Oportunidade de incrementar norma geral ao recurso repetitivo e precedente
30 de abril de 2022, 9h14
Em fevereiro, os presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal formalizaram a criação da comissão de juristas para a reforma dos processos istrativo e tributário. Como tem sido amplamente noticiado, até 6 de maio a comissão receberá manifestações e sugestões da sociedade por meio de consulta pública. Nesse contexto, consolidamos a seguir algumas das temáticas que reputamos relevantes para o processo tributário relativamente aos recursos repetitivos e ao sistema de precedentes, a fim de contribuir para os debates e a formação das proposições de alteração legislativa.
Como o escopo da reforma é propor medidas para a racionalização do contencioso tributário, é preciso, primeiramente, notar a valiosa oportunidade para promover diálogo entre a LEF e o artigo 927 do C, de modo a desincentivar a judicialização de disputas já interpretadas pelo STJ e o STF.
A dispensa da cobrança de crédito tributário que decorra de matéria solucionada em favor dos contribuintes, sobretudo em repercussão geral, tornaria a sistemática mais justa e eficiente. Além de criar um ambiente normativo que favoreça o cumprimento do precedente, essa atualização na LEF tem o escopo de prevenir entes federativos e contribuintes contra a onerosidade desnecessária. O contribuinte é poupado do ônus da garantia que precede a oposição de embargos, ao o que a Fazenda Pública poderá direcionar melhor seus recursos, sem precisar gerir um contencioso estéril cujo destino já foi predeterminado pelo C (improcedência liminar do pedido, dispensa de remessa necessária, atuação monocrática do relator, etc).
Em relação às normas gerais de processo tributário, tão ou mais importante será garantir que a solução estabelecida pelo Poder Judiciário seja aplicada pela istração e por todas as esferas e instâncias de julgamento istrativo; não apenas no âmbito federal, cuja disciplina foi iniciada pela Lei nº 10.255/02 e o Decreto nº 70.235/72, mas também nos âmbitos estaduais e municipais. Como temos chamado atenção [1], para que o modelo de precedentes surta os efeitos práticos almejados, é necessário incrementar no plano legislativo estruturas que assegurem e direcionem o cumprimento, pelas partes vencidas e os tribunais istrativos, da tese firmada.
Partindo de igual premissa, importa garantir também que, na fase antecedente, os tribunais istrativos tenham determinado a suspensão do processamento dos processos pendentes que versem sobre a controvérsia objeto do RE/Resp afetado. Essa etapa tem o propósito de alertar contribuintes e Fisco quanto à futura aplicação da resposta jurisdicional a ser dada pelo padrão decisório, eliminando-se o efeito-surpresa e abrindo-lhes oportunidade para atuarem construtivamente no recurso representativo via "amicus curiae".
Aliás, nesse sentido, igualmente relevante tratar da participação da istração fazendária na formação do precedente. A despeito das normas gerais contidas nos artigos 138 e 1.038 do C, a disciplina no âmbito do processo tributário demarcaria a noção de que, por ter tido a chance de cooperar democrática e dialogicamente com a construção do paradigma (na qualidade de "amicus curiae", por meio de associações de classe como Aconcarf, Unafisco Nacional, Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado São Paulo, etc), a istração, de modo mais lógico, reconheceria a autoridade do precedente. Mais do que incentivo, a norma que dê tratamento adequado a essa participação poderá induzir aos comportamentos esperados, ao garantir que os atingidos pela tomada de decisão tenham tido o efetivo direito de influir em sua constituição.
Ainda sobre a produção coparticipativa do precedente, avançaríamos em reservar oportunidade de manifestação para que a istração dê conhecimento à Corte sobre eventual questão autônoma e consecutiva a qual, embora não seja objeto do recurso representativo, poderá prejudicar ou inviabilizar a efetivação da futura decisão, o que vale também para o contribuinte.
Neste caso, caberia à Corte sobrestar o julgamento principal e iniciar os procedimentos para afetar recurso sobre a questão invocada, ou substituir o recurso representativo por outro que contemple ambas as questões delimitadas. Isso se a questão autônoma não puder ser discutida no próprio recurso representativo eleito sem modificar ou ampliar suas causas de pedir e pedidos (os quais, vale lembrar, não são abertos na medida em que devem se ater às circunstâncias do caso concreto piloto). A finalidade é que as discussões que possam impactar a efetivação do precedente, quando possível, sejam suscitadas e decididas no julgamento que definirá a interpretação da tese.
Ressalvadas as discussões sobre normas supervenientes ao precedente, essa precaução poderia evitar o prolongamento pernicioso do contencioso múltiplo, que por vezes tem se desdobrado em novos litígios e teses consecutivas. Com isso amenizaríamos as chances de que a temática seja redimensionada sob outros fundamentos e facetas após o precedente ser firmado e a parte vencida, usando a nova discussão como subterfúgio, esquive-se do cumprimento.
Além de que, ao se conceder oportunidade de manifestação prévia para que sejam abordadas questões relacionadas com a efetivação do precedente, tornam-se públicos (e, se julgados, até mesmo sanados) esses pontos, o que permitirá, no futuro, a fiscalização e o controle da aplicação do paradigma bem como da conduta coerente ou não das partes vencidas.
E não só. É imensa a oportunidade para que o processo tributário se coloque à frente e discipline aspectos gerais relacionados aos elementos vinculantes do precedente [2]. Ao determinar que as teses elaboradas pelo STF/STJ não se apoiem em conceitos indeterminados e vagos, as normas refreariam o surgimento de outras interpretações e inseguranças sobre o tema julgado. A título de exemplo, é o que se constata em discussões a respeito dos créditos de PIS/Cofins sobre a aquisição de insumos, que ainda pressupõe definições casuísticas. No âmbito processual, o cabimento do agravo de instrumento — tema 988/STJ — também suscita dúvidas similares à vista da configuração da urgência.
Vanguarda seria ainda estabelecer critérios para que as razões de decidir sejam delimitadas e deliberadas, de modo que haja visibilidade do voto proferido por cada ministro em relação a cada um dos fundamentos discutidos no colegiado. Em se tratando de recursos repetitivos, a questão de direito a ser julgada já deve ser especificamente delimitada por força do artigo 1.037, I do C. Além disso, o Código prevê no artigo 1.038, §3º que o acórdão contemple a análise dos fundamentos relevantes da tese discutida. Ainda assim, em relação à própria estruturação dos votos, ainda vemos os fundamentos determinantes discutidos imiscuírem-se com sentidos interpretativos e argumentos de forma pouco ou nada sistematizada, comprometendo, muitas vezes, a compreensão clara das deliberações que integram o acórdão. E como não são sistematizados, nem sempre todas as razões de decidir são consideradas e deliberadas por cada um dos ministros.
Tal proposição de fato não é significativa para os casos que envolvam único fundamento e votação unânime, mas teria inegável utilidade quando mais de um fundamento determinante for discutido e decidido em votações não-unânimes. Embora a busca das "rationes decidendi" seja dificultosa, a lei deveria acolher um critério com vistas a resguardar que a maioria da votação se refira não apenas ao resultado e ao dispositivo, mas também às razões determinantes que constituirão a regra de direito a ser observada em todos os casos considerados repetidos.
Considerando que o precedente extrapola o interesse das partes do recurso piloto — para quem o resultado de (des) provimento poderá ser suficiente —, é preciso que a maioria vencedora demonstre consenso quanto aos fundamentos que embasarão a solução jurídica e tese jurídica firmada pela Corte. Na prática, em algumas situações, seria identificar os fundamentos preliminares, de mérito e as respectivas deliberações (e para não desconsiderar as complexidades disso, citamos o RE 590.809 [3]). Em outras, o desafio é organizar, metodologicamente, todos os fundamentos e as respectivas deliberações relacionados com a (in) constitucionalidade ou a (i)legalidade da incidência tributária [4].
A missão não é simples, pois além das indeterminações contidas na interpretação da "ratio", nem sempre, já no início do julgamento, o relator terá a visão integral dos fundamentos que virão a ser debatidos pelos demais ministros. Não é raro que um dos ministros invoque fundamento diverso dos adotados nos votos anteriores. Ainda assim, considerando que o nosso modelo de precedentes está em franca construção, a Reforma agirá bem ao dedicar proposições que contribuam para o seu desenvolvimento.
Como o sistema de recursos repetitivos contido no C tem sido bem aproveitado e utilizado no contencioso tributário, a Reforma representa de fato uma preciosa oportunidade para aprimorarmos aspectos que, na prática, já se mostraram disfuncionais ou incompletos.
[1] LÍSIAS, Andressa Senna; PENCAK, Nina; ALVES, Raquel de Andrade Vieira. Uma análise a partir do RE 574.706, do ICMS-Difal e do REsp 1.221.170. Disponível em: /2022-mar-17/opiniao-re-574706-icms-difal-resp-1221170
[2] A esse respeito: LÍSIAS, Andressa Paula Senna. Quais são os elementos vinculantes do precedente produzido em recursos repetitivos? Revista de Processo. Vol. 323. Ano 47. p. 337-363. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jan. 2022.
[3] Confira a análise dos variados pontos críticos em: MARINONI, Luiz Guilherme. Julgamento nas Cortes Supremas: precedente e decisão do recurso diante do novo C. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 44-56.
[4] Nesse sentido, Alexandre Freitas Câmara observa que o sistema de votação nos julgamentos dificulta a existência de uma única razão de decidir: "tradicionalmente, o que se fez no Brasil foi 'somar conclusões de votos', de modo que se reputa majoritário um entendimento quando uma conclusão é manifestada ‘pelo menos’ pela maioria dos votantes. Pode haver, porém, casos em que uma conclusão tenha sido alcançada pela maioria (ou unanimidade) dos integrantes do tribunal, mas os juízes que a hajam sustentado se tenham valido de fundamentos completamente diferentes". (CÂMARA, Alexandre Freitas. Levando os padrões decisórios a sério: formação e aplicação de precedentes e enunciados de súmula. São Paulo: Atlas, 2018, p. 274).
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