Opinião

Direitos fundamentais: os presos deveriam votar?

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  • é doutorando em direito pela UFRGS. Mestre em direito pelo Centro de Estudos Europeus e Alemães – CDEA (UFRGS-PUCRS-DAAD). Assessor de procuradoria no Ministério Público de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e autor do livro "Constituição Cidadã e Voto: restrições ao direito de votar por condenação criminal definitiva".

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16 de agosto de 2022, 15h12

Por que uma pessoa que foi condenada, em juízo criminal, deveria deixar de votar enquanto cumpre a sua pena, ainda que não seja uma pena restritiva de liberdade? Ou dito de um modo mais acadêmico, faz sentido a interpretação constitucional que restringe o direito de participação política dos condenados criminais enquanto durarem os efeitos da condenação, independentemente do crime cometido e da pena imposta?

Gláucio Dettmar/Ag.CNJ
De início, cabe estabelecer algumas noções sobre os direitos de participação política, enquanto direito humano e fundamental, dentro do marco do Estado constitucional contemporâneo — estabelecido, no mundo, a partir do segundo pós-guerra e, no Brasil, com o advento da Constituição de 1988 —, no qual as noções de constitucionalismo e de democracia se encontram e se complementam.

Os direitos políticos, nesse sentido, materializam a soberania popular e legitimam o exercício do poder político. Eles podem ser subdivididos em direitos políticos ativos e ivos. Aqueles se caracterizam, principalmente, pelo poder que os cidadãos têm de eleger seus representantes ou por fazer, eles mesmos, as decisões políticas da comunidade — por meio de plebiscito, de referendo e da iniciativa popular de leis. Por sua vez, os direitos políticos ivos caracterizam-se pela possibilidade que o cidadão tem de ser eleito e ocupar cargos públicos, abarcando as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade.

Ademais, compõem os direitos políticos, em sentido mais amplo, também as liberdades de reunião, de associação, de opinião e de imprensa em matéria política, as quais possibilitam aos cidadãos expressarem a sua opinião política de forma pública, bem como os direitos de petição aos órgãos públicos e as possibilidades de fiscalização da gestão pública. Por tudo isso, diz-se que o direito ao sufrágio decorre diretamente da noção de que todo o poder emana do povo.

Destarte, tem-se que os direitos políticos são, a um só tempo, um direito humano e fundamental, uma função da soberania popular, um dever fundamental [1] e uma obrigação social, configurando-se como direitos de basilar importância para um regime de democracia representativa [2].

Nessa feita, é que se questiona a doutrina [3] e a jurisprudência [4] majoritárias do país que entendem que toda condenação criminal, com sentença transitada em julgada, é apta a suspender, de forma automática, os direitos políticos, independentemente do crime cometido ou da pena por ele aplicada. O fundamento para tal conclusão seria a interpretação dada ao inciso III do artigo 15 da CF/88, como se verifica nos votos da maioria em recente decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Especial 601.182 [5].

De forma geral, podem ser agrupados os argumentos a favor do atual "estado da arte" em torno de quatro ideias centrais: 1) a de que o condenado criminal estaria ferindo o pacto social ao cometer um crime e, por isso, teria justificada a diminuição na sua cidadania, condição que o impossibilitaria de votar; 2) a de que o inciso III do artigo 15 da CF/88 seria uma norma de eficácia plena, e, portanto, autoaplicável, independentemente de qualquer intermediação legislativa; 3) a de que o constituinte não estabeleceu distinções em relação a pena imposta ao condenado, de forma que não caberia ao legislador ordinário, ou mesmo ao poder judiciário, estabelecê-las; e 4) a de que haveria dificuldades logísticas e técnico-operacionais para instalar sessões eleitorais e efetivar o direito de votar dos condenados dentro do sistema penitenciário brasileiro.

A ideia trazida pelo item 1) justifica a redução da "capacidade de ser cidadão" de quem fira o pacto social, não considerando, assim, o apenado como uma pessoa merecedora de igual dignidade e respeito. Ou seja, ela expõe que o fundamento dos direitos civis e políticos seria o pacto social. Contudo, o Constitucionalismo Contemporâneo estabelece que são os direitos humanos e fundamentais — enquanto reflexos da dignidade da pessoa humana — o fundamento de validade e de legitimidade do ordenamento jurídico e da comunidade política, e não o inverso.

Neste sentido, a reprovabilidade da condenação criminal somente pode ser atribuída à conduta do agente — que é sancionada —, e não ao agente em si, enquanto pessoa que cometeu o crime. Deste modo, tem-se que é necessária uma justificação adicional para além da justificativa ordinária que possibilita a pena restritiva de liberdade para que se possa também restringir o direito de votar dos apenados de forma constitucionalmente adequada.

Quanto às ideias dos itens 2 e 3, é de se destacar que os argumentos expostos no sentido de que o inciso III do artigo 15 da CF/88 seria uma norma autoaplicável e de eficácia plena — não necessitando intermediação legislativa —, não condizem com a atual dogmática dos direitos fundamentais, estando em processo de gradual superação pela doutrina pátria [6]. De acordo com a teoria dos princípios [7], se, por um lado, não há uma norma constitucional completamente destituída de eficácia, por outro, todas as normas constitucionais são íveis de restrição e de regulamentação infraconstitucional. Ou seja, nenhum direito fundamental, enquanto norma com estrutura de princípio, é formalmente absoluto ou imune a restrições, sendo ível algum nível de restrição.

Logo, carece de sentido qualquer distinção das normas constitucionais baseadas nas diferenças e possibilidades de restrição e aplicabilidade, como ocorria nas concepções clássicas de eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais.

Ademais, as restrições aos direitos fundamentais podem ser definidas como ações ou omissões dos poderes públicos ou de terceiros, que dificultem, reduzam, eliminem ou impeçam o o a ou o exercício de um direito fundamental. Isto é, as restrições a direitos fundamentais são atos que intervêm no âmbito de proteção para restringir posições prima facie destes direitos, e apenas são legítimas enquanto encontrarem amparo e justificação, formal e material, na Constituição.

Deste modo, tem-se que as restrições a direitos fundamentais não podem ocorrer de qualquer forma, sendo necessária uma justificação intersubjetivamente controlável, devendo-se construir e aplicar critérios que permitam analisá-las racionalmente a luz da Constituição. Assim, deve-se ter como vedada qualquer ação estatal que impõe limitações inadequadas, desnecessárias ou excessivas ao direito de votar de um apenado.

Por último, a ideia do item 4) traz considerações de ordem prática, de que haveria impossibilidades fáticas para os apenados poderem votar. Entretanto, em primeiro lugar, deve-se reconhecer que nem todo apenado está condenado a uma pena privativa de liberdade. Em segundo lugar, as penas privativas de liberdade são subdividas em três tipos, em um sistema progressivo de cumprimento da pena, sendo que apenas haveria a impossibilidade legal de se sair da prisão para votar no caso de cumprimento de pena em regime fechado. Isto é, a alegada impossibilidade fática dos presos de votar apenas encontraria algum respaldo concreto quando houvesse condenação à pena privativa de liberdade em regime fechado.

Ainda assim, há de se considerar que a perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais determina aos poderes públicos uma atuação tanto na esfera normativa quanto na esfera fática. Efetivamente, os direitos políticos implicam deveres de proteção [8] que operam não só no sentido de defender os mecanismos de participação política já instituídos, mas também de forma a amparar a organização e o estabelecimento de procedimentos novos [9]. O Estado não pode se utilizar do argumento de dificuldades legais ou logísticas para se eximir de implementar a estrutura necessária e suficiente para possibilitar aos presos o adequado exercício do seu direito de votar.

Em suma, parece-nos que a condenação criminal deveria ser interpretada como uma condição necessária, mas não suficiente para a restrição dos direitos políticos ativos dos apenados. Desse modo, deve ser tida por insuficiente a previsão constitucional, contida no inciso III do artigo 15 da CF/88, para dela derivar que a suspensão dos direitos políticos deva operar de modo automático, para todo e qualquer delito, independentemente da pena aplicada.

É nesse sentido que o Estado necessita de uma especial fundamentação formal e material para restringir o direito de voto dos apenados: formalmente deve-se ter amparo em uma lei que preveja as hipóteses abstratas de incidência das restrições. Materialmente, é necessária que haja uma compatibilidade da restrição com os direitos humanos e fundamentais, aferida pelo critério da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) — tanto em abstrato, no momento da formulação da lei, quanto em concreto, no momento da decisão judicial condenatória. Parafraseando Dworkin, é preciso levar os diretos humanos e fundamentais a sério.


[1] Como se verifica neste trecho: "De resto as constituições, mesmo quando o não dizem, integram diversos deveres fundamentais. A este respeito, podemos mesmo considerar que historicamente se foram formando tantas camadas de deveres fundamentais quantas as camadas de direitos. E assim temos os deveres que vêm da época liberal, como os deveres de defesa da pátria e de pagar impostos; temos os deveres que são o contributo da ‘revolução’ democrática, consubstanciada na conquista do sufrágio universal, que nos deixou os deveres políticos como os deveres de sufrágio e de participação política". NABAIS, José Casalta. A Face Oculta dos Direitos Fundamentais. p. 5.

[2] Nessa perspectiva: "É mediante a fruição de direitos de participação política (ativa e iva) que o indivíduo não será reduzido à condição de mero objeto da vontade estatal (mero súdito), mas terá assegurada a sua condição de sujeito do processo de decisão sobre a sua própria vida e a da comunidade que integra". SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. p. 688.

[3] Dentre outros: "A suspensão dos direitos políticos não é pena ória, e sim consequência da condenação criminal: opera-se automaticamente, independentemente de qualquer referência na sentença. […] Trata-se de preceito extremamente rigoroso, porque não distingue crimes dolosos dos culposos, nem condenações a simples penas pecuniárias. Também não distingue crimes de maior ou menor potencial ofensivo ou danoso. A condenação por contravenção, que também é crime, acarreta, assim, o efeito constitucional", ZAVASCKI, Teori Albino. Direitos políticos; "Não distingue a Constituição entre as penas ao impor a suspensão dos direitos políticos enquanto perduraram os seus efeitos. Como bem diz Pontes de Miranda, 'o fundamento é ético', já que o criminoso não é idôneo para participar dos negócios públicos", FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988.

[4] Entre outros: "A norma inscrita no artigo 15, III, da Constituição reveste-se de autoaplicabilidade, independendo, para efeito de sua imediata incidência, de qualquer ato de intermediação legislativa. Essa circunstância legitima as decisões da Justiça Eleitoral que declaram aplicável, nos casos de condenação penal irrecorrível, e enquanto durarem os seus efeitos, como ocorre na vigência do período de prova do sursis, a sanção constitucional concernente à privação de direitos políticos do sentenciado. Precedente: RE 179.502-SP (Pleno). [RMS 22.470 AgR, relator ministro Celso de Mello, j. 11-6-1996, 1ª T, DJ de 27-9-1996]", BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo; "A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos não impede a suspensão dos direitos políticos. No julgamento do RE 179.502/SP, relatora ministra Moreira Alves, firmou-se o entendimento no sentido de que não é o recolhimento do condenado à prisão que justifica a suspensão de seus direitos políticos, mas o juízo de reprovabilidade expresso na condenação. [RE 577.012 AgR, relator ministro Ricardo Lewandowski, j. 9-11-2010, 1ª T, DJE de 25-3-2011]", BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo.

[5] "O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 370 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos os ministros Marco Aurélio (relator) e Rosa Weber. Em seguida, por maioria, fixou-se a seguinte tese: ‘'A suspensão de direitos políticos prevista no artigo 15, inciso III, da Constituição Federal aplica-se no caso de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos', nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes". BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário(RE) 601.182 Minas Gerais.

[6] Dentre outros: SILVA, Virgílio Afonso da. O Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais e a Eficácia das Normas Constitucionais. Revista de Direito do Estado; SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.

[7] Aliás, Virgílio Afonso da Silva faz importante ressalva sobre a teoria dos princípios defendida por Robert Alexy: "a chamada teoria dos princípios não é apenas uma distinção entre duas espécies normativas. Isso é apenas a sua expressão mais aparente. Mas essa distinção tem, ao mesmo tempo, pré-requisitos como a adoção de uma teoria externa e de um e fático amplo para os direitos fundamentais e consequências teóricas e práticas como a aceitação da proporcionalidade e, como vai se ver no tópico seguinte, de uma concepção relativa na definição do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Com isso, ficará claro que 'o escolher uma teoria', aqui, não é exatamente uma questão de gosto, mas uma questão de coerência argumentativa. Determinados pontos de partida levam, inevitavelmente, a determinados pontos de chegada". SILVA, Virgílio Afonso da. O Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais e a Eficácia das Normas Constitucionais. p. 41-42.

[8] Como destaca Duque, há que se ter algum cuidado para não confundir os deveres fundamentais (Grundpflichten) com os deveres de proteção do Estado (Schutzpflichten des Staates). Enquanto os deveres de proteção têm como destinatário específico o Estado, os deveres fundamentais dirigem-se aos cidadãos, impondo-lhes obrigações para com a comunidade política. DUQUE, Marcelo Schenk. Curso de Direitos Fundamentais.

[9] Como expõe Mendes: "Observe-se que não apenas a existência de lei, mas também a sua falta podem revelar-se afrontosas aos direitos fundamentais. É o que se verifica, v.g., com os direitos a prestação positiva de índole normativa, inclusive o chamado direito à organização e ao processo (Recht auf Organization und auf Verfahren) e, não raras vezes, com o direito de igualdade". MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e Seus Múltiplos Significados na Ordem Constitucional. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, nº 8, p. 131, 2004.

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  • é doutorando em direito pela UFRGS. Mestre em direito pelo Centro de Estudos Europeus e Alemães – CDEA (UFRGS-PUCRS-DAAD). Assessor de procuradoria no Ministério Público de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e autor do livro "Constituição Cidadã e Voto: restrições ao direito de votar por condenação criminal definitiva".

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