Ideologia jurídica nazista: da hipótese linguística ao totalitarismo
29 de agosto de 2022, 16h19
O período de repressão consagrado entre 1933 e 1945 na Alemanha, conhecido como nazismo, é objeto de muita curiosidade e, ao mesmo tempo, grande temor. Não é incomum que sejam feitas perguntas da seguinte natureza: "como as pessoas daquela época aceitaram a ascensão de um regime tão cruel?", ou "de que forma essa ideologia se sedimentou na consciência coletiva de modo tão implacável?" Com efeito, essas são perguntas não tão simples de responder, sendo necessária uma abordagem interdisciplinar para que se compreenda minimamente essa dinâmica. Nesse contexto, as origens de uma concepção sistêmica de sociedade e seus reflexos no pensamento jurídico são importantes facetas do fenômeno, que nos permitem ampliar um pouco mais nosso entendimento sobre esse tão brutal momento da história humana.

Reprodução
A hipótese linguística
O pensamento jurídico nazista muito era reflexo de uma visão mais fundamental que eles tinham da sociedade, que era baseada no mito da raça ariana. Essa concepção tem relação com a ideia do indo-europeu, que é uma noção surgida a partir de uma hipótese de trabalho construída no século 19 por linguistas e filólogos, os quais descobriram o parentesco entre as línguas europeias e indoarianas ou indoiranianas, faladas na Índia e Irã antigos. Com efeito, essa hipótese de trabalho foi construída por esses estudiosos para demonstrar o parentesco entre as línguas europeias e indoarianas ou indoiranianas, faladas na índia e Irã antigos, sendo relevante a observação de que "ariano" e "iraniano" originaram-se do termo sânscrito aryas, "nobre", "senhor". Propôs-se, assim, para esses dois grandes grupos linguísticos, uma origem comum, que seria exatamente o "indo-europeu". Isso tudo começou entre a segunda metade do século 18 e o início do século 19, quando ocorreu a revelação do sânscrito ao Ocidente — a linguagem dos textos sagrados e literários do hinduísmo —, adjetivo que significa "bem feito", "enfeitado", "adornado" [1].
Frans Bopp (1821-1868), importante linguista do período, afirmava que se encontraria mais preservada a língua cuja estrutura apresentasse mais afinidade com o sânscrito. Para ele, as línguas semíticas seriam de uma natureza menos fina, sendo o indo-europeu, enquanto língua original, uma língua perfeita em sua estrutura morfológica e sintática. As línguas que provieram do indo-europeu representariam uma degeneração, fazendo-se necessário voltar às origens, reconstruir o indo-europeu e recuperar a perfeição primitiva [2].
Nesse sentido, no esplendor do movimento romântico do século 19, uma certa intelectualidade alemã buscava suas origens étnicas e linguísticas, o que gerou a chamada germanomania, que procurava pela chamada "língua original" (Ursprünglich Sprache). Em suma, o raciocínio era: 1) O sânscrito, língua falada pelos aryas, reflete a pureza do indo-europeu; 2) O alemão está próximo do sânscrito e das origens arianas; 3) O alemão também reflete a pureza ariana [3].
Do racismo involutivo à concepção sistêmica de sociedade
Nesse contexto, o racismo evolucionista spenceriano, que justificava o neocolonialismo europeu, se torna, para os alemães, um racismo involutivo, cujo primeiro representante foi Gobineau [4]. Involutivo na medida em que quanto mais próximo dessa raiz ária, mais pura seria a raça. Isso se deu muito porque os britânicos, que se apresentavam como a maior potência mundial, estavam dominando o mundo, enquanto os alemães queriam dominá-lo. Na luta da raça branca com os "de cor", eles deveriam ser superiores aos outros brancos [5]. Ou seja, para os britânicos, o organismo social spenceriano (sociedade sistêmica) já estava montado; os alemães, por outro lado, ainda estavam por fazer a sociedade sistêmica que dominasse o mundo.
Um ponto importante a se ressaltar é que a ideia de uma sociedade ideal concebida como sistema, com comportamentos biologicamente condicionados, remonta a pelo menos o século XV, com o teólogo Johannes Nider, na obra Formicarius [6]. Nessa obra, Nider aponta os judeus como inimigos e critica a sociedade de seu tempo pela debilitação da fé. Tem-se aqui dois elementos básicos da cosmovisão (Weltanschauung) nazista no século 20.
Nider irava as formigas por razões que coincidem muito com a ideia de "comunidade popular" (Volksgemeinschaft). Ele afirmava que Deus tinha posto sua sabedoria nas formigas, de modo que cada uma tinha o senso de comunidade incorporado, estando elas organizadas em forma de constituição republicana: estão obrigadas reciprocamente, sem receber instruções, porque é da essência do seu estado uma ordem interna. Essa característica surge no século 20 para distinguir a alegada superioridade ária em relação aos povos mestiços, os quais, por carecerem por completo desse condicionamento, deveriam apelar sempre à lei exterior [7].
Aliás, há de se ressaltar que havia a gestação de um romantismo à época. O romantismo se caracteriza pela manifestação de um desprezo pelo que for finito, dando privilégio ao princípio do infinito, de modo que qualquer limitação (como a limitação jurídica) é vista negativamente. A isso se soma o providencialismo histórico e o tradicionalismo, definindo a nação nos termos de elementos tradicionais como a raça, o costume, a língua e a religião [8].
Dos reflexos da ideologia nazista no âmbito do direito
Nesse sentido, quando manifestada essa ideologia no âmbito jurídico, tem-se alguns consequências. Em vez de apego à legalidade e à taxatividade, os nazistas davam maior ênfase a conceitos jurídicos indeterminados, os quais, por carecerem de maior densidade normativa, abriam um grande espaço para a interpretação. A questão é que o conteúdo de tais conceitos era totalmente voltado para a cosmovisão romântica nazista, com termos que denotavam a expressão de uma mística irracional. Zaffaroni muito bem demonstra esse fato:
"A leitura dos juristas dos anos que nos cabe com frequência impressiona como um verdadeiro alarde jurídico, infestada de pseudoconceitos próprios da publicidade midiática e que procuram tornar alvo os sentimentos: espírito do povo (Volksgeist), alma popular (Volksseele), alma da raça (Rassenseele), sangue (Blut), chão (Boden), vida (Leben), ordem concreta (konkrete Ordnung), sentimento jurídico (Rechtsgefühl), entre outros. A atual técnica publicitária — não só comercial, mas também política — mostra como as palavras são manipuladas para impactar no aspecto afetivo e neutralizar ou dificultar o exercício da crítica racional" [9].
Integrava-se o indivíduo na totalidade da comunidade do povo, pois o bem desta é que deveria prevalecer. Esse organicismo recorria a considerações místicas e emocionais, supondo o uso de uma metalinguagem, que se expressava de maneira irracional, no que se expunha as ideias antiliberais [10].
Fato é que os nazistas visaram à construção de um pretenso Estado de Justiça (Gerechtigkeitsstaat) em detrimento de um Estado de direito (Rechtsstaat), que era visto por eles como individualista e formalista [11]. Com efeito, esse modo de pensar o Estado e o direito referente à ideologia liberal já estava muito fragilizado no contexto histórico em que há a ascensão do nacional-socialismo [12].
Logo após a subida de Hitler ao poder, em 1933, Carl Schmitt acusou o positivismo jurídico de ser um pensamento da ideologia liberal que protegia criminosos e sonegadores por meio da defesa do princípio da legalidade e da irretroatividade. Schmitt propugnava a abolição (Auflösung) de tais princípios, defendendo o "princípio da direção unitária" (Führungsgrundsatz) [13]. Isso é uma manifestação da noção de que a aplicação do direito deveria se dar acordo com o "espírito do povo" (Volksgeist).
Não é à toa que o método de interpretação que prevalecia desde antes do início do período era o da teleologia objetiva, o qual visa à adaptação da norma à situação do momento, independentemente de sua formulação textual e da vontade do legislador. Além disso, as autoridades estatais realizavam a unbegrenzte Auslegung (interpretação sem limites), de tal sorte a se desvencilhar de qualquer amarra legal [14].
Grande importância para esse fenômeno de desapego à segurança jurídica teve a Lei de modificação do código penal, de preceitos processuais penais e da lei de organização dos tribunais, de 28 de junho de 1935, que introduziu a analogia no § 2º do Código Penal Alemão, segundo o qual "Será punido todo aquele que cometa um fato que a lei declare punível ou que mereça uma pena segundo a ideia básica de uma lei penal ou segundo o são sentimento do povo" [15] (gesundes Volksempfindem). Assim, com violação total ao princípio da irretroatividade, ou-se a itir, até em âmbito positivo, a analogia em prejuízo do réu.
A desnecessidade da legislação formal para aplicar o direito é reflexo de uma suposta exigência de uma concepção material de justiça, que, para os juristas nazistas, era equiparada à vontade do povo: "justo é o que serve ao povo alemão" ("Gerecht ist, was den deutschen Volke frommt"), conforme afirmava o jurista Roland Freisler [16]. O conteúdo da vontade do povo deveria corresponder ao direito nacional-socialista, o qual era definido pela liderança do Führer. A moral e o direito não seriam mais separados, de modo a haver uma intensa eticização do segundo, a partir de um entendimento místico da nação e da raça alemãs e uma conceituação metafísica orientada ao ser e à vida [17].
É nesse contexto que surgem as novas fontes do direito nacional-socialista, que aparecem junto a esse direito relativizado. O jurista e estudioso do período, Bernd Rüthers, assim as elenca: a) a liderança providencial do Führer; b) o caráter nacional (Volkstum) racialmente determinado ou a comunidade racial do povo; c) o programa do Partido Nacional-Socialista; d) o espírito do nacional-socialismo; e e) o são sentimento do povo [18].
Alguns problemas foram causados por essas novas fontes do direito em decorrência da variedade, vagueza e não explicada hierarquia entre elas. O autor chega ainda a afirmar que as chamadas ao sentimento e às invocações do espírito do povo, da alma popular, da consciência do povo, da comunidade popular, da ideia da raça, da identidade racial e do sangue culminaram em tons místicos, a ponto de ser difícil acreditar que se estava diante de escritos de teoria do direito [19].
Considerando o exposto supra, pode-se facilmente entender, mais especificamente em âmbito penal — o principal instrumento repressor do direito —, a ideia de delito como violação do dever da comunidade, construída pelos jovens penalistas da Escola de Kiel, Georg Dahm e Friedrich Schaffstein. Os autores entendiam que o delito não se configuraria como lesão a um bem jurídico. Essa concepção, para eles, era oriunda da tradição iluminista, altamente repudiada pelos nazistas. Para eles, na verdade, o delito seria a omissão do cumprimento de um dever ético para com a comunidade [20].
Haveria a necessidade, então, da superação da contraposição entre indivíduo e coletividade. Para se ter noção de até onde essa superação ousou chegar, o jurista Karl Larenz, no lugar da ideia de direito subjetivo, defendia a noção de "situação jurídica do indivíduo" localizado no ordenamento sócio-jurídico-comunitário (Rechtsstellung des Volksgenossen) [21].
Em suma, conforme Schaffstein, a orientação para o pensamento comunitário introduz os conceitos de honra, lealdade e dever como ponto central da dogmática penal, pois deles surge com máxima potência o vínculo comunitário humano, isto é, as exigências básicas que o sistema "comunidade popular" impõe a seus subsistemas (seres humanos). Haveria uma supressão completa da contraposição comunidade-indivíduo, ou seja, as pretensões de desequilíbrio do sistema (os delitos) deveriam ser compensadas com uma intervenção de normalização ou de equilíbrio [22].
Conclusão
Como se vê, a partir de uma hipótese linguística os nazistas extraíram algumas bases para a construção de todo um sistema de ideias que desencadeou em um aparato repressor cujos efeitos jamais haviam sido vistos na história da humanidade. Não se está a olvidar dos inúmeros outros fatores que favoreceram a eclosão dessa ideologia. O que se buscou demonstrar foi como a evolução dessas ideias ajudou no desenvolvimento de um sistema repressor. A eliminação completa do sujeito como centro de valor da ordem jurídica abriu espaço para construções completamente alucinadas, de deveres éticos baseados em uma sociedade ainda em construção que representaria a suposta "pureza da raça", a partir de elementos místicos de natureza completamente irracional.
E que sirva de alerta: não poderá o direito jamais abrir mão de cumprir com aquela que é sua principal razão de existência — a contenção do poder.
[1] BLIKSTEIN, Izidoro. Semiótica e totalitarismo. São Paulo: Contexto, 2020, p. 160.
[2] BLIKSTEIN, 2020, p. 167-168.
[3] BLIKSTEIN, 2020, p. 170.
[4] E, posteriormente, Stewart Chamberlain, na medida em que se entendeu que o pensamento de Gobineau não era extremado o suficiente.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a dogmática penal alemã entre 1933 a 1945. 1ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019, p. 35
[6] Publicada em 1475, mas escrita na década de 1430. Muitas vezes foi publicada junto com O Martelo das Feiticeiras, de Kramer.
[7] ZAFFARONI, 2019, p. 29-30.
[8] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 860-862
[9] ZAFFARONI, 2019, p. 44- 45.
[10] RODRÍGUEZ, Javier Llobet. Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-1945). 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 93.
[11] DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: teoria da validade e da interpretação do direito. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 170.
[12] SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Madrid: Editoral Tecnos, 1996, p. 67.
[13] DIMOULIS, 2018.
[14] DIMOULIS, 2018, p. 170-172.
[15] PORCIÚNCULA, José Carlos. O Direito Penal, o "sentimento do povo" e o nazismo alemão. Disponível em: /2019-mai-15/porciuncula-direito-penal-sentimento-povo-nazismo. o em: 17 abr. 2021.
[16] AMBOS, Kai. Direito penal nacional-socialista: continuidade e radicalização. 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 66.
[17] AMBOS, 2020, p. 70
[18] RÜTHERS, Bernd. Derecho degerenado: teoria jurídica y juristas de câmara en el Tercer Reich. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 59-60
[19] RÜTHERS, 2016, p. 61
[20] ZAFFARONI, 2019, p. 240.
[21] MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Positivismo jurídico e autoritarismo político: a falácio da reductio ad Hitlerum. In: DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico. São Paulo: Método, 2008, p. 119.
[22] ZAFFARONI, 2018, p. 170.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!