Da possibilidade do afastamento do tráfico privilegiado pelo histórico infracional
6 de abril de 2022, 13h05
Recentemente, os Tribunais Superiores enfrentaram a possibilidade, ou não, de se afastar a causa de diminuição de pena do artigo 33, §4º, da Lei nº 11.343/2006, o "tráfico privilegiado", diante do histórico infracional do acusado na seara infanto-juvenil. Como se sabe, para reconhecimento da dita minorante, deverá o agente infrator ser "primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa" [1].
O que fez exsurgir o presente debate é justamente a necessidade de se aferir se a prática de atos infracionais seria suficiente para consubstanciar a dedicação às atividades criminosas que foi vedada pelo dispositivo legal supracitado.
Demonstrando a controvérsia jurisprudencial, teve-se, inicialmente, a posição contrária ao afastamento do redutor de pena que foi adotada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 184.979 AgR/SP, em que a ministra Relatora Carmen Lúcia, em seu voto, aduziu que "a prática de atos infracionais não é suficiente para afastar a minorante do tráfico privilegiado, pois adolescente não comete crime nem recebe pena" [2].
A Primeira Turma da Corte Suprema já enfrentou a questão em algumas oportunidades. De maneira contrária ao afastamento, cita-se o HC 114.747/PR, em que constou da ementa que "a causa especial de diminuição de pena do artigo 33, §4º, da Lei nº 11.343/2006 não pode ser indeferida exclusivamente com base em ato infracional informado pelo paciente em seu interrogatório" [3]. Entretanto, no corrente ano de 2021, quando do julgamento do HC 192.147 AgR/SP, por maioria de votos, reconheceu-se a possibilidade da "utilização da prática de atos infracionais para afastar a causa de diminuição" [4].
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também contou com entendimentos diversos oriundos de suas Turmas. Exemplificando, a Sexta Turma da Corte Superior já decidiu de forma contrária ao afastamento da minorante, como se dessume do julgamento do REsp 1.916.596/SP, em que constou da ementa ser incompatível a consideração do "registro de anterior ato infracional, na terceira fase da dosimetria da pena do crime de tráfico de drogas, como elemento caracterizador da dedicação do agente a atividades delituosa" [5].
Por sua vez, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça já apresentou entendimento favorável ao afastamento da causa de diminuição com esteio no histórico infracional do acusado, citando-se, como exemplo, o julgamento do AgRg no HC 573.149/SE, em que constou da ementa que "o registro de atos infracionais é elemento idôneo para afastar a figura do tráfico privilegiado, quando evidenciar a propensão do agente a práticas criminosas" [6].
Inconteste, portanto, que a questão ora analisada é de notória complexidade, contando com enfrentamentos diversos pelos Excelsos Tribunais.
Diante de tal contexto, o Superior Tribunal de Justiça, mais especificamente sua Terceira Seção, quando do julgamento do EREsp n.º 1.916.596/SP, adotando posição intermediária, reconheceu a possibilidade de se afastar a minorante pelo histórico infracional quando, no caso concreto, sejam comprovadas "a gravidade de atos pretéritos, devidamente documentados nos autos, bem como a razoável proximidade temporal de tais atos com o crime em apuração" [7].
Deflui-se, portanto, que não basta uma alusão genérica ao histórico infracional para que se possa, sem outros elementos, afastar a minorante do "tráfico privilegiado" em desfavor do acusado. Deverá ser demonstrada uma contemporaneidade entre os eventos (ato infracional e posterior crime), além de uma conexão circunstancial das condutas.
Assim, em que pese não sejam, por óbvio, caracterizadores de reincidência delitiva ou, ainda, de maus antecedentes, os atos infracionais, a depender do caso concreto, poderão influenciar no entendimento de que o agente, agora maior de idade e acusado da prática do delito de tráfico de entorpecentes, dedica-se à atividade delituosa, afastando a incidência da causa de diminuição tipificada no artigo 33, §4º da Lei nº 11.343/2006.
Ou seja, entender-se-ia que houve uma continuidade, por parte do acusado, no envolvimento com a traficância de drogas, ao o em que a maioridade alcançada, em verdade, seria mero marco temporal
que simplesmente "transformou", em termos coloquiais, a prática de atos infracionais em crimes contra a saúde pública. Não haveria, portanto, uma interrupção do envolvimento do agente, mantendo-se em um "engajamento criminoso", termo adotado pela ministra relatora Laurita Vaz em seu voto [8].
Contudo, para que sejam evitadas impropriedades, o julgador, no caso concreto, não poderá se limitar em indicar a mera existência de simples histórico infracional para que se afaste, de imediato, a minorante do "tráfico privilegiado". Como mencionado, a Corte Superior adotou posicionamento intermediário, estipulando requisitos específicos para que se afaste a benesse em desfavor do acusado.
O afastamento da causa de diminuição em comento deve ser excepcional, justamente diante do reconhecimento, pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, de que a dita minorante é direito subjetivo do acusado [9].
Exemplificando, tem-se o caso do acusado que, quando menor de idade, praticou ato infracional equiparado ao delito de furto simples e, após alcançada a maioridade penal, praticou o delito tipificado como tráfico de entorpecentes. Perceba-se que no presente exemplo o histórico infracional, per si, não poderia ser adotado única e exclusivamente como fundamentação para o afastamento da minorante.
O termo "atividades criminosas" indicado no dispositivo legal do artigo 33, §4º da Lei nº 11.343/2006 não diz respeito à qualquer crime ou ato infracional, mas faz menção ao possível envolvimento pretérito do investigado na traficância, justamente pelo fato de que a minorante do "tráfico privilegiado" busca alcançar o "traficante de primeira viagem", termo utilizado pela ministra relatora Laurita Vaz no precedente da Terceira Seção, "ou seja, aquele que não faz do tráfico o seu meio de vida" [10].
Ainda de forma exemplificativa, não se poderia adotar o histórico infracional para afastamento da minorante no caso de um acusado de 25 anos que, quando possuía 13 anos de idade, praticou ato infracional análogo ao crime de tráfico de entorpecentes, justamente por inexistir uma conexão temporal, uma contemporaneidade, entre os eventos.
Competirá, portanto, ao Ministério Público, quando da ação penal, comprovar a situação excepcional que justifique o afastamento da minorante, como, por exemplo, eventual similitude entre o modus operandi adotado no ato infracional análogo ao tráfico de drogas com aquele adotado quando do delito posteriormente praticado (local, tempo, contexto fático, pessoas envolvidas, entre outros).
Aliás, para esclarecer ainda mais a situação, é importante mencionar o voto do ministro Rogério Schietti Cruz quando do julgamento pela Terceira Seção, ao lembrar que a Corte Superior, no julgamento do AgRg no HC nº 672.866/SC, já havia afastado a minorante do "tráfico privilegiado" à agente infrator que "embora com apenas 18 anos de idade, registrava 6 processos pela prática de atos infracionais análogos ao crime de tráfico de drogas" [11].
Salienta-se que, no caso indicado alhures, é evidente a caracterização dos requisitos específicos para o afastamento da causa de diminuição, visto ser inegável a ausência de interrupção do engajamento criminoso pelo agente, uma vez que, logo após alcançar a maioridade penal, já contando com vasto histórico infracional específico quanto à traficância, encontra-se respondendo pelo crime de tráfico de drogas.
O que se assenta, portanto, é que diante da complexidade do tema, bem como da diversidade de enfrentamento pelos Tribunais Superiores, o precedente da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça parece ter encontrado um "meio termo" entre os entendimentos. Ou seja, não se nega nem se autoriza, automaticamente, o afastamento da causa de diminuição diante do histórico infracional, condicionando-se tal hipótese à análise do caso concreto e, por conseguinte, do preenchimento dos requisitos fixados.
Não basta a mera alusão à atos infracionais anteriores, bem como não basta a simples prática destes para o afastamento do direito subjetivo do acusado ao redutor de pena. Deverá haver comprovação efetiva do histórico infracional, ao o em que os atos infracionais devem ter sido graves e, ainda, deverá haver uma distância temporal razoável entre tais atos e a prática do delito.
Por fim, digno de nota ressaltar que, após o dito julgamento pela Terceira Seção, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no AgRg no HC 691.281/SP, reconheceu o afastamento da causa de diminuição do tráfico de entorpecentes pelo histórico infracional do acusado, após análise detida do caso concreto.
Do contexto fático do caso que foi levado à julgamento, o ministro relator Rogério Schietti Cruz ressaltou que o acusado apresentava reiteração no envolvimento com a traficância já na seara infanto-juvenil, havendo mínima distância temporal entre os atos infracionais e o crime praticado.
Em seu voto, o ministro relator reconheceu que "todas as ocorrências de atos infracionais dizem respeito 'à circulação indevida de drogas'"[12], concluindo, portanto, no sentido de ser "irretocável a conclusão do decisum ora agravado de que não há como se lhe reconhecer a incidência do redutor" [13].
Ainda mais recentemente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, novamente analisando o caso concreto, concluiu pelo afastamento da minorante no julgamento do AgRg no HC 695905/ES, enfatizando que "não bastasse o fato de que o acusado tem diversas agens pela Vara da Infância e da Juventude, foi curta a distância temporal entre os atos infracionais e o crime objeto da presente ação penal" [14].
De igual forma, a Quinta Turma da Corte Superior, quando do julgamento do AgRg no HC 670017/SE, também adotando o dito precedente, concluiu que o histórico infracional só poder ser utilizado para configuração da dedicação à prática delituosa "quando evidenciada a gravidade da conduta pretérita, que deve guardar razoável proximidade temporal com o delito em apuração" [15].
Conclui-se, portanto, que diante do entendimento intermediário adotado pela Terceira Seção da Corte Superior no julgamento do EREsp n.º 1.916.596/SP, somente o exame do contexto fático específico de cada caso é que poderá autorizar, ou não, o afastamento do "tráfico privilegiado" com fulcro no histórico infracional do acusado.
[1] BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Disponível no sítio eletrônico: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. o em 30 de março de 2022.
[2] HC 184979 AgR, relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 22/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-197 DIVULG 06-08-2020 PUBLIC 07-08-2020. Disponível no sítio eletrônico: <www.jurisprudencia.stf.jus.br>. o em 30 de março de 2022
[3] HC 114747, relator (a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 10/12/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-035 DIVULG 19-02-2014 PUBLIC 20-02-2014. Disponível no sítio eletrônico: <www.jurisprudencia.stf.jus.br>. o em 30 de março de 2022
[4] HC 192147 AgR, relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 24/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2021 PUBLIC 20-04-2021. Disponível no sítio eletrônico: <www.jurisprudencia.stf.jus.br>. o em 30 de março de 2022
[5] REsp 1916596/SP, relator ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/04/2021, DJe 04/05/2021. Disponível no sítio eletrônico: <www.stj.jus.br>. o em 30 de março de 2022
[6] AgRg no HC 573.149/SP, relator ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 15/06/2020. Disponível no sítio eletrônico: <www.stj.jus.br> o em 30 de março de 2022.
[7] EREsp 1916596/SP, relator ministro JOEL ILAN PACIORNIK, rel. p/ Acórdão Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/09/2021, DJe 04/10/2021. Disponível no sítio eletrônico: <www.stj.jus.br>. o em 30 de março de 2022.
[8] Idem.
[9] AgRg no HC 612.401/SP, relator ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/02/2021, DJe 17/02/2021. Disponível no sítio eletrônico: <www.stj.jus.br>. o em 30 de março de 2022.
[10] EREsp 1916596/SP, relator ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Rel. p/ Acórdão ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/09/2021, DJe 04/10/2021. Disponível no sítio eletrônico: <www.stj.jus.br>. o em 30 de março de 2022.
[11] Idem.
[12] AgRg no HC 691.281/SP, relator ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 21/09/2021, DJe 29/09/2021. Disponível no sítio eletrônico: <www.stj.jus.br>. o em 30 de março de 2022.
[13] Idem.
[14] AgRg no HC 695.905/ES, relator ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), SEXTA TURMA, julgado em 22/02/2022, DJe 25/02/2022. o em 30 de março de 2022
[15] AgRg no HC 670.017/SP, relator ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, julgado em 22/02/2022, DJe 24/02/2022. Disponível no sítio eletrônico: <www.stj.jus.br>. o em 30 de março de 2022.
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