecutio criminis in judicio.
Com o recebimento da denúncia, o MP tem a carga de provar — além da dúvida razoável — a hipótese fática acusatória e a responsabilidade do acusado. E, como se sabe — sem adentrar nas especificidades da primeira fase do procedimento do júri — importam os elementos que foram produzidos judicialmente. À vista disso, o artigo 155 do P prevê que o magistrado deverá formar sua convicção com base nas provas produzidas em juízo.
Em consonância com o primado de que o juiz deverá formar a sua convicção amparado nas provas produzidas sob o crivo do contraditório, o pacote "anticrime" [1] prevê, no §3º do artigo 3º-C, que "os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento (…)". Isto é, apenas o juiz de garantias, responsável pela fase preliminar do processo e pela legalidade da investigação policial, terá o ao inquérito policial. Propicia-se, assim, que a instrução e a decisão do caso seja tomada por um magistrado isento, o qual sequer terá o aos elementos indiciários produzidos na fase da investigação [2], excepcionando-se as provas irrepetíveis e as medidas de obtenção ou de antecipação de provas.
Dessa maneira, os elementos indiciários que foram gerados durante a investigação, em especial, as provas orais, não poderão mais ser usados e valorados no processo. Assim, como regra geral de validade [3], a prova deverá ser: 1) produzida em contraditório durante a instrução judicial; 2) pelas partes (acusação e defesa); e 3) diante do julgador, seja ela um magistrado togado ou leigo. Aqui está o cerne da questão! Em respeito às garantias da imediação [4] e da oralidade, os jurados deveriam formar suas convicções (avaliar a credibilidade da prova) baseados na instrução probatória realizada perante eles, bem como nas sustentações das partes e na autodefesa do acusado.
Esse seria o caminho natural para um modelo de júri que busca ser democrático. Mas por qual razão o Tribunal do Júri se afasta deste ideal? Simples, pois entre outros fatores, ainda permite — e muitas vezes privilegia — a utilização do inquérito policial em plenário. Sob o manto de argumentos falaciosos e numa espécie de gangorra argumentativa, as partes dão maior ou menor credibilidade a relatos que foram colhidos distantes do contraditório e que podem ser decisivos para formar a convicção dos jurados, especialmente quando eles são levados a superavaliar informações ou a raciocinar de maneira equivocada, privilegiando um dado relato pelo simples fato de ter sido colhido mais próximo aos fatos.
Se as alterações da Lei 13.964/2019 vêm para amenizar o sistema inquisitorial ainda presente no nosso P, impossibilitando que os juízes togados tenham o ao inquérito policial, é fundamental apontar que a importância para o Tribunal do Júri é ainda maior. É imprescindível municiar o julgamento pelo júri com garantias epistêmicas fomentadoras de uma maior racionalidade que ilumine o caminho para uma decisão justa, livre de informações pouco confiáveis ou de forte apelo sentimental [5]. Um desses instrumentos toma corpo na vedação da utilização dos elementos investigativos no júri como forma de mitigar a sua influência indevida.
Tal situação foi discutida no PLS número 156/2009, que busca instituir o novo P. Em seu artigo 391, inciso III, prevê que as partes sequer poderão, durante os debates, fazer referência "aos depoimentos prestados na fase de investigação criminal, ressalvada a prova antecipada".
Como já sustentamos, "para que o júri disponha de uma verdadeira originalidade cognitiva, deveriam ser retirados dos autos todos os elementos informativos colhidos na fase investigativa, mantendo-se apenas as provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis" [6]. Com isso, restariam fortalecidas as garantias da oralidade e da imediação, propiciando-se que a credibilidade probatória pudesse ser melhor sopesada pelo Conselho de Sentença, longe de uma oratória inebriante que fomentasse raciocínios inferenciais a partir de elementos de escassa confiabilidade e validade jurídica [7].
Assim, a premissa da imediação — identificada como regra geral para todo o julgamento perante o júri — apenas poderia ser superada em hipóteses excepcionais, tais como o óbito da testemunha ou sua não localização (para intimação ou condução para a sessão plenária), circunstâncias que tornariam a prova não repetível. Dessa forma, como exceção à regra, os depoimentos colhidos na fase do sumário de culpa — sob o crivo do contraditório — atuariam de forma subsidiária para: 1) suprir a impossibilidade da sua produção diretamente em plenário; ou 2) confrontar o grau de credibilidade de um dado testemunho, especialmente quando o relato da testemunha em plenário destoasse da versão anteriormente fornecida no sumário de culpa ou de outras testemunhas.
Em uma visão ainda mais condizente com o disposto no artigo 8.2, letra "f", da CADH, um importante segmento da doutrina nacional aponta que a utilização substitutiva dos depoimentos colhidos na fase da investigação preliminar ou do sumário de culpa importaria em verdadeira afronta ao direito ao confronto (right of confrontation), identificado como a prerrogativa de que toda prova oral incriminadora seja produzida na presença do acusado, em uma audiência pública conduzida pelo julgador, facultando-se a realização do exame cruzado [8].
Não hesitamos em concluir — em menor extensão do que a corrente acima anunciada — que a exclusão dos elementos de informação visa a evitar uma indesejável confusão cognitiva na mente do jurado, o qual não está preparado para identificar o alcance e a finalidade das informações colhidas na fase inquisitorial. Se a jurisprudência vem reconhecendo a impossibilidade da pronúncia do acusado quando não há provas confirmatórias dos elementos colhidos no inquérito [9], não há lógica jurídica em itir que os jurados tenham a possibilidade de utilizar esses elementos para decisão no júri.
Este artigo faz parte da série "Tribunal do Júri", produzida pelos professores de Processo Penal Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, autores das obras "Plenário do Tribunal do Júri" e "Manual do Tribunal do Júri", da Editora RT.
[1] Lei 13.964/2019, ainda parcialmente suspensa por ordem do Min. Luiz Fux do STF, relator das ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305.
[2] Essa matéria não é nova. O Prof. Antonio Fernandes já lecionava que: "Constitui extravasamento da função da fase de investigação a sua utilização para a condenação. Para evitar que isso aconteça, tendem as legislações a impedir a juntada dos autos de investigação aos autos do processo. Atribuem, contudo, valor probatório a diligências investigatórias que, por sua natureza, são irrepetíveis, ou a medidas que, em virtude de urgências, devem ser antecipadas. Eventual utilização indevida dos elementos informativos da investigação como prova no julgamento constitui espécie de ilicitude, a ilicitude fisiológica, em que, apesar de o ato ser idôneo para a fase em que foi praticado, é inidôneo para a fase posterior". (FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 307). Atualmente também é defendido por Aury Lopes Jr: "A garantia da ‘originalidade’ decorre da função endoprocessual dos atos da investigação, que possuem eficácia interna à fase, para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no curso da investigação. Para tanto, defendemos a adoção do sistema de exclusão física do inquérito policial, buscando evitar a contaminação do julgador pelos atos (de investigação) praticados na fase inquisitória do inquérito policial (portanto, em segredo, sem defesa ou contraditório e não judicializado)". (LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 15ª. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 852-853).
[3] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos, 6ª. ed., Florianópolis, EMais, 2020, p. 767.
[4] Conforme esgrima Décio Alonso Gomes: "(…) o princípio da imediação consiste na contemporânea e contínua interação comunicacional entre juiz, partes e provas (pessoais), a fim de que o julgador possa conhecer pessoal e diretamente as alegações das partes e o acervo probatório do processo, desde sua iniciação". (GOMES, Décio Alonso. Prova e Imediação no Processo Penal. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 56).
[5] Tratando das exclusionary rules do sistema anglo-americano, Marcella Nardelli explica que essas regras têm relação com o fato de que o "impacto negativo da prova sobre o jurado pode ser mais forte do que o seu real valor probatório". (NARDELLI, Marcela Mascarenhas. A prova no Tribunal do Júri. Uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2019, p. 96).
[6] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 116.
[7] A total exclusão dos elementos indiciários, em especial, da prova testemunhal, apenas se tornará efetiva com alterações legislativas que impeçam, que por vias transversas, que os jurados tenham o ao conteúdo da investigação. Assim, seria necessário, dentre outros: (i) impedir o o às decisões cautelares e outras decisões onde se fizesse constar a transcrição do conteúdo da prova oral colhida na fase investigativa; (ii) impedir a juntada pelas partes do caderno investigativo em fases futuras do rito processual, por exemplo, no momento do artigo 479 do P; (iii) impedir que durante as sustentações orais as partes fizessem referência à prova oral colhida na investigação preliminar. Porém, nada impede que esse debate ganhe força desde já, buscando-se uma melhor adequação do rito do Tribunal do Júri ao sistema acusatório.
[8] GOMES FILHO, Antonio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, RL-1.61; MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[9] Por exemplo: STJ, HC 341.072/RS, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, j. em 19/04/2016; STJ, AgRg no REsp 1.740.921/GO, Rel. Ribeiro Dantas, j. em 06/11/2018.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!