Opinião

A uberização do trabalho por aplicativo

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28 de fevereiro de 2022, 11h12

Em tempos de reestruturação produtiva e transformações na ordem social, pelos efeitos da "indústria 4.0" no mundo do trabalho, o termo "uberização do trabalho" tem se popularizado no vocabulário brasileiro. Afinal, o labor desenvolvido no âmbito dos aplicativos se tornou uma realidade tão presente que já são mais de três milhões de pessoas trabalhando com transporte de ageiros ou produtos e que estão vinculadas às plataformas digitais no Brasil [1]. Contudo, esse novo quadro econômico encobre não só a figura de quem emprega, como também a relação de assalariamento um verdadeiro entrave para o reconhecimento do vínculo de emprego e, portanto, para a obtenção de direitos sociais.

Não por acaso, os últimos anos vêm sendo marcados por movimentos coletivos da categoria. Nas manifestações, conhecidas como #BequeDosApps, os trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos reivindicam condições mais dignas de trabalho, além de transparência das empresas quanto aos critérios de avaliação, suspensão e desligamento. Ainda, denunciam os excessos de jornada, a baixa remuneração, os riscos de acidentes e a falta de fornecimento de equipamentos de proteção, especialmente durante a pandemia do coronavírus.

O debate acerca do tema ganha ainda mais relevância quando se trata da análise da existência do vínculo empregatício, que, para a dogmática jurídica, depende da reunião destes cinco elementos: prestação dos serviços por pessoa física, pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e, por fim, a subordinação. Com ênfase nesta última, por ser a característica determinante para diferenciar o trabalho autônomo do celetista, visto que revela a assimetria entre as partes, a análise deve perar os princípios da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e da primazia da realidade.

Nesse sentido, se é verdade que a subordinação não recai sobre a pessoa que trabalha, mas, sim, sobre a sua atividade laborativa, então quem emprega não controla e dirige a pessoa do trabalhador ou da trabalhadora, mas, sim, a execução de seu trabalho [2]. No chão das fábricas, a subordinação era vislumbrada a partir de uma figura patronal forte, constantemente transmitindo ordens diretas e aplicando punições. Como isso acontece no trabalho por aplicativo? As empresas proprietárias dos aplicativos controlam e dirigem os serviços por meio de comandos pré-ordenados nos softwares. Em outras palavras, são "fábricas inteligentes" [3] dentro desses aparelhos que carregamos como se fosse uma extensão do próprio corpo.

Com seu smartphone, imagine, você solicita uma viagem por meio do aplicativo da Uber. Ao embarcar no carro, repare que o condutor ou a condutora segue e atende a uma série de comandos no aplicativo, como conferir se foi mesmo o ageiro que solicitou, dar início à corrida, seguir o GPS determinado pela plataforma, encerrar a corrida, etc. A cada clique que envolve confirmar, iniciar, finalizar etc., quem está prestando esse serviço nada mais está fazendo do que recebendo ordens da Uber a partir dessas instruções pré-estabelecidas pela empresa a partir de seu algoritmo.

A gestora do aplicativo controla e dirige não o motorista ou a motorista, mas, sim, a execução de sua atividade e, nesse sentido, concretiza o preceito de empregador, precisamente definido no artigo 2º da CLT como quem "ite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço". De outro lado, também se concretiza o conceito de empregado, previsto no artigo 3º da CLT, afinal, a prestação dos serviços está inserida no núcleo produtivo das gestoras dos aplicativos e ocorre de forma pessoal, não eventual, mediante pagamento e sujeita ao controle e direção das plataformas ao contrário do propagandeado discurso de empreendedorismo, autonomia, liberdade e flexibilidade.

Do ponto de vista legislativo, embora a CLT, em pleno vigor, seja suficiente para regular essa relação, ainda há divergência quanto à natureza jurídica da exploração do trabalho por meio de aplicativo. Nesse eixo político, está em discussão o Projeto de Lei nº 3.748/2020, proposto pela deputada federal Tabata Amaral, que descreve, logo em seu artigo 2º, as plataformas como meras intermediadoras da oferta e demanda entre quem trabalha e quem consome. Em outras palavras, afasta a condição de assalariamento e enquadra a categoria em uma modalidade diferenciada de trabalho à margem da CLT [4].

"Debaixo do sol e acima do Direito do Trabalho brasileiro" [5], foi aprovada a Lei 14.297/2022, que dispõe sobre medidas de proteção para quem trabalhar por aplicativo durante o período pandêmico. Nefasta, embora estabeleça algumas garantias sanitárias emergenciais em caráter provisório , a lei estabelece, em seu artigo 10º, que "os benefícios e as conceituações previstos nesta Lei não servirão de base para caracterização da natureza jurídica da relação entre os entregadores e as empresas de aplicativo de entrega". É, a mão que afaga é a mesma que apedreja, já diria Augusto dos Anjos.

Convém lembrar que, no final do ano ado, a fim de garantir direitos sociais trabalhistas, securitários e previdenciários, o Ministério Público ajuizou uma ação civil pública (Processo nº 1001379-33.2021.5.02.0004) contra a Uber do Brasil, na qual pretende o reconhecimento do vínculo de emprego e a anotação da CTPS de quem trabalha para a plataforma, sob pena de multa de R$ 10 mil por cada pessoa irregular. Por fim, pleiteia a condenação da empresa ao pagamento de danos morais em razão da violação de direitos difusos e coletivos.

O entendimento predominante, no Tribunal Superior do Trabalho, é no sentido da inexistência de vínculo empregatício. No entanto, em decisão recente, a 3ª Turma do TST reconheceu, por maioria de votos, a existência de vínculo de emprego entre algumas plataformas e quem prestava seus serviços [6]. Para o ministro relator Maurício Godinho Delgado, vale enfatizar, quem trabalha por aplicativo "só consegue realizar esse serviço porque existe uma entidade empresarial gestora extremamente sofisticada, avançada, de caráter mundial, a qual consegue realizar um controle minucioso da prestação de serviço".

Para a corrente jurisprudência dos tribunais regionais, não existe vínculo de emprego entre as empresas proprietárias de aplicativos e quem desempenha suas atividades. Entretanto, algumas cortes já começaram a decidir em sentido contrário. No TRT-4, por exemplo, a 8ª Turma entendeu, no caso apreciado, que havia subordinação na relação entre o trabalhador e a Uber, motivo pelo qual foi reconhecido o vínculo de emprego [7]. O mesmo foi decidido pela 14ª Turma do TRT-2 em um caso contra a Rappi [8]. Cabe mencionar que o juízo da 36ª Vara do Trabalho de Salvador reconheceu que o reclamante, no Processo 0000145-21.2019.5.05.0036, era empregado da plataforma Glovo.

Assim, nesse processo político, a doutrina e a jurisprudência discutem a natureza dessa relação, mas é importante também questionar o papel das empresas que operam as plataformas e sobre os efeitos da exploração degradante da força de trabalho de milhões de brasileiros e brasileiras, sem respeitar a legislação trabalhista e os princípios da nossa ordem jurídica. Afinal, a "uberização do trabalho" representa a precarização das condições de vida das pessoas que dependem dessa atividade para sobreviver.

 


[1] NATUSCH, Igor. Brasil tem 3 milhões de trabalhadores e trabalhadoras vinculados a aplicativos. Entrevista especial com Lucia Garcia. DMTemDebate. 16 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.dmtemdebate.com.br/brasil-tem-3-milhoes-de-trabalhadores-e-trabalhadoras-vinculados-a-aplicativos-entrevista-especial-com-lucia-garcia/o em: Maio de 2021.

[2] VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego estrutura legal e supostos. Ed. LTr, 3ª ed. São Paulo, 2005, p. 525.

[3] AMORIM, J. Eduardo. A indústria 4.0’ e a sustentabilidade do modelo de financiamento do Regime Geral da Segurança Social. Cadernos de Dereito Actual, Universidade do Porto, Portugal, n. 5, vol. extraordinário, p. 243-254, 2017, p. 248.

[4] ANTUNES, Ricardo. Tecnologia + Capitalismo = Escravidão. Instituto Humanistas Unissinos, 13 nov. 2020. Entrevista concedida à Patricia Fachin. Disponível em https://outraspalavras.net/outrasmidias/tecnologia-capitalismo-escravidao-diz-antunes/.

[5] KROST, Oscar. Lei n. 14.297/22 e o direito ao "desvínculo" de emprego. Direito do trabalho crítico. 11 jan 2022. Disponível em https://direitodotrabalhocritico.com/2022/01/10/lei-no-14-297-22-e-o-direito-ao-desvinculo-de-emprego/.

[6] Processo n. 100353-02.2017.5.01.0066, 3ª Turma, TST, Relator Ministro Relator Maurício Godinho Delgado.

[7] Processo n. 0020750-38.2020.5.04.0405, 8ª Turma, TRT4R, Desembargador Relator Marclo José Fersin D’Ambroso

[8] Processo n. 1000963-33.2019.5.02.0005, 14ª Turma, TRT2R, Desembargador Relator Fernando Alvaro Pinheiro, em 5/3/2020.

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