Opinião

Atos de improbidade da Lei 9.504/1997 não foram revogados pela 'nova' LIA

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8 de fevereiro de 2022, 20h28

1) A nova sistemática da improbidade istrativa
A Lei 14.230/2021 promoveu uma autêntica reforma no sistema de combate aos atos que atentam contra o patrimônio e a moralidade da istração Pública.

Entre as diversas alterações promovidas na Lei 8.429/1992, destacam-se a abolição das figuras culposas e, em homenagem à segurança jurídica, a exigência de taxatividade dos atos ímprobos.

Destarte, tal como ocorre na seara criminal, faz-se necessária a existência de uma figura típica específica que descreva um comportamento ímprobo para que sejam aplicadas as sanções preceituadas no referido diploma legal.

Logo, para que sejam cominadas a um agente público as represálias prescritas no artigo 12, é imprescindível que a sua ação se amolde a um dos incisos previstos exaustivamente nos artigos 9, 10 e 11, não bastando a mera indicação do caput.

2) Manutenção dos atos de improbidade previstos na Lei 9.504/1997
Não é novidade que, embora a maior parte dos atos de improbidade istrativa constem da Lei 8.429/92, inexiste óbice para a sua previsão em legislação esparsa, desde que respeitados os vetores da taxatividade e do elemento subjetivo doloso.

Nessa esteira, o artigo 73 da Lei 9.504/1997 proscreve ao a prática de diversas condutas que afetam a igualdade de oportunidades no plano eleitoral (exemplo: "Inciso 1 — ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à istração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos territórios e dos municípios, ressalvada a realização de convenção partidária").

Por conseguinte, o §7º do dispositivo retromencionado salienta que as condutas enumeradas no caput caracterizam atos de improbidade istrativa a que se refere o artigo 11, inciso I, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, e sujeitam-se às disposições daquele diploma legal, em especial às cominações do artigo 12, inciso III.

Como afirmado anteriormente, trata-se da previsão esparsa de figuras atentatórias da probidade istrativa, a qual é insuscetível de qualquer censura referente à constitucionalidade ou convencionalidade, em que pese não se asseverar a melhor técnica legislativa (artigo 7º, da Lei Complementar nº 95/1998: "O primeiro  artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados o  seguintes princípios: (…). IV  o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de  uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa").

Ocorre que a Lei 14.230/21 revogou o inciso I do artigo 11 ("Praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência"). Em tese, os princípios do Direito istrativo Sancionador não poderiam tolerar que a improbidade decorresse meramente da imputação ao caput, pelas razões anteriormente explicitadas.

Assim, em um primeiro momento, poderia ser invocada a abolitio ilicti pela superveniência do diploma legislativo revogador. Contudo, guardadas as devidas vênias, esse não parece ser o entendimento mais escorreito. Vejamos:

A abolição da figura antijurídica exige sua integral supressão material do ordenamento jurídico, não bastando a mera revogação formal. Em outras palavras, para que seja operada a extinção do tipo ímprobo ou incriminador, é essencial que a matéria revogada não seja regulamentada em nenhuma outra norma vigente. E, como se verá adiante, não é o que ocorre com o ato de improbidade eleitoral mencionado alhures.

A título de exemplo, se a lei X ab-rogar a vigência dos artigos 28 e 33 da Lei 11.343/2006 (porte de drogas para consumo pessoal e tráfico de drogas, respectivamente), entender-se-á que houve uma legítima abolitio criminis, pois o caráter proibitivo dessas condutas não se encontra positivado em nenhuma outra norma incriminadora. Seria imperativo o reconhecimento da causa de extinção da punibilidade do artigo 107, inciso III, do Código Penal.

Em outra dimensão, se o legislador decidir suprimir o artigo 312 do Código Penal (Peculato), o qual pune o agente público que desviar ou se apropriar de coisa alheia móvel no exercício funcional, não haverá que se falar em abolição do caráter criminoso dessa conduta, posto que este subsistirá em outros dispositivos do ordenamento jurídico, notadamente nos tipos dos artigos 155 e 168 (furto e apropriação indébita).

É o que a doutrina intitula de princípio da continuidade típico-normativa, pelo qual opera-se manutenção do caráter proibido de determinada ação, mesmo após a revogação de um dispositivo que a regulamentava, em razão do deslocamento do conteúdo ilícito para ou­tro tipo penal. Nesse caso, a conduta permanece criminosa.

No caso da norma eleitoral (artigo 37, §7º, da Lei 9.504/97), as figuras típicas, aqui entendidas como a descrição abstrata de condutas proscritas em lei, estão plenamente dispostas nos incisos subsequentes ao caput. Veja-se:

"Artigo 73  São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:
I  ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à istração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos territórios e dos municípios, ressalvada a realização de convenção partidária;
II  usar materiais ou serviços, custeados pelos governos ou casas legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram;
III  ceder servidor público ou empregado da istração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado;
(…)".

Por outro lado, subsistem as aludidas cominações do artigo 12, inciso III, da LIA. Logo, resta evidenciado que a matéria outrora regulamentada pelo extinto inciso I não foi completamente suprimida da ordem jurídica pátria, razão pela qual a imputação se dará nos moldes da legislação extravagante.

Por respeitar a taxatividade e preceituar sanções civis válidas, é fato que a norma eleitoral tem força jurígena suficiente para tipificar as condutas violadoras da probidade pública.

Consequentemente, não resta outra opção senão reconhecer o fenômeno da continuidade normativa dos atos ímprobos eleitorais.

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