Opinião

Massa falida pode aderir aos programas de parcelamento do crédito tributário?

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26 de novembro de 2021, 18h41

Não é novidade que o ivo fiscal é um dos maiores problemas enfrentados pelos devedores sujeitos ao regime falimentar. Iniciada a crise econômico-financeira, seja pela falta de eficiência do Fisco na cobrança das dívidas, seja pelas consequências nefastas decorrentes do inadimplemento das demais classes de credores  levando à imediata paralisação das atividades , os créditos tributários normalmente são os primeiros a terem o pontual pagamento interrompido.

E, quando do inadimplemento, são acrescidos ao valor principal juros e multa, fazendo com que o saldo devedor atinja cifras impagáveis, impedindo o soerguimento do devedor e levando, diversas vezes, à sua quebra.

Essa dívida, conforme preconiza o artigo 83, inciso III, da Lei nº 11.101/05, está classificada na ordem de pagamento como a quarta ser quitada, posteriormente aos créditos extraconcursais (artigo 84), trabalhistas limitados a 150 salários mínimos (artigo 83, I) e de garantia real (artigo 83, II), respectivamente.

Por sua vez, as multas aplicadas pelo Fisco sobre o débito fiscal e os juros moratórios vencidos após a decretação da falência, possuem classificação distinta (ainda que incidentes sobre os tributos). Aquelas em posição imediatamente seguinte aos créditos quirografários (artigo 83, VII), enquanto que estes somente serão quitados se houver ativo suficiente após o pagamento de todas as outras dívidas da massa falida (artigos 83, IX, e 124).

Essa repartição do crédito fiscal em três diferentes classes não é despropositada [1]. Ao contrário, visa à contemplação dos demais credores, garantindo a quitação dos valores principais  com exceção dos créditos subordinados, cujo pagamento é posterior inclusive às multas  e deixando os acréscimos decorrentes da mora para o final do processo. Na hipótese de os juros e a multa estarem classificados em conjunto com o valor principal, provavelmente não remanesceria caixa para sequer alcançar as demais classes.

Por outro lado, paralelamente à disciplina legal relativa à classificação dos créditos, a Fazenda Pública, nos âmbitos federal, estadual e municipal, vem publicando programas especiais para devedores sujeitos a regimes concursais — falência e recuperação judicial  quitarem seus débitos tributários, sendo oferecidos parcelamentos do saldo devedor, bem como a redução dos juros e das penalidades pecuniárias [2].

A título exemplificativo, cita-se o programa Retoma Paraná  criado pelo governo de referido estado em julho deste ano, por meio da Lei Estadual nº 20.634/21, regulamentada pelo Decreto 9.090, de 15 de outubro, o qual possibilita o parcelamento do ivo tributário estadual de empresas em processo falimentar em até 180 vezes, com a redução de 95% dos juros e das multas (artigos 1º, I, c/c 2º, III, do decreto).

Em sentido similar são as transações tributárias oferecidas pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) tal como a transação excepcional [3], na qual as massas falidas podem parcelar os débitos tributários federais inscritos em dívida ativa em até 133 mensalidades, com possibilidade de redução de 100% dos juros e da multa.

Conquanto absolutamente essenciais para o adequado tratamento das dívidas fiscais, é certo que as normas que trouxeram tais programas acabaram por pecar em diversos aspectos.

Um deles, ainda pouco tratado no âmbito doutrinário e jurisprudencial, diz respeito à potencial incompatibilidade entre a ordem de pagamentos prevista na LREF e o tratamento global dado aos créditos tributários, incluindo principal, multa e juros dentro de um mesmo pacote. É que, havendo credores nas classes quirografária e/ou subordinada, e cabendo à massa adimplir, juntamente com o principal, parcela dos juros pós-falimentares e das multas incidentes [4], tais classes seriam potencialmente lesadas pela antecipação.

A questão deve ser analisada sob diversas perspectivas, a depender da situação patrimonial da massa, da estrutura de endividamento existente e das reduções propostas no programa específico.

Primeiramente, como adiantado acima, todas as vezes em que os programas levarem a uma exclusão integral dos juros e das multas, não haverá incompatibilidade normativa, podendo o judicial, após autorização, aderir à transação/parcelamento.

Por outro lado, nas hipóteses em que a dívida fiscal integral (principal, juros pré e pós-falimentares e multa) após o parcelamento for menor do que a somatória dos valores previstos no artigo 83, III, LREF (principal e juros pré-falimentares), igualmente não parece haver incompatibilidade normativa.

É que, ainda que se possa considerar que haja pagamento de juros e de multa de forma antecipada, tal pagamento não teria qualquer repercussão negativa no âmbito patrimonial dos credores, não ferindo os princípios norteadores que guiaram a definição da ordem de pagamento legalmente estabelecida. Em outras palavras, a adesão ao programa, em regra, não atrasará, nem prejudicará o pagamento de qualquer credor quirografário ou subordinado.

Ainda, nas situações em que, tendo sido finalizados a arrecadação e o quadro geral de credores, não haja ativo suficiente para seguir para a classe seguinte (quirografária), a adesão é válida. Novamente aqui não haverá qualquer prejuízo aos credores decorrente do parcelamento, já que, independentemente da participação no programa, estes não receberão os valores que lhes seriam devidos.

Já nos casos em que da adesão ao programa decorra a impossibilidade de início dos pagamentos da classe subsequente, a questão necessita de olhar mais aprofundado. É que, nessas hipóteses, realmente haveria a necessidade de compatibilizar as regras dos dois diplomas normativos. Se de um lado é necessário respeitar a ordem de pagamento dos credores legalmente prevista, de outro é essencial que a massa falida possa usufruir dos benefícios decorrentes dos programas de parcelamento em igualdade com os demais entes contemplados.

Uma possível leitura da questão seria a de que, por não haver recursos suficientes para pagamento das classes intermediárias, a adesão seria vedada.

De outro vértice, poder-se-ia entender que havendo recursos suficientes para quitação dos créditos constantes no artigo 83, III, da Lei Falimentar, o parcelamento/transação deveria ser deferido. Nessa linha, depois de pagos os créditos tributários principais e os juros pré-falimentares, o parcelamento seria suspenso para pagamento dos credores quirografários. Não havendo saldo para quitar a multa, as parcelas remanescentes seriam incluídas do quadro geral de credores, havendo novação da dívida. O mesmo se daria caso de início dos pagamentos dos credores subordinados, cujo crédito precede os juros pós-falimentares.   

O ponto é saber se, nessas hipóteses, haveria efetivo interesse na adesão, já que os recursos que ingressariam nos cofres públicos seriam potencialmente os mesmos, alterando-se apenas o percentual do saldo devedor quitado.

Fato é que a questão merece análise mais aprofundada, notadamente nesses últimos casos aqui abordados.

 


[1] SACRAMONE, Marcelo. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. e-book. São Paulo: RT, 2021.

[2] Acerca da questão, v. ROCHA, André Ferreira da Rosa. Guia para gestão e reestruturação do ivo tributário na recuperação judicial. jun. 2021. Disponível em: <https://www.fesdt.org.br/docs/guia-para-gestao-e-reestruturacao-do-ivo-tributario-na-recuperacao-judicial-oficial.pdf>. o em 22. nov. 2021.

[3] Portaria PGFN nº 14.402, de 16 de junho de 2020, cujo prazo de adesão foi reaberto pelas Portarias PGFN nº 2381, de 26 de fevereiro de 2021, e 11.496, de 22 de setembro de 2021.

[4] Nas hipóteses em que não for possível a exclusão de juros e multas.

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