Opinião

Duplo twist: calote nos precatórios, PEC Kamikaze e orçamento secreto

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15 de julho de 2022, 12h04

O Congresso alterou a Constituição para autorizar o governo federal a dar um calote em seus credores, mais precisamente, em seus credores judiciais, aqueles que, por terem sido lesados pelo Estado, conseguiram, após longa e onerosa disputa, entrar na fila do precatório para receber o quanto o Judiciário lhes assegurou.

O calote, este ano estimado em R$ 40 bilhões, nos custará mais de meio trilhão de reais em apenas cinco anos, segundo a IFI (nstituição Fiscal Independente) do Senado, se não for revertido pelo STF em tempo hábil. Além disso, foi lastreado em notória fake news: a de que a União não dispunha de recursos para fazer frente à despesa ordinária e a assumir outras, extraordinárias, como o Auxílio Brasil.

O tempo, sábio senhor, cuidou de revelar a verdade: a União honrou com seus gastos ordinários e ainda comprometeu mais de R$ 300 bilhões em programas assistenciais e renúncias fiscais. Penúria não há e não havia, tanto que o caixa do Tesouro está e sempre esteve positivo em mais de R$ 1,5 trilhão.

Tal como se deu com a emenda do calote, nesta semana, a Câmara, renovando leitura criativa da Constituição, como se detivesse competência para tanto, deu um duplo twist carpado e permitiu que senadores licenciados ou em missão — ou seja, dedicados a outras funções públicas que, por sua importância para o Estado resultaram no seu afastamento — votassem para aprovar a Emenda da Eleição, também chamada de Kamikaze, tamanho o dano às contas públicas.

Mais uma vez, a fake news que levou ao calote nos precatórios foi desnudada, com o deputado Artur Lira, afirmando "não violamos nada, não violamos o teto de gastos… há reservas extraordinárias para pagar essas despesas".

Em ano eleitoral, o Legislativo, conivente com o Executivo, encontra espaço tanto legal, quanto financeiro e orçamentário para tudo, menos para obedecer a Justiça e pagar os precatórios devidos.

E, ainda, na mesma noite, o Congresso aprovou, em menos de 20 minutos, dois projetos que blindam o orçamento secreto. Contrariando a ideia básica de um Estado de Direito, segundo a qual a verba pública é do povo, e não do gestor, restou permitido ao governo distribuir de cesta básica a trator, e, em plena campanha, realocar verba destinada a um município para outro, observando a conveniência de plantão e desafiando, mais vez, decisão do STF (ADPF 854).

Segundo registra reportagem de Daniel Weterman para o jornal O Estado de S. Paulo, umas das medidas foi votada "sem que as alterações fossem nem sequer lidas em plenário".

Elegemos essas pessoas. Conferimos a elas mandato por tempo certo para defender nossos interesses. Somos traídos quando o dinheiro que entregamos ao Estado é destinado não a seus credores, mas à concretização de uma velha e danosa forma de fazer política: a troca de favores pelo apoio que deixa de ser eleitoral para ser eleitoreiro.

O Legislativo, que deveria conter o Executivo, tornou-se cúmplice na desobediência ao Judiciário, ao TCU, à lei eleitoral, à Constituição, à moralidade e ao mandato que lhe conferimos.

A sociedade tem o caminho institucional de defesa: o Judiciário. O STF já foi acionado: partidos políticos, OAB, Associação dos Magistrados e outros diversos autores buscam manter hígida as garantias e os direitos fundamentais consagrados pelo texto constitucional em sua parte imutável, da qual governantes não podem dispor como se coisa sua fosse.

A Justiça Constitucional é condição de existência para uma república democrática. Seu exercício, no Brasil, compete ao STF, que muito tem sido demandado e sempre correspondido, assegurando a sujeição de todos — seja o cidadão, sejam os demais poderes — aos limites constitucionais.

De há muito aprendemos que "em todo o poder se encerra um dever: o dever de não se exercitar o poder, senão dadas as condições, que legitimem o seu uso, mas não deixar de o exercer, dadas as condições que o exijam" (Rui Barbosa).

Confiamos na última trincheira da cidadania, na restauração da ordem pelo STF a didaticamente assegurar a todos nós que as garantias constitucionais não são utopia.

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