Opinião

As transações tributárias com empresas em recuperação à luz da Lei 14.112/2020

Autores

3 de outubro de 2021, 6h04

A Lei 14.112/2020 trouxe algumas alterações relevantes ao procedimento de recuperação judicial de empresas, entre elas, destaca-se a possibilidade de negociação de tributos pelas empresas em recuperação judicial junto à Fazenda Nacional. Há quem diga que, diante dessas mudanças, o Fisco ganhou "superpoderes".

Na análise da questão, vale relembrar que anteriormente o Fisco participava do processo de falência quando seus créditos entravam no rol de credores, porém, na recuperação judicial não havia qualquer previsão de sua atuação, restrita à promoção da execução fiscal autônoma, leia-se totalmente independente do processo de recuperação judicial, exceto quando a constrição de algum bem do devedor em recuperação judicial era submetida ao crivo do juízo recuperacional.

Nesse sentido, por vezes o juízo recuperacional negava a constrição de bens pelo Fisco, pois a retirada de bens do patrimônio da recuperanda poderia resultar em prejuízo à recuperação.

Muito embora a lei de recuperação judicial de empresas previsse a exigência da apresentação da Certidão Negativa de Débitos Tributários (CND) para homologação do plano de recuperação judicial aprovado em assembleia geral de credores, tal requisito foi flexibilizado pelo STJ [1], ainda em meados de 2013, quando se entendeu que o parcelamento tributário é um direito da empresa, o que não era efetivamente garantido pela legislação.

No ano ado, o entendimento que parecia pacífico foi abalado em razão da medida cautelar na Reclamação 43.169/SP, em que o ministro do STF, Luiz Fux, entendeu que a exigência de certidão de regularidade fiscal para a homologação do plano de recuperação judicial integra um sistema que impõe ao devedor, para além da negociação com credores privados, a regularização de sua situação fiscal, por intermédio do parcelamento de seus débitos junto ao Fisco, o que na sequência foi objeto de revisão pelo ministro Dias Toffoli, afastando a exigência de apresentação de certidões negativas no caso em questão.

Com o advento da Lei 14.112/2020, a discussão jurisprudencial, em tese, foi encerrada, uma vez que se consolidou a exigibilidade da regularização dos débitos junto ao Fisco para a concessão da recuperação judicial, gerando mudanças significativas à Lei 10.522/2002, ao o em que previu regras específicas acerca da transação e parcelamento dos débitos fiscais, conforme seus artigos 10-A e seguintes.

Os novos artigos inseridos na Lei de Recuperação Judicial determinam que, com o requerimento ou deferimento do processamento da recuperação judicial, pode-se obter o parcelamento das dívidas tributárias vencidas ou não, podendo ser o valor dividido em até 120 prestações mensais, com diversas condições de pagamento, bem como fixa a possibilidade de liquidação de até 30% da dívida consolidada no parcelamento com a utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, ou com outros créditos próprios relativos aos tributos istrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, hipótese em que o restante poderá ser parcelado em até 84 parcelas, calculadas de modo a observar percentuais mínimos, aplicados sobre o saldo da dívida consolidada, nos termos da lei [2].

Alguns casos concretos já surgiram, como o da recuperação judicial de um grupo de hotéis em que, apesar de ter o plano de recuperação judicial aprovado em assembleia geral de credores, a União Federal recorreu e obteve a reforma da decisão, sob o fundamento de que as recuperandas não haviam demonstrado ter buscado equacionar as dívidas fiscais [3].

Já no caso de um grupo de mídia houve um acordo entre as recuperandas e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, envolvendo um ivo de R$ 830 milhões, sendo a primeira transação individual firmada após a Portaria PGFN nº 2382/2021.

Entretanto, todas essas alterações legislativas infligiram duras penas às empresas em recuperação judicial, que já enfrentam severas dificuldades no processo de soerguimento. Isso porque, do modo como disposto, a recuperação judicial fica condicionada à flexibilidade do Fisco em negociar seu ivo.

Ou seja, os "superpoderes" do Fisco se mostram quando refletimos acerca da flexibilidade de negociação e cumprimento dos variáveis pré-requisitos do Fisco para aceitar ou não as propostas de transação.

Um exemplo claro é o da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, que nos termos do Edital PGE/TR nº 01/2021 exige da empresa em recuperação judicial a apresentação de seguro-garantia para celebração da transação e, como se sabe, quando uma empresa se encontra em recuperação judicial, poucas são as instituições financeiras dispostas a fornecer tal seguro, dada a classificação de crédito negativa automaticamente imposta às empresas nessa situação.

Por vezes, quando a recuperanda obtém o seguro-garantia, ainda assim, não é aceito pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, haja vista a exigência, ainda, de que os seguros sejam prestados por determinadas instituições financeiras (os chamados "bancos de primeira linha"), muito menos íveis às empresas em recuperação judicial. Isso sem mencionar os custos para a obtenção desse tipo de serviço financeiro, que oneram ainda mais as empresas em dificuldade.

Verifica-se, portanto, a insegurança jurídica causada pelas transações impostas às empresas em recuperação judicial, na medida em que, a depender do seu assessoramento, já teriam barrada a transação pelo simples fato de não ter condições de prestar o seguro garantia exigido pelo Fisco.

Nesse sentido, entendemos que houve um verdadeiro retrocesso legislativo, ao o em que, sem saber se será possível a transação, muitos empresários têm retardado a tomada de decisão pela recuperação judicial, o que reduz sensivelmente as chances de êxito do processo recuperacional.

Algumas decisões já têm, de algum modo, flexibilizado tal questão, como é o caso do grupo de um setor alimentício que, em que pese não tenha apresentado a CND, demonstrou ao Poder Judiciário as inúmeras tentativas de resolução do ivo tributário, de modo que o Tribunal de Justiça do Paraná compreendeu por dispensar a comprovação da regularidade fiscal para homologação do plano de recuperação judicial, veja-se trecho da decisão [4]. No mesmo sentido foi a decisão prolatada em 10/5/2021, nos autos da recuperação judicial de um laboratório da indústria farmacêutica [5].

Há de se relembrar que o instituto da recuperação judicial tem como princípio permitir o prosseguimento da atividade empresarial da empresa em dificuldade, mantendo a geração de empregos, produtos e serviços à sociedade, de modo que as exigências desmedidas do Fisco não só vão na contramão da finalidade legal, como poderão tolher o o a esse processo de reestruturação.

Desse modo, tem-se a preocupação do que será o futuro da recuperação judicial, ou seja, questiona-se se a ausência da CND em razão da inflexibilidade negocial do Fisco inviabilizará o prosseguimento ou até mesmo o ajuizamento da recuperação judicial, condenando empresas recuperáveis à aniquilação, ou se julgados como os do grupo do setor alimentício e laboratórios da indústria farmacêutica (exemplos citados acima) serão recorrentes e o Poder Judiciário prosseguirá buscando flexibilizar e equilibrar a incidência do dispositivo legal, considerando os esforços da recuperanda em transacionar e objetivando a primazia do princípio da preservação da atividade empresarial.

Diante da ausência de uma solução definitiva para a questão, tem se mostrado cada vez mais relevante a assessoria especializada, tanto na matéria relacionada ao direito de recuperação judicial de empresas quanto na estratégia de composição do ivo tributário para que as empresas em dificuldade alcancem o objetivo da reestruturação.

 


[1] Recurso Especial nº 1.187.404/MT.

[3] TJ-RJ. Agravo de instrumento de nº 0046087-14.2020.8.19.0000 Relator Desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto. Décima Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Data de julgamento: 06/04/2021. Data de publicação: 16/04/2021. 

[4] No caso, a exigência da apresentação de certidões negativas de débitos tributários representaria enorme óbice à própria finalidade do instituto da recuperação judicial, disposto no art. 47 da Lei nº 11.101/05, na medida que inviabilizaria sua concessão, o que resultaria na decretação de falência das Recuperandas. Ademais disso, além de as Recuperandas enunciarem sobre o pagamento dos tributos vencidos no curso da recuperação judicial, extrai-se dos autos que estão envidando esforços para pagamento do ivo, com negociações para parcelamento dos débitos inscritos em dívida ativa e obtenção de certidões negativas. Portanto, deve ser negado provimento ao presente recurso de Agravo de Instrumento, para manter a decisão que dispensou a comprovação de regularidade fiscal para a homologação do Plano de Recuperação Judicial". (TJ-PR. Agravo de instrumento de nº 0061908-42.2020.8.16.0000. Relatora Desembargadora Elizabeth M. F. Rocha. Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná. Data de julgamento: 05/05/2021)

[5] TJ-SP. Recuperação Judicial de nº 1057089-57.2020.8.26.0100. 2ª Vara De Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca de São Paulo. Data de Julgamento: 10/05/2021. Data de publicação 13/05/2021.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!