Opinião

Setor dois e meio: os benefícios de uma eventual regulamentação

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12 de dezembro de 2022, 7h11

As ciências sociais propam a divisão da sociedade civil em três setores distintos. O primeiro setor seria formado pelo governo, o segundo, pelas empresas privadas, e o terceiro seria formado por associações sem fins lucrativos. A definição exata para cada um dos setores ainda é, em certa medida, objeto de discussão entre os acadêmicos.

A definição mais amplamente usada como referência para o terceiro setor é a proposta por Salamon & Anheier [1]. Os autores defendem que o terceiro setor é composto por cinco atributos estruturais ou operacionais que distinguem as organizações do terceiro setor de outros tipos de instituições sociais: 1) constituição formal; 2) estrutura básica não governamental; 3) gestão própria; 4) sem finalidade de lucros; e 5) trabalho voluntário.

No fim do século 20, a sociedade civil se organizou de forma e apresentar modelos de negócio que não se definiam completamente nem como segundo, sem como terceiro setor, tendo surgido então a denominação de setor dois e meio. São modelos de negócios por essência comprometidos com o impacto social. O setor dois e meio é visto então como um setor da economia que visa ao equilíbrio entre a sustentabilidade e o retorno financeiro no resultado das empresas. Conforme explica Letícia Méo:

 "Trata-se, assim, de modelo de negócio empresarial híbrido que surge da fusão entre o Segundo e o Terceiro Setor, diante de uma realidade social em que, 1) o Estado (Primeiro Setor) é deficitário e não atende os direitos fundamentais, individuais e sociais previstos pela Constituição Federal; 2) as sociedades empresárias (Segundo Setor) buscam desenvolvimento econômico e lucros desenfreados; 3) as associações e fundações (Terceiro Setor) que possuem como objetivo cobrir os déficits prestacionais do Estado, possuem fragilidade organizacional, dependem de recursos de terceiros e, ainda, deparam-se com o descrédito popular, em razão de diversas notícias sobre desvios de suas finalidades" [2].

Diferenças entre o segundo e terceiro setor
Por definição, os atores do segundo setor objetivam o lucro e os atores do terceiro setor não visam ao lucro e sim retornos de cunho social. O setor dois e meio é tido como uma amálgama de ambos, isto é, tendo finalidade de lucro, porém com objetivo social, em que pese ainda haver discussão sobre o tema.

O setor dois e meio pode então ser definido como sociedades empresárias que visam obter lucro, mas que, pretendem, intencionalmente, resolver problemas sociais por meio de seu produto ou serviço. Segundo o site do Pipe Social, plataforma que contabiliza os negócios de impacto no Brasil, há mais de cinco mil negócios dessa natureza, denominados "Negócio de Impacto".

 Regulamentação
Apesar de mais de 30 anos de existência, o setor não conta com regulamentação própria no Brasil. Existe proposta legislativa tramitando no Senado Federal, Projeto de Lei do Senado nº 338, de 2018, que dispõe sobre o Contrato de Impacto Social (CIS). O CIS seria um acordo de vontades por meio do qual uma entidade pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, se compromete a atingir determinadas metas de interesse social, mediante o pagamento de contraprestação do poder público, condicionada à verificação, por agente independente, do atingimento dos objetivos.

Em outras palavras, a proposta prevê um contrato entre a istração e uma entidade pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, por prazo determinado, para consecução de um objetivo específico. Note-se que não se trata de uma qualificação da própria entidade, à semelhança das legislações sobre Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, mas sim de um contrato istrativo firmado com a istração pública.

Principiologia
Apesar da inexistência de regulamentação específica, a principiologia do setor dois e meio já existe no ordenamento jurídico brasileiro. A função social da propriedade é conceito existente na legislação nacional desde a promulgação da Constituição de 88, ao itir, em seu artigo 5º, que a propriedade atenderá a sua função social. Além disso, o artigo 170 determina que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, entre outros, o princípio da função social da propriedade. Em mesmo sentido, o Código Civil de 2002 prevê que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

 A aplicação da função social às empresas, por decorrência do princípio constitucional, já é discutida inclusive nas sociedades empresárias. A discussão sobre os limites da função social da empresa tem produzido relevante conhecimento jurídico nos últimos anos.

É possível cogitar, em analogia, que o setor dois e meio seria caracterizado pela existência de sociedade empresária, mantido o objetivo de lucro de maneira secundária, porém com objetivo principal norteado no impacto social da empresa. Diferentemente da sociedade empresária tradicional, o atingimento do impacto social não seria mera opção ou função subsidiária da ação empresarial, porém efetiva função principal de atuação.

Com base na proposta feita por Salamon & Anheier, descrita anteriormente, o setor dois e meio poderia ser, de maneira paralela, caracterizado por cinco atributos estruturais ou operacionais que o distinguiriam do segundo e do terceiro setores, a saber: 1) constituição formal; 2) estrutura básica não governamental; 3) gestão própria; 4) objetivo principal de impacto social; e 5) objetivo secundário de geração de lucro.

Conforme explica Letícia Méo, existem características principais de empresas sociais em diversos países, conforme segue:

"(…) é possível se depreender que, em todos os países, essas empresas possuem características comuns, que, portanto, são a ela inerentes. Nesse sentido, o Projeto Setor Dois e Meio, organizado no Brasil, aponta cinco pontos sociais e econômicos dessas características comuns:
– Possuem um propósito social definido e sua gestão deve sempre seguir esse objetivo social;
– Adotam estratégias de negócios, de forma a gerar resultados positivos, com renda, comercialização de produtos e fornecimento de serviços;
– Possuem maior parte do quadro de funcionários como assalariados, para que se atribua sustentabilidade ao negócio, uma vez que não conta com subsídios de mão de obra voluntária como acontece com muitas organizações sem fins lucrativos.
– Mantém processo de tomada de decisão baseado no propósito social, a fim de que questões econômicas não sejam postas em primeiro plano e não se desvirtue o comprometimento da empresa com o seu objetivo social. Por essa mesma razão, a avaliação do negócio é feita pelo estudo do impacto social gerado e não apenas pelos resultados econômicos obtidos.
– 
Permitem a distribuição de lucros, em que pese haver discussão sobre esse tema. Os integrantes do referido Projeto defendem que, retirada a parcela do lucro que deverá ser reinvestida no negócio, a distribuição de lucros para os sócios pode ser parcial ou total, conforme estabelecido nos atos constitutivos da empresa. Assim, aumenta-se o potencial de atrair investidores e o potencial de crescimento dos negócios".

Outros países
No Reino Unido, em 2004, em decorrência do "surgimento" do setor, o Ministério da Indústria e do Comércio estabeleceu norma legal para reger a formalização de empresa de interesse comunitário (Community Interest Company), através da redução de taxas istrativas e concessão de outras benesses fiscais. Não se trata, no entanto, exatamente de regulamentação específica do setor dois e meio. Uma empresa de interesse comunitário é um negócio com objetivos principalmente sociais cujos excedentes são basicamente reinvestidos para esse fim no negócio ou na comunidade, em vez de serem impulsionados pela necessidade de maximizar o lucro para acionistas e proprietários. As empresas de interesse comunitário lidam com uma ampla gama de questões sociais e ambientais e operam em todas as partes da economia. Ao usar métodos de negócios para alcançar o bem público, acredita-se que as empresas de interesse comunitário têm um papel distinto e valioso a desempenhar para ajudar a criar uma economia forte, sustentável e socialmente inclusiva.

No Canadá, por sua vez, há regulamentação para Empresa de Contribuição Comunitária (CCC ou C3). Esta é um tipo de estrutura societária criada em 2012 na província da Colúmbia Britânica. Trata-se de um intermediário entre um modelo comercial, com fins lucrativos, e a organização de caridade, sem fins lucrativos. Esse novo tipo de modelo de negócios híbrido responde a uma demanda emergente por opções de investimento com foco social. O status C3 sinaliza que uma empresa tem a obrigação legal de realizar negócios para fins sociais e não apenas para ganho privado.

Os Estados Unidos da América, em nível federal, regulamentaram as empresas de responsabilidade limitada de baixo lucro (low-profit limited liability company ou L3C). As L3Cs são formadas pela constituição de uma sociedade empresária no órgão competente dentro de um estado que possui disposições legais de L3C [3]. Uma L3C é verdadeiro tipo jurídico de sociedade empresária nos Estados Unidos. Comumente referida como uma estrutura híbrida, possui características de entidades com e sem fins lucrativos. Fundamentalmente, a L3C tem missão social como objetivo principal e um objetivo secundário de geração de lucro.

Conclusão
As experiências em outros países têm se mostrado benéficas, trazendo resultados de impacto efetivo social nos países onde o setor dois e meio foi regulamentado.

O Brasil já possui embasamento principiológico para a regulamentação de negócios do setor dois e meio, faltando apenas que o Poder Legislativo estabeleça o regramento prático para a constituição de tal modalidade de negócio. As legislações referentes às Organizações Sociais e às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público são balizadores funcionais de estruturas que já funcionam no Brasil, podendo ser adaptadas para abarcar o setor dois e meio.

Parafraseando Di Pietro, quando define as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, seria possível defender a regulamentação do setor dois e meio como: "(…) sociedade empresária de direito privado, tendo por finalidade principal o impacto social e a função social da empresa, e por finalidade secundária a geração de lucro, instituídas por iniciativa de particulares, para desempenhar atividade empresária não exclusivas do Estado com incentivo e fiscalização pelo Poder Público".

A existência hoje de mais de cinco mil negócios cadastrados, somente na plataforma Pipe.Social, em diferentes linhas de atuação como cidadania, cidades, educação, saúde, serviços financeiros e tecnologias verdes, mostra a necessidade urgente de regulamentação do setor dois e meio, a fim de que a sociedade possa auferir dos benefícios gerados pelas atividades de impacto social.

[1] SALAMON, Lester e ANHEIER, Helmut. Definindo o setor sem fins lucrativos: uma visão transnacional análise. Manchester: Manchester University Press, 1997.

[2] MÉO, Letícia Caroline. EMPRESAS SOCIAIS, FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E RESPONSABILIDADE EMPRESARIAL SOCIAL. Revista de Direito Privado | vol. 59/2014 | p. 193 – 230 | Jul – Set / 2014 | DTR20149650.

[3] Sociedades empresárias que operem em um estado sem disposição legal L3C, é apenas possível se formar uma L3C por meio de: 1) constituição em um estado com uma disposição estatutária L3C; 2) registrando-se como uma sociedade empresária constituída em outro estado fazendo negócios fora do seu estado de origem; e 3) nomeação de um agente registrado para atuar fora do estado de origem.

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