Teoria das nulidades processuais aplicada ao processo istrativo
13 de abril de 2022, 19h04
A edição do Ato Conjunto SF/STF nº 1/2022 [1] fez ressurgir a discussão acerca da ausência de uniformidade da legislação que disponha acerca do processo istrativo no âmbito da istração Pública Federal, a qual se desdobra não apenas em razão do microssistema jurídico que se dispõe a regulamentar — cada um dotado de particularidades, como também em razão da atividade legislativa atípica dos entes[2].
Tal circunstância resulta de uma legislação demasiadamente espaça e capaz de gerar insegurança jurídica em decorrência do advento de dúvida razoável quanto à legislação aplicável, notadamente considerando que o direito consiste em uma ciência na qual divergências interpretativas compõem a sua dinâmica.
Dentre as diretrizes eleitas no referido ato conjunto, destacamos a necessidade de assegurar a "garantia dos princípios do devido processo legal, da razoável duração do processo, da eficiência, da segurança jurídica, proteção da confiança e do impulso oficial" [3], sobre os quais pretendemos no presente ensaio, notadamente sobre a ótica da teoria das nulidades processuais.
Em termos didáticos, é possível compreender por "processo" — seja ele judicial ou istrativo — o conjunto sequenciado de atos destinados a um resultado final esperado, seja para atender a uma postulação jurídica, seja para a imposição de uma obrigação ou penalidade, ou mesmo para a execução destas.
Para tanto, a condução do processo istrativo deve se pautar nas famigeradas garantias constitucionais do processo, dentre as quais destacamos o princípio do devido processo legal (CF/88, artigo 5º, inciso LIV), cujo núcleo essencial repousa em assegurar o exercício efetivo do direito de ação (CF/88, artigo 5º, inciso XXXV) e do direito de defesa (CF/88, artigo 5º, inciso LV), com o fim na efetivação dos direitos e valores defendidos pela Constituição Federal (CF/88, Preâmbulo).
No âmbito da istração Pública federal, as disposições gerais acerca do processo istrativo se encontram dispostas na Lei nº 9.784/99, sem prejuízo da regência prioritária de outras normas específicas à matéria em debate, a exemplo do Decreto nº 70.235/72 (Processo istrativo Fiscal) e das Leis nº 8.666/93 nº 14.133/2021 (Processos/Procedimentos Licitatórios).
Além disto, respeitado o critério de especificidade das normas jurídicas para a resolução de antinomias, há ainda a possibilidade de aplicação supletiva (quando há previsão legislativa, porém incompleta) e subsidiária (quando não há previsão legislativa) das disposições estabelecidas no Código de Processo Civil (artigo 15), assim como supletiva e subsidiariamente ao Código de Processo Penal relativamente aos processos istrativos sancionadores [4].
Tal forma de integração tem por efeito prático possibilitar uma melhor compreensão acerca da materialização no âmbito do processo istrativo dos princípios processuais [5] que lhe são aplicáveis, inclusive — mas não unicamente — a partir de regras procedimentais próprias aos processos judiciais [6], ainda que não especificadas nas normas que regem o processo istrativo (LINDB, artigo 4º).
Tratando-se os princípios de espécie de norma jurídica de conteúdo aberto, a extensão destes deve se amoldar ao grau de implicação jurídica da resolução do mérito do processo na esfera subjetiva do istrado. Assim, qualquer que seja a sua carga jurídica, um princípio somente poderá deixar de ser aplicado em um caso concreto quando colidir com outro Princípio, hipótese na qual se empregará a regra de ponderação em função das circunstâncias do caso concreto, decidindo-se a favor de um deles, mas ainda assim preservando o núcleo essencial do princípio excepcionalizado.
Diferentemente do que sucede no campo do direito privado — no qual o princípio da legalidade se manifesta no sentido de assegurar a liberdade e a vontade privada dos indivíduos (CF/88, artigo 5º, inciso II), temos que no direito público — no qual se insere o direito processual — a legalidade impõe uma discricionariedade mínima [7].
Decorrente deste preceito, o princípio do devido processo legal (CF/88, artigo 5º, inciso LIV) impõe que os atos processuais devem ser praticados/executados de acordo com a forma e a ritualística estabelecida na norma jurídica — quando esta assim o faz — e, sobretudo, em conformidade com outras garantias constitucionais (C/2015, artigo 1º), mesmo que não regramentadas expressamente em lei, posto serem de aplicação imediata (CF/88, artigo 5º, §1º).
Da aplicação conjunta do princípio do devido processo legal e com princípio da legalidade, deduz-se que os atos jurídicos praticados em desconformidade com a lei resultam em sua nulidade [8], ao menos em potencial perspectiva, isto porque, a despeito da importância da existência de um modelo legal e ritualístico a ser observado, este somente tem razão de existir quando destinada à proteção aos núcleos essenciais das garantias constitucionais do processo, cuja inaplicabilidade/contrariedade implicará em estado de inconstitucionalidade.
Desta forma, e tal como sucede em relação ao processo judicial, o processo istrativo não consiste em um fim próprio, mas sim em um "instrumento" para o alcance de uma "verdade" (positiva ou negativa) associada a um dos bens jurídicos tutelados pela istração Pública, para que em decorrência desta se produzam os resultados jurídicos-materiais esperados, materializando o princípio da finalidade que, em fim, implicará na satisfação do interesse público.
Tal compreensão impõe a aplicação do princípio da instrumentalidade Processual, de acordo com qual são válidos os atos que atendam à sua finalidade essencial, ainda que praticados em desconformidade com as prescrições legais, tal como se extrai de diversos normativos processuais, a exemplo da Lei nº 9.784/99 (artigo 2º, parágrafo único, inciso VIII), do Código de Processo Civil (artigos 188 e 277) e do Código de Processo Penal (artigos 563, 566 e 572, inciso II).
Derivado deste, o princípio do formalismo moderado [9] obsta a decretação de nulidades fundamentadas em questões meramente formais que — ainda que legais — caracterizem como irrelevantes ou excessivos, ou mesmo que possam ser sanadas, tratando-se este de derivação dos princípios gerais da razoabilidade e da proporcionalidade.
Estas diretrizes principiológicas implicam em considerar as nulidades processuais como uma condição de ineficácia a ser decretada quando não atendida a sua finalidade essencial, o que supera a percepção de que as aquelas consistiriam em uma "sanção processual" que retiraria automaticamente a validade do ato defeituoso.
Naturalmente que, para fins e efeitos de aferição do atendimento ou não da "finalidade essencial" do ato processual desconforme — do que dependerá a sua validade, este não pode ser analisado de forma isolada, mas igualmente acerca da preservação ou não do núcleo essencial das garantias constitucionais do processo.
Ou seja: ainda que tenha atendido virtualmente a sua "finalidade essencial", para ser preservado, o ato defeituoso não poderá resultar em prejuízo à parte (C, artigos 282, §1º e 283, parágrafo único e P, artigo 563) ou à condução do processo [10].
Ademais, quando possível, o ato defeituoso — seja ele praticado pela istração Pública ou pelos particulares — também estará sujeito à convalidação através da sua supressão, ratificação ou mesmo preclusão (C, artigo 278; P, artigo 571), o que implica na issão da fungibilidade [11] e da possibilidade de saneamento de vícios formais (C, artigos 139, inciso IX, 352, 932, parágrafo único, 1.007, §§4º e 6º, 1.029, §3º).
Outrossim, mesmo quando decretada a sua nulidade, há de se observar a sua extensão (C, artigo 281; P, artigo 573, §1º), notadamente diante dos atos processuais supervenientes, o que resultará na aplicação do princípio da causalidade — nulidade estendida aos atos posteriores diretamente dependentes ou vinculados — e/ou do princípio da conservação — preservação dos atos processuais independentes ou desvinculados, tudo com vistas à atender ao princípio da eficiência (CF/88, artigo 37, caput) e ao princípio da finalidade, ambos pertinentes à istração Pública.
Ao que se denota, a questão envolta das nulidades processuais — notadamente quando aplicada ao processo istrativo — está diretamente associada ao fenômeno da constitucionalização do direito, em especial do direito processual e do direito istrativo, sobretudo quanto às garantias do processo e aos princípios da istração Pública.
[1] "Institui Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que dinamizem, unifiquem e modernizem o processo istrativo e tributário nacional".
[2] A Teoria dos Poderes Implícitos foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões (Recentemente: Tribunal Pleno, ADI 6.875, relator ministro Alexandre de Moraes, j. 21/02/2022), de acordo com a qual se compreende como "implícita" a competência para a prática de atos necessários ao exercício da Missão/Função estabelecida na Constituição Federal, desde que não expressamente vetada ou limitada.
[3] Consta o estabelecimento de "parâmetros para a consolidação de teses a serem observadas pela istração Pública", tema sobre o qual já tivemos a oportunidade de discorrer anteriormente em artigo "Considerações sobre a inobservância pela istração de teses fixadas pelo STF", publicado na Revista Consultor Jurídico em 11.01.22 e disponível em /2022-jan-11/opiniao-inobservancia-istracao-teses-fixadas-stf
[4] As sanções decorrentes da Tutela Penal, do Poder de Polícia e da Poder Disciplinar se inserem no Direito Punitivo do Estado, possuindo afinidades intrínsecas que lhe conhece um núcleo ontológico que lhe assegura Garantias Constitucionais em comum (CF/88, artigo 5º, incisos LIV, LV, LIV e LXXVIII) e, ainda que estes tenham se ramificados em searas autônomas, estes estão interligados por suas origens residentes na Tutela Punitiva do Estado. Inclusive, porém não menos importante, tal percepção se revela importante para a melhor compreensão acerca da posição da Tutela Penal como ultima ratio do ius puniendi, de modo que, a despeito do que dispõe o artigo 15 do C, compreendemos por mais adequada a aplicação supletiva e subsidiária do P.
[5] Por regra, todos os Princípios se encontram positivados, sendo que alguns de modo explícitos, ao o que outros são implícitos (deduzidos a partir da interpretação isolada ou conjunta de outras disposições contidas no ordenamento jurídico), sendo ambas as categorias de igual relevância e força normativa. De acordo com Robert Alexy (Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2008, p. 90), os Princípios constituem "mandados de otimização" que constituem um dever ser abstrato e que "ordenam que algo seja realizado na maior medida possível". Nesta mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Melo destaca os Princípios como núcleo mandamental do ordenamento jurídico (Curso de Direito istrativo, 2000, p. 748), o que lhe atribui elevado grau de imperatividade.
[6] De forma semelhante, em julgamento de grande repercussão nacional, o Supremo Tribunal Federal se dignou em realizar uma "filtragem constitucional" da Lei do Impeachment de modo que os procedimentos a serem adotados pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal estejam em conformidade com as Garantias Constitucionais do Processo (Plenário, ADPF nº 378 — MC, relator ministro Edson Fachin, redator do Acordão ministro Roberto Barroso, j. 17.12.2015).
[7] "A legalidade, como princípio de istração (CF, artigo 37, caput), significa que o público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso". Meirelles, Hely Lopes. Direito istrativo Brasileiro. 30. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
[8] No tocante ao Direito istrativo, tomando-se por referência os Elementos-Requisitos básicos dos Atos istrativos, são nulos os atos carentes de Competência; Finalidade; Forma; Motivo e Objeto.
[9] Também conhecido como Princípio do Não-Formalismo Excessivo, tal Princípio é amplamente utilizado no microssistema jurídico dos processos licitatórios — atualmente positivado nos artigos 12, inciso III, 59, incisos I e V, 71, §1º, da Lei nº 14.133/2021.
[10] Dada à dupla finalidade do processo istrativo — Defesa do Interesse Público e Proteção dos Direitos Subjetivos dos istrados, temos que os preceitos que embasam a Teoria da Nulidade (em especial: Princípio da Instrumentalidade, Princípio da Primazia do Mérito, Princípio do Formalismo Moderado e Princípio da Finalidade) são igualmente aplicáveis aos atos praticados pelos particulares, os quais não podem ser considerados como inválidos em decorrência de irregularidades meramente formais e/ou sanáveis.
[11] No tocando à Fungibilidade Recursal, esta se encontra prevista de forma restrita no C (vide artigos 1.024, §3º, 1.032 e 1.032) e de forma ampla no P (artigos 579).
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