Nova lei busca promover indenizações em matéria concorrencial
4 de dezembro de 2022, 6h31
A nova Lei nº 14.470/2022 tem o objetivo de incentivar o ajuizamento de ações de indenização em matéria concorrencial no Direito brasileiro.
Trata-se de o importante para a promoção de uma mais efetiva reparação dos danos decorrentes de condutas anticompetitivas e que representa uma alteração no balanceamento da aplicação da legislação concorrencial no Brasil, que sempre teve como ênfase a atuação em sede istrativa do Cade (Conselho istrativo de Defesa Econômica).
A partir da avaliação de que as ações de indenização em matéria concorrencial ainda não atingiram o patamar que podem atingir no Brasil, o legislador procura incentivá-las por meio do estabelecimento de indenização em dobro para casos de cartel, buscando ainda remover obstáculos que até o momento vêm dificultando a reparação dos danos. Ao mesmo tempo, a lei mostra preocupação com a preservação dos incentivos para a celebração de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação com o Cade, em reconhecimento de que tais mecanismos são importantes para a política de prevenção de infrações concorrenciais.
A defesa da concorrência no Brasil avançou bastante nas últimas décadas, como resultado, sobretudo, da aplicação da legislação concorrencial pelo Cade. Apesar dos avanços em âmbito istrativo, o Brasil continua bastante defasado em comparação com outras jurisdições, como Estados Unidos e União Europeia, quando se avaliam os resultados da reparação em âmbito civil dos prejuízos causados pelas infrações à ordem econômica. Embora o artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011) preveja que os prejudicados têm o direito de ingressar em juízo para obter indenização, são poucos os processos que foram julgados, de modo que as vítimas não têm conseguido efetivo ressarcimento.
As razões para tanto são muitas. Um dos principais fatores é a dificuldade enfrentada pelos prejudicados para provar os danos sofridos, o que normalmente depende de perícias custosas envolvendo questões econômicas que não fazem parte da rotina do Poder Judiciário. Há ainda importantes dificuldades adicionais, como a tendência de morosidade do Poder Judiciário brasileiro e a grande incerteza na jurisprudência com relação, por exemplo, ao termo inicial da prescrição da pretensão indenizatória.
Esse cenário culminou, em anos recentes, na tendência de os prejudicados brasileiros buscarem ressarcimento junto ao Poder Judiciário de outros países por danos causados por infrações cometidas no Brasil. Como exemplo, mencione-se o processo que tramita na justiça inglesa movido por partes prejudicadas pelo chamado "cartel das laranjas" investigado pelo Cade.
Diante desse quadro pouco animador, a nova Lei nº 14.470/2022, publicada no último dia 17 de novembro, busca promover as ações de indenização em matéria concorrencial no Brasil.
Em primeiro lugar, a lei procura aumentar os incentivos para o ajuizamento de ações que busquem indenização pela prática de cartel – acordos ilícitos entre concorrentes com o objetivo de definir preços, quantidades ou outras variáveis concorrenciais. Nesse sentido, a lei inclui o parágrafo primeiro ao artigo 47 à Lei de Defesa da Concorrência, prevendo que os prejudicados pelas práticas previstas no artigo 36, parágrafo terceiro, incisos I e II da Lei de Defesa da Concorrência — a saber, cartel e outras condutas colusivas entre concorrentes — terão direito a "ressarcimento em dobro pelos prejuízos sofridos".
A nova regra tem inspiração no direito dos Estados Unidos, onde os prejudicados têm direito a indenização em triplo (treble damages) por danos causados por infrações concorrenciais. Essa regra costuma ser apontada como uma das responsáveis pelo grande volume de demandas desse tipo nos Estados Unidos, jurisdição onde a maior parte da aplicação da legislação concorrencial se dá por meio das demandas movidas por particulares (private enforcement).
A transposição de regra semelhante para o Brasil representa importante novidade no ordenamento brasileiro. Enquanto nos Estados Unidos a aplicação de indenização em montante superior aos danos sofridos é muito mais frequente — inclusive em outros ramos da responsabilidade civil, em que não é incomum a aplicação dos chamados danos punitivos (punitive damages) — no Brasil a regra geral da responsabilidade civil é que a indenização se mede pela extensão do dano (Código Civil, artigo 944). Embora haja outros exemplos de indenização em dobro no direito brasileiro — como o dever de ressarcir em dobro em caso de cobrança de dívida já paga (Código Civil, artigo 940) — tais hipóteses são de aplicação restrita na jurisprudência e, normalmente, envolvem situações em que os valores envolvidos tendem a ser bem menores do que a maioria das ações envolvendo a prática de cartel.
Nesse sentido, a aposta do legislador é de que a perspectiva de recebimento de indenização em dobro — em casos que usualmente envolvem valores elevados — pode constituir incentivo que compense os demais obstáculos enfrentados pelos autores de demandas indenizatórias.
Uma importante exceção à aplicação da indenização em dobro prevista pela nova lei diz respeito aos infratores que tenham celebrado com o Cade acordo de leniência ou termo de compromisso de cessação, instrumentos que permitem que infratores colaborem com as investigações em troca de eliminação ou redução das penalidades. Nesse ponto, a preocupação do legislador foi preservar a atratividade desses acordos com o Cade.
A interação entre acordos de leniência e as ações de indenização é fonte de atenção em diversas jurisdições. Argumenta-se que, ao aumentarem o potencial custo incorrido pelos membros do cartel — que, além das sanções istrativas e criminais, ficam sujeitos ao pagamento de indenização — as ações de indenização podem ser um fator de desestímulo à celebração de acordos com as autoridades. E o fato é que tais acordos são instrumentos importantes na política de repressão às infrações concorrenciais, sendo um dos principais meios pelos quais as autoridades concorrenciais tomam conhecimento da prática de infrações concorrenciais.
Essa preocupação com os incentivos para a celebração de acordos com o Cade é especialmente justificável no caso da nova lei, que, como visto, ou a prever o dever de reparação em dobro aos prejudicados. Assim, como forma de lidar com os potenciais desincentivos à celebração desses acordos, o legislador criou um regime mais benéfico para os signatários de acordos de leniência e termos de compromisso de cessação, que não serão obrigados ao ressarcimento em dobro previsto na nova lei (artigo 47, §2º). Além disso, os signatários também não estarão sujeitos à responsabilidade solidária em virtude dos danos causados pelos demais coautores, respondendo apenas "pelo dano que causaram aos prejudicados" (artigo 47, §3º).
Nesse ponto, o legislador parece ter se inspirado em regra semelhante do direito dos Estados Unidos, em que os beneficiários de acordo de leniência não pagam indenização em triplo (treble damages) e não ficam sujeitos à responsabilidade solidária por danos causados por outros co-infratores. Na União Europeia, embora não haja pagamento de indenização superior aos danos sofridos pela vítima, há também um tratamento mais benéfico aos signatários de acordos de leniência, que não ficam solidariamente responsáveis pelos danos causados pelos demais coautores.
A nova lei também procura atenuar algumas dificuldades atualmente enfrentadas pelos autores de ações indenizatórias em matéria concorrencial.
A esse respeito, a lei procurou eliminar uma das fontes de incerteza da atual disciplina da responsabilidade civil concorrencial, qual seja, a distribuição do ônus da prova em caso de alegação de ree do sobrepreço (a chamada -on defense). Trata-se da alegação, por parte do réu em ação indenizatória, de que a vítima não foi quem efetivamente arcou com os prejuízos, tendo sido capaz de rear o sobrepreço oriundo do cartel para o elo seguinte da cadeia, embutindo o sobrepreço (total ou parcialmente) no preço de seus próprios produtos ou serviços.
Trata-se de questão ainda não pacificada pela jurisprudência. Há ações indenizatórias em que se entendeu que o ree do sobrepreço não se presume e que o ônus da prova compete ao réu que o alega. Em outros casos, contudo, a pretensão indenizatória foi julgada improcedente com base em verdadeira presunção de que o sobrepreço teria sido reado pelo comprador direto ao elo seguinte da cadeia produtiva.
A nova lei pretendeu eliminar essa indefinição, que constitui fonte de grande insegurança para os autores de demandas indenizatórias, estabelecendo textualmente que "não se presume o ree de sobrepreço nos casos das infrações à ordem econômica previstas no artigo 36, §3º, incisos I e II, cabendo a prova ao réu que o alegar".
Outra fonte de incerteza que a nova lei buscou solucionar foi o tratamento da prescrição, em especial a discussão sobre o termo inicial do prazo prescricional.
Na jurisprudência, há exemplos de julgados que entenderam que o prazo se inicia na data de cometimento do ato ilícito, de acordo com interpretação estrita do artigo 189 do Código Civil, independentemente de o prejudicado ter conhecimento da prática ilícita. Por outro lado, há julgados que sustentam que, dado o caráter usualmente sigiloso das infrações concorrenciais (em especial dos cartéis), o prazo não deve começar antes que o prejudicado possa ter ciência da infração, sob pena de ser inviabilizada a reparação civil. Mesmo sob essa ótica, há dúvida sobre o momento a ser considerado como termo inicial da prescrição, se a partir da data da decisão do Cade reconhecendo a existência da infração, como decidido em alguns julgados, ou se em momento anterior.
Essa indefinição da jurisprudência com relação ao termo inicial da prescrição constitui importante fator de desestímulo ao ajuizamento de demandas indenizatórias envolvendo questões concorrenciais.
A nova lei enfrenta diretamente a questão da prescrição, estabelecendo expressamente que 1) a pretensão reparatória por danos causados pelas infrações à ordem econômica prescreve em cinco anos, eliminando potenciais dúvidas quanto ao prazo aplicável; e 2) o termo inicial da prescrição a a ser a "ciência inequívoca do ilícito" (artigo 46-A, §1º), a qual se considera ocorrida "quando da publicação do julgamento final do processo istrativo pelo Cade" (artigo 46-A, §2º). A lei também estabelece expressamente que "não correrá a prescrição durante o curso do inquérito ou do processo istrativo no âmbito do Cade".
Nesse ponto, a nova lei se alinha ao tratamento dispensado à matéria em outras jurisdições com maior tradição em matéria de indenizações concorrenciais, como, por exemplo, Estados Unidos e União Europeia.
Por fim, a nova lei estabelece ainda que a decisão do Plenário do Tribunal do Cade cominando multa ou impondo obrigação de fazer ou não fazer será "apta a fundamentar a concessão de tutela de evidência, permitindo ao juiz decidir liminarmente" nas ações movidas com fundamento no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência.
Embora tal dispositivo tenha o efeito de reforçar a importância probatória da decisão do Cade no âmbito das ações indenizatórias, não se pode, em nossa opinião, chegar ao limite de interpretar, como ocorre em outras jurisdições, que a decisão istrativa do Cade terá caráter vinculante perante o Poder Judiciário, o que conflitaria com a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXV). Essa conclusão é confirmada pelo fato de que, por ser a tutela de evidência uma tutela provisória (C, artigo 294), trata-se de decisão que pode vir a ser revogada ou modificada a qualquer tempo (C, artigo 296).
O dispositivo em questão tenderá a ser de mais fácil aplicação prática caso o pedido liminar tenha por objeto a cessação de prática considerada ilícita em decisão istrativa pelo Cade. Por outro lado, caso se trate de pedido liminar tendo por objeto a antecipação de provimento indenizatório, é possível antever dificuldades práticas na sua aplicação, uma vez que geralmente as decisões proferidas pelo Cade não calculam os danos sofridos pelos particulares, o que deve ser feito no curso da demanda indenizatória.
A nova lei entra em vigor na data de sua publicação, sendo que, dada a importância das modificações, é possível antecipar que haverá discussão quanto à aplicação no tempo de alguns de seus dispositivos (i.e., se apenas para infrações iniciadas a partir da publicação ou se também para infrações anteriores em que ainda não houve condenação istrativa ou civil), o que deverá ser objeto de definição pela jurisprudência.
Por fim, embora a nova lei elimine importantes obstáculos para a reparação dos danos, um o adicional que pode ser dado é prever regras que efetivamente facilitem a demonstração dos danos no curso das ações indenizatórias, a exemplo do que fez a Diretiva sobre o tema editada em 2014 na União Europeia, a qual prevê que o standard de prova necessário para a demonstração do dano não deve inviabilizar a estimação do dano na prática, além de estabelecer presunção relativa de que os cartéis causam danos aos prejudicados.
A rigor tais inovações não dependem de alteração legislativa e podem ocorrer mediante evolução jurisprudencial. Aliás, um dos possíveis desdobramentos indiretos da adoção de indenização em dobro (não inteiramente vinculada à extensão dos danos) é acelerar a receptividade do Poder Judiciário brasileiro para a adoção de metodologias de estimação de danos aceitas em outras jurisdições, que antes poderiam encontrar maior resistência na jurisprudência.
Ainda assim, dada a pouca familiaridade do Poder Judiciário com questões concorrenciais e a demora da jurisprudência em sedimentar as teses relacionadas à matéria, é importante que futura alteração legislativa busque promover avanços nesse sentido.
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