Sigilo do acordo de colaboração premiada não alcança delatados após homologação
26 de agosto de 2022, 13h04
Durante a autodenominada operação "lava jato", a colaboração premiada ganhou destaque como um dos principais métodos investigativos no enfrentamento ao crime organizado. Justamente por isso, doutrina e jurisprudência contribuíram sensivelmente para o aprimoramento do instituto, influenciando o legislador na formatação da Lei Anticrime [1].
Nesse cenário, um dos pontos que mais chamou atenção nas inovações legislativas promovidas em torno da colaboração premiada foi a cláusula da sigilosidade imposta pelo artigo 7º, notadamente no seu parágrafo 3º, senão, vejamos:
"O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese" (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019).
Parece-nos evidente que a razão de existência dessa previsão está vinculada ao fato de que durante a "lava jato" o teor de alguns acordos de colaboração premiada foi divulgado pela imprensa, inclusive com expressa autorização judicial, como na decisão do ministro Teori Zavascki na Petição 5.952/DF, razão pela qual o legislador estabeleceu que até o recebimento da denúncia ou queixa-crime, é vedado ao magistrado decidir pela publicidade do acordo e seu conteúdo em qualquer hipótese.
Ocorre que essa previsão deve ser interpretada em consonância com os princípios do contraditório e ampla defesa, mesmo na fase investigativa, o que significa que a regra impõe apenas o sigilo externo, não se aplicando aos investigados eventualmente delatados, mas desde que o contrato de colaboração já tenha sido homologado.
Registre-se, contudo, que durante a fase de tratativas, inaugurada com o recebimento pelos celebrantes (delegado de polícia e MP) da proposta de acordo de colaboração premiada [2], reinará o sigilo absoluto (interno e externo), somente tendo o aos autos o Ministério Público e/ou o delegado de polícia e o juiz. Isso significa que nem mesmo alguém que seja alvo daquela investigação ou seu respectivo advogado, poderá ter o ao seu conteúdo (sigilo interno). Muito menos o público em geral (sigilo externo). Não há inconstitucionalidade em nada disso diante do princípio da publicidade porque este ite relativizações nos termos do artigo 93, IX, CR c/c artigo 792, §1º e artigo 20, P. Neste caso prevalece o interesse público no êxito das investigações e na própria segurança do colaborador (artigo 7º, § 2º).
Sob tais premissas, defendemos neste trabalho que a sigilosidade em torno da colaboração premiada deve ser interpretada de acordo com a Súmula Vinculante nº 14, que estabelece o seguinte: "É direito do defensor, no interesse do representado, ter o amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".
Com efeito, se o contrato de colaboração premiada já foi homologado, isso significa que o ato de investigação já foi concluído e o elemento probatório devidamente assegurado, não havendo razão para a manutenção do sigilo interno até o recebimento da denúncia, o que, em nosso sentir, é prejudicial para a investigação criminal e, consequentemente, para toda a persecução penal.
Isto, pois, insistimos, a sigilosidade do acordo se mostra pertinente até a sua homologação, que é o ato jurídico que lhe confere validade e estabilidade. A partir daí os elementos de informações apresentados am a integrar o acervo probatório e poderão ser utilizados no processo. Justamente por isso, deve-se permitir que eventuais delatados possam confrontar o teor da colaboração desde a investigação, o que, além de fomentar os princípios do contraditório e ampla defesa, servirá para qualificar todo o material coligido.
Nesse diapasão, aliás, se posiciona a melhor doutrina, senão vejamos:
"Em virtude da garantia da publicidade dos atos processuais e pré-processuais penais, o procedimento preliminar no qual tenham sido tomadas as declarações incriminadoras do colaborador não pode ser um documento secreto. Deve ser garantido o pleno o ao conteúdo dos autos, tanto ao coimputado quando a seu defensor, não podendo ser a eles estendida eventual decretação de sigilo [3].
Conclui-se, portanto, que a regra na colaboração deveria ser a publicidade, de modo a assegurar a defesa e o contraditório aos coimputados. O acordo deveria se tornar público após a homologação, ou até antes, para assegurar a possibilidade de impugnação pelos eventuais prejudicados [4].
A colaboração premiada no Brasil não é em si causa de riscos. Realizadas as investigações decorrentes das informações trazidas pelo colaborador e cumpridas eventuais diligências em desenvolvimento, como a coleta do produto do crime ou salvamento da vítima, não há qualquer relevante razão de mantença do sigilo" [5].
No intuito de subsidiar nossas conclusões, salientamos que a investigação criminal tem uma função de filtro, selecionando os elementos de prova e, sobretudo, os casos penais que devem ser submetidos ao processo, qualificando e otimizando a atividade jurisdicional. Com a vedação do levantamento do sigilo da colaboração logo após a sua homologação perde-se a oportunidade de qualificar a prova a ser levada à juízo, comprometendo-se, outrossim, a própria função preservadora da investigação criminal.
Parece-nos que a previsão legal que ora se combate é pautada na falsa premissa de que os princípios do contraditório e ampla defesa só devem ser observados na fase processual, indo na contramão de diversos diplomas legais que, paulatinamente, vêm promovendo a participação da defesa na fase preliminar de investigação [6].
É preciso que se compreenda que a persecução penal deve se desenvolver — durante todas as suas fases! — em absoluta consonância com os direitos e garantias fundamentais. Sob tal perspectiva, Fauzi Hassan Choukr conclui que
"(…) a dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a formação de um processo banhado pela alteridade, ou seja, pelo respeito à presença do outro na relação jurídica, advindo daí a conclusão de afastar-se deste contexto o chamado modelo inquisitivo de processo, abrindo-se espaço para a edificação do denominado sistema acusatório. Fundamentalmente aí reside o núcleo de expressão que afirma que o réu (ou investigado) é sujeito de direitos na relação processual (ou fora dela, desde já na investigação), e não objeto de manipulação do Estado" [7].
Ainda sobre a importância do engajamento da defesa na fase de investigação, são valiosas as lições de SAAD:
"(…) é de se reconhecer que já há acusação, em sentido amplo, entendida como afirmação ou atribuição de ato ou fato à pessoa autora, coautora ou partícipe, em diversos atos do inquérito policial, como na prisão em flagrante delito; na nota de culpa; no boletim de ocorrência de autoria conhecida (…). Desta forma, o exercício do direito de defesa, eficaz e tempestivo, deve se iniciar no inquérito policial, permitindo-se então a defesa integral, contínua e unitária" [8].
Por tudo isso, reiteramos, foi mal o legislador ao mencionar o sigilo da colaboração nesse ponto da Lei 13.964/19, pois tal inovação dá margem a uma possível interpretação equivocada acerca do sigilo interno na colaboração premiada, o que, conforme exposto, coloca em risco a própria efetividade da persecução penal.
Se não bastassem esses argumentos, salientamos, ainda, uma questão prática que não pode ser olvidada nessa discussão. Nos referimos à previsão constante no artigo 2º, parágrafo 6º, da Lei 12.830/13, que impõe ao delegado de polícia o dever de fundamentar juridicamente a decisão de indiciamento de uma pessoa investigada. Destarte, seria tecnicamente inviável justificar o indiciamento de investigados sem fazer menção ao conteúdo do contrato de colaboração premiada homologado.
Assim, considerando os princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como o interesse do Estado-Investigação em qualificar o conjunto probatório, especialmente no que se refere às informações trazidas pelo investigado-colaborador e que podem ser confrontadas por investigados-delatados, torna-se imprescindível o levantamento do sigilo interno.
Em conclusão, com base nos substratos fáticos e jurídicos supramencionados, reiteramos nosso entendimento no sentido de que o sigilo imposto pelo artigo 7º, da Lei 12.850/13, deve ser modulado de acordo com a necessidade da investigação, sendo que uma vez homologado o pacto cooperativo, não pode persistir o sigilo interno, mas apenas o sigilo externo.
Muito embora a Lei 12.850/13 faça menção expressa ao juiz como a autoridade responsável pela garantia do sigilo na colaboração premiada, parece-nos que não se pode retirar da autoridade policial, como responsável pela investigação, a prerrogativa de franquear o o aos autos à defesa, especialmente quando tal decisão tem por objetivo qualificar o conjunto probatório. Na verdade, o delegado de polícia é a autoridade com o maior conhecimento sobre a investigação, razão pela qual tem aptidão para verificar as hipóteses em que o sigilo se faz necessário ou não, nos termos do artigo 20, do Código de Processo Penal.
Destacamos, por derradeiro, que as garantias processuais existem e devem ser observadas em respeito ao sujeito ivo da persecução penal, limitando o poder punitivo estatal. No caso em análise, todavia, o afastamento do sigilo seria autorizado em benefício dos investigados (delatados) e sem colocar em risco os direitos do colaborador e muito menos a efetividade da persecução penal.
[1] Sobre o tema, recomendamos outro estudo de nossa autoria: "Colaboração Premiada como Técnica Especial de Investigação Criminal", publicado pela editora Mizuno.
[2] Vale destacar que em nosso sentir a proposta de colaboração pela defesa do investigado pode ser feita de forma verbal, mas isso deve ser consignado no Termo de Confidencialidade e Recebimento de Proposta a ser lavrado pelos celebrantes e assinado pelas partes interessadas.
[3] LAUAND, Mariana de Souza Lima. O valor probatório da colaboração processual. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. p. 113.
[4] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 317-318.
[5] CORDEIRO, Néfi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.67.
[6] Entre outras leis que reforçam a participação da defesa na investigação, destaca-se a Lei 13.245/16, que alterou significativamente o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.
[7] Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. ed. 3. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.08.
[8] SAAD, Marta. Defesa no Inquérito Policial. Artigo disponível no livro Direito Processual de Polícia Judiciária I. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 190-191.
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