Opinião

A incompetência da Justiça do Trabalho sobre processo seletivo no terceiro setor

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2 de setembro de 2021, 20h14

Recentemente, ao assistir a um noticiário, intrigou-me uma decisão da justiça do trabalho em uma ação civil pública, ajuizada pelo MPT, face a um serviço social autônomo, a qual defendia a nulidade de um processo seletivo e impunha algumas obrigações de fazer para a realização de seleção de pessoal, ou seja, tratava-se de fase pré-contratual à relação de emprego.

Trata-se do Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal, um serviço social autônomo (SSA), com natureza de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública, e com o objetivo de prestar assistência médica qualificada e gratuita à população e de desenvolver atividades de ensino, pesquisa e gestão no campo da saúde, em cooperação com o poder público.

Vale ressaltar, quanto do julgamento do RE 789.874/DF o Supremo Tribunal Federal pontuou algumas distinções entre os serviços sociais autônomos, estabelecendo que SSA de primeiro grupo são àquelas vinculadas às entidades sindicais, enquanto as do segundo grupo, como por exemplo APS, Apex e ABDI (podendo-se incluir também o IGESDF), não são propriamente autônomos, pois sua gestão está sujeita a consideráveis restrições impostas pelo poder público, restrições que se justificam, sobretudo, porque são financiadas por recursos do próprio orçamento público.

Nesse sentido, destaca-se trecho do voto do relator do recurso, ministro Teori Zavascki, in verbis:

"4. É importante não confundir essas entidades, nem equipará-las com outras criadas após a Constituição de 1988, cuja configuração jurídica tem peculiaridades próprias. É o caso, por exemplo, da Associação das Pioneiras Sociais – APS (serviço social responsável pela manutenção da Rede SARAH, criada pela Lei 8.246/91), da Agência de Promoção de Exportações do Brasil – Apex (criada pela Lei 10.668/03) e da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI (criada pela Lei 11.080/04). Diferentemente do que ocorre com os serviços autônomos do Sistema "S", essas novas entidades (a) tiveram sua criação autorizada por lei e implementada pelo Poder Executivo, não por entidades sindicais; (b) não se destinam a prover prestações sociais ou de formação profissional a determinadas categorias de trabalhadores, mas a atuar na prestação de assistência médica qualificada e na promoção de políticas públicas de desenvolvimento setoriais; (c) são financiadas, majoritariamente, por dotações orçamentárias consignadas no orçamento da própria União (artigo 2º, § 3º, da Lei 8.246 /91, artigo 13 da Lei 10.668/03 e artigo 17, I, da Lei 11.080/04); (d) estão obrigadas a gerir seus recursos de acordo com os critérios, metas e objetivos estabelecidos em contrato de gestão cujos termos são definidos pelo próprio Poder Executivo; e (e) submetem-se à supervisão do Poder Executivo, quanto à gestão de seus recursos.
Essas características estão definidas nos preceitos legais abaixo:
(…)
Bem se vê, portanto, que ao contrário dos serviços autônomos do primeiro grupo, vinculados às entidades sindicais (SENAC, SENAI, Sest, Senat e SENAR), os do segundo grupo (APS, Apex e ABDI) não são propriamente autônomos, pois sua gestão está sujeita a consideráveis restrições impostas pelo poder público, restrições que se justificam, sobretudo, porque são financiadas por recursos do próprio orçamento federal. Essas limitações atingem, inclusive, a política de contratação de pessoal dessas entidades. Tanto a lei que autorizou a criação da APS, quanto aquelas que implementaram a Apex e a ABDI têm normas específicas a respeito dos parâmetros a serem observados por essas entidades nos seus processos seletivos e nos planos de cargos e salários de seus funcionários (ex: artigo 3º, VIII e IX, da Lei 8.246/91, artigo 9º, V e VI da Lei 10.668/03 e artigo 11, §§ 2º e 3º da Lei 11.080/04)".

Destarte, em que pese recaiam sobre os serviços sociais autônomos de segunda categoria restrições mais severas quanto à contratação de pessoal, justamente em razão do financiamento público, tal fator não enseja ou  justifica a competência da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar questões relativas aos processos seletivos realizados por essas entidades, considerando que sequer existe uma relação trabalhista consolidada, existindo apenas uma expectativa do candidato de que a relação seja concretizada, não havendo o que se falar em empregado e empregador.

Inclusive, pondera-se plenamente aplicável o entendimento recente do Supremo em matéria análoga com relação à incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar demandas relativas a seleção e issão de pessoal e eventual nulidade do certame em face da istração Pública, direta e indireta, nas hipóteses em que adotado o regime celetista de contratação de pessoal. A decisão restou assim ementada:

"Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Tema 992. Direito do trabalho. Direito istrativo. Discussão sobre competência. artigo 114, inciso i, da cf/88. Fase pré-contratual. 1. Inexistência de relação de trabalho na chamada fase pré-contratual a atrair a competência da Justiça do Trabalho. 2. Prevalência do caráter público. Concurso público como ato de natureza istrativa. 3. Fixação da tese: Compete à Justiça comum processar e julgar controvérsias relacionadas à fase pré-contratual de seleção e de issão de pessoal e eventual nulidade do certame em face da istração Pública, direta e indireta, nas hipóteses em que adotado o regime celetista de contratação de pessoal. Recurso extraordinário não provido. (RE 960429, relator(a): Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 5/3/2020, processo eletrônico DJe-157 Divulg 23/6/2020 Public 24/6/2020)".

Nesse contexto, os preceitos contidos na Lei Distrital nº 5.899/2017 (Lei de criação do IGESDF) têm sua justificativa nos princípios constitucionais que demarcam a atuação da istração Pública, o que inexoravelmente atrai a incidência do contido no artigo 37, caput, da Constituição Federal, preconizando que o processo de seleção para issão de pessoal deve ser conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância aos princípios da publicidade, da impessoalidade, da moralidade, da economicidade e da eficiência.

De tal sorte, infere-se que os princípios basilares de um concurso público e um processo seletivo realizado pelo IGESDF são similares, quiçá idênticos, razão pela qual entende-se plenamente aplicável a tese fixada em repercussão geral no Tema 992 aos processos seletivos efetuados por serviços sociais autônomos de segunda categoria, porquanto o que prevalece nessa etapa é o caráter público, isto é, o interesse da sociedade na estrita observância dos princípios constitucionais que devem ser observados quando da seleção e issão de pessoal por um serviço social autônomo.

Ressalta-se ainda que o STJ dispõe de entendimento semelhante:

"Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 115)
Tese 1: A Justiça do Trabalho não tem competência para decidir os feitos em que se discutem critérios utilizados pela istração para a seleção e a issão de pessoal em seus quadros, uma vez que envolve fase anterior à investidura no emprego público."

Do exposto, ululante a incompetência da Justiça do Trabalho para declarar a nulidade ou impor obrigações de fazer em sede de processos seletivos realizados por serviços sociais autônomos, eis que se trata de fase pré-contratual, na qual sequer existe uma relação regida pela CLT, não havendo direito ou interesse decorrente da relação de trabalho a atrair a competência da Justiça trabalhista.

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