Opinião

"PEC da Relevância" e processos de RJ: fim dos recursos especiais ou nada a temer?

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7 de agosto de 2022, 6h06

A Proposta de Emenda à Constituição nº 39/2021, apelidada de "PEC da Relevância", que exige a demonstração da relevância das questões de direito federal infraconstitucional no ato de interposição dos recursos especiais a serem analisados pelo Superior Tribunal de Justiça, foi recentemente promulgada pelo Congresso. Entrou em vigor, assim, no dia 15.7.2022, a Emenda Constitucional nº 125/2022 ("EC nº 125/22"), responsável por incluir os §§2º e 3º no artigo 105 da Constituição.

De acordo com a nova redação do dispositivo constitucional, no ato da interposição do recurso especial, "o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso" e, por manifestação de 2/3 dos membros do órgão competente para julgamento, o recurso poderá não ser conhecido por este motivo (CF, artigo 105, §2º). Adicionalmente, o constituinte reformador fixou as hipóteses que gozam de presunção de relevância (CF, artigo 105, §3º).

Este artigo não pretende discorrer sobre pertinência da reforma, sobre cada uma das hipóteses previstas na CF, artigo 105, §3º e, tampouco, se o rol do dispositivo é taxativo ou exemplificativo. Busca-se apenas e tão somente abordar os aspectos materiais e processuais dessas alterações no âmbito dos processos de recuperação judicial, regidos pela Lei nº 11.101/2005 (LRF).

Para tanto, a-se a analisar três das hipóteses de relevância do recurso especial, nos termos dos incisos III, V e VI e sua aplicação nos processos de recuperação judicial.

Inciso III: Ações cujo valor da causa ultrae 500 salários-mínimos
Uma das hipóteses em que a relevância é expressamente reconhecida pela CF consiste nas ações cujo valor ultrae 500 salários-mínimos.

Analisado sob a ótica da recuperação judicial, o número não surpreende (ao menos no estado de São Paulo). Isso porque, conforme relatório publicado pelo Observatório da Insolvência da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) em 11/7/2022, no estado de São Paulo, apenas 7,4% das recuperandas paulistas possuíam, à época do pedido de recuperação judicial, um ivo menor que R$ 1 milhão.

Conclui-se, assim, que ao que tudo indica, pelo menos no estado de São Paulo, o requisito previsto na CF, artigo 105, §2º será cumprido sem maiores dificuldades pelos recursos especiais interpostos contra decisões proferidas em recuperações judiciais.

A questão assume contornos mais complexos no caso de recursos especiais que tenham como origem decisões proferidas em incidentes de impugnação de crédito.

Diferentemente dos processos de recuperação judicial, a existência de incidentes de impugnação de crédito conexos à recuperação judicial com valor inferior a 500 salários-mínimos é frequente. Será, então, que nestes casos a comprovação da relevância do recurso especial, pelo fundamento da CF, artigo 105, §3º, III será inviabilizada?

A resposta — que nada tem de certa ou conclusiva  exige, como primeiro o, que se enfrente a natureza jurídica de tais incidentes.

Caso a impugnação de crédito seja compreendida como mero incidente, não é demais afirmar que, nesses casos, deve-se levar em consideração o valor da recuperação judicial ao qual ele é vinculado, para fins de verificação da hipótese prevista na CF, artigo 105, §3º III.

Por outro lado, caso se entenda que a impugnação de crédito possui natureza de ação e não de mero incidente [1], já que se trata de "procedimento de cognição exauriente, possibilitando o pleno contraditório e a ampla instrução probatória, em rito semelhante ao ordinário" [2], o critério de relevância, conforme hipótese da CF, artigo 105, §3º III, deverá ser atingido a partir do valor da impugnação específica que originou o recurso especial.

Entretanto, como dito anteriormente, não há conclusão sobre o tema e a EC nº 125/22 ainda deverá ser testada na prática.

Inciso IV: Acórdão que contrariar jurisprudência dominante do STJ
Nos termos da CF, artigo 105, §3º, V, também há relevância do recurso especial caso o acórdão recorrido contrarie jurisprudência dominante do STJ. Neste ponto, embora o conceito de jurisprudência dominante seja indeterminado, a sua possível definição se traduz em uma linha de precedentes significativamente majoritária, ainda que não pacífica [3].

Para o STJ, "a existência de julgado colegiado sobre determinado tema emanado de um dos órgãos fracionários do STJ espelha a posição jurisprudencial da Corte sobre aquela questão jurídica" [4]. Soma-se a isso os recursos especiais repetitivos, súmulas do STJ, julgamentos em Plenário ou Órgão Especial (C, artigo 927) [5].

No âmbito de qualquer processo envolvendo direito privado, então, além de apontar que o acórdão recorrido contraria súmula do STJ ou temas fixados pela sistemática dos recursos repetitivos, o recorrente também poderá demonstrar eventuais julgamentos majoritários na 3ª e/ou na 4ª Turma do STJ, ou mesmo na 2ª Seção, cuja conclusão do julgamento, ainda que não pacífica, seja contrária ao entendimento exarado no acórdão recorrido.

A relevância do recurso especial que trate de temas relacionados à recuperação judicial, poderá ser mais facilmente demonstrada caso, por exemplo, o acórdão recorrido aplique a lei federal de forma diversa daquela fixada nos julgados a) constantes nas Edições nºs 35 e 37 da Jurisprudência em Teses do STJ; b) que originaram a edição das súmulas nºs 480 ou 581 do STJ; ou, ainda, c) que sejam representativos da controvérsia repetitiva descrita nos Temas nºs 1.022, 1.051 e 1.145.

Inciso IV: Outras hipóteses previstas em Lei
Além dos incisos III e V do artigo 105 da Constituição, os recursos especiais interpostos vinculados a processos de recuperação judicial poderiam ter o requisito da relevância atendido por outros critérios? Acreditamos que sim.

Isso, pois, a Constituição, em seu artigo 105, §3º, VI, estabelece que haverá relevância "em outras hipóteses previstas em lei". A despeito da implícita necessidade de edição de ulterior legislação para regular novas hipóteses de presunção de relevância no dispositivo em comento, entendemos que, em algumas situações envolvendo elevado interesse social, a relevância da matéria é inquestionável.

Nesse sentido, o artigo 47 da LRF demonstra a relevância da recuperação judicial, não só para a empresa em recuperação judicial, mas também para a coletividade de interesses afetados pela crise empresarial.

Trata-se de um instituto que, conforme estabelecido na própria LRF, tem como objetivo "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Ora, a recuperação judicial tem relevância social e econômica pela sua própria natureza.

Não é por outro motivo, inclusive, que a ABJ recentemente também demonstrou, por meio de pesquisa empírica, que "o instrumento da ação de recuperação judicial é capaz de permitir a manutenção e até mesmo o soerguimento dos empregos dos trabalhadores" [6].

Conclusão
Se antes o o ao STJ já era dificultoso em razão do óbice da temida Súmula nº 7, a EC nº 125/22 certamente trouxe novos desafios para o exame de issibilidade dos recursos especiais.

No entanto, ao menos no âmbito de processos de recuperação judicial, é possível que os efeitos surtam em menor escala, na medida em que a relevância social de tais procedimentos é intrínseca à sua natureza.


[1] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 122.

[2] STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.799.932/PR, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. 1.9.2020.

[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 87.

[4] STJ, 1ª Turma, AgRg no REsp nº 1.130.746/RS, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, j. 6.6.2013.

[6] ABJ  Associação Brasileira de Jurimetria. Recuperação judicial e manutenção de empregos: A recuperação judicial alcança o objetivo de permitir a manutenção do emprego dos trabalhadores? O que diz a realidade empírica? Disponível em: https://lab.abj.org.br/posts/2021-03-09-recuperao-judicial-e-manuteno-de-empregos/. o em 15.7.2022.

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