A repetição de indébito tributário e a incorporação da pessoa jurídica
17 de julho de 2022, 8h02
Os textos desta coluna comungam da premissa de que a legislação processual deve ser interpretada à luz da relação jurídica de direito material conflituosa subjacente [1]. Assim, se o conflito objeto da relação processual é verificado na relação jurídico-tributária, a legislação processual (Código de Processo Civil) deve ser tomada considerando o efeito material, portanto, consoante as disposições do Código Tributário Nacional (CTN).
Embora pareça simples, trata-se de premissa de aplicação desafiadora, notadamente diante da dinamicidade das atividades econômicas e as especificidades da processualidade judicial tributária, decorrente que é das particularidades inerentes às normas tributárias.
Nesse contexto, o presente artigo toma como pano de fundo as operações de incorporação de pessoa jurídica e sua repercussão no direito creditório objeto de ação de repetição de indébito tributário ajuizada pela empresa incorporada.
A despeito de garantir o direito à recuperação do indébito tributário, o CTN é silente quanto ao impacto de uma incorporação sobre o indébito da pessoa jurídica incorporada. Sobre tal fenômeno, o CTN se limita a estabelecer que a incorporação resulta na responsabilização da pessoa jurídica incorporadora pelos tributos devidos pela incorporada até a data da incorporação (artigo 132 [2]). Trata da relação de débito do contribuinte e nada dispõe acerca da relação de crédito perante o fisco.
A leitura apressada e isolada do CTN levaria à conclusão de que, sob a perspectiva tributária, a incorporação resultaria, apenas, na sucessão de débitos da pessoa jurídica incorporada pela incorporadora, nada provocando na sucessão de direitos, dentre os quais se inclui o indébito tributário.
A resolução do problema convoca, por autorização do artigo 109 [3] do CTN, o conceito de direito privado de incorporação, que o define como a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede não só em todas as obrigações, mas também em todos os direitos, nos termos do artigo 227 da Lei 6.404/1976 [4].
Enquadrando-se o indébito tributário no conceito de "direitos da pessoa jurídica incorporada" é possível afirmar que compõe ele (o indébito) o acervo de direitos sucedidos pela incorporadora.
A questão que surge, objeto desse artigo, está atrelada como e se o status desse direito no patrimônio da pessoa jurídica incorporada interfere em sua realização material pela empresa incorporadora, já que pode estar (1) pendente de definição, porque em discussão nos autos de ação de repetição (status de pendência), ou (2) fixado, porque já se encontra constituído por decisão judicial transitada em julgado (status de definitividade).
Em ambos os cenários, a incorporação redefine a legitimidade processual da demanda em andamento, inclusive, daquela sujeita ao cumprimento de sentença. E tal afirmação está fincada naquela premissa adrede referida, a de que o processo é instrumento da relação material que lhe subjaz; assim alterado o credor do indébito tributário (relação material), necessariamente a relação processual será afetada.
Nesse tocante, o da instrumentalidade do processo, vale destacar as lições atemporais do mestre José Souto Maior Borges, quando afirma que o processo está "a serviço do direito material", por tratar-se de "técnica de concretização do 'direito objetivo'" [5].
A incorporação, ao reformatar a relação de crédito perante o fisco, produz efeitos diretos sobre a relação processual. Esta reconstituição decorre do fato de a incorporação classificar-se como um evento de sucessão no CTN, do que necessariamente advém a atribuição desse mesmo predicado sob a perspectiva da legislação processual.
Está se afirmando que a incorporação da pessoa jurídica implica a sucessão processual da incorporadora nos estritos termos do artigo 108 [6] do Código de Processo Civil, porque lei material — artigo 132 do CTN e artigo 227 da lei das sociedades por ações — expressamente reconhecem a reorganização da relação creditória perante o fisco, antes composta pela empresa incorporada, agora pela incorporadora.
Embora não haja dispositivo especificamente aplicável à incorporação, o artigo 110 do Código de Processo Civil estabelece que, ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores. Adequando o conteúdo desse dispositivo ao contexto de que ora cuidamos — em linha, inclusive, com decisões do STF [7] sobre o tema —, em que a incorporação, porque compreende uma sucessão universal, resulta na extinção ("morte") da pessoa jurídica incorporada, a incorporadora assume a qualidade de parte por sucessão, ando a ocupar o polo ativo da ação de repetição de indébito, em qualquer um dos status em que se encontre — de pendência ou de definitividade.
Disso decorre a necessidade de integração da incorporadora à relação processual em curso mediante pedido de habilitação no próprio processo de conhecimento de repetição, se esse estiver ainda em trâmite, ou na fase do cumprimento de sentença [8], caso já tenha havido o trânsito em julgado da decisão reconhecendo o crédito da incorporada.
Na etapa do cumprimento de sentença, a incorporadora poderá iniciar o cumprimento de sentença, dar seguimento às providências necessárias se já instaurado, ou, caso já tenha sido expedido precatório, requerer a retificação do titular do crédito e aguardar o pagamento pela Fazenda Pública.
Tratando-se de tributos federais, situação peculiar pode sobrevir na etapa do cumprimento de sentença. Isto porque, o credor tem a opção de concretizar o "cumprimento de sentença" em ambiente istrativo por meio do "pedido de habilitação de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado" para posteriormente proceder à compensação, sem a expedição de precatório.
Nessa hipótese, a incorporadora terá novamente que avaliar o andamento do processo de conhecimento transitado.
Encontrando-se pronto para disparar o cumprimento de sentença, deverá habilitar-se em juízo e informar que não pretende iniciar o cumprimento de sentença porque promovê-lo-á istrativamente via pedido de habilitação. Se o pedido de habilitação istrativa já tiver sido formalizado, é ali que o credenciamento deve ser promovido, tal como, inclusive, reconhece a Secretaria da Receita Federal do Brasil na Solução de Consulta 321/2017 [9].
[2] Art. 132. A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão, transformação ou incorporação de outra ou em outra é responsável pelos tributos devidos até à data do ato pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, transformadas ou incorporadas.
[3] Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
[4] Art. 227. A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.
[5] In O contraditório no Processo Judicial. 1ª edição. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 79.
[6] Art. 108. No curso do processo, somente é lícita a sucessão voluntária das partes nos casos expressos em lei.
[7] A título de exemplo, confira-se: RE 567.907; AI 626.043; AI 612.906; RE 538.899; AI 639.189.
[8] Importante aqui lembrar que, a partir da vigência do Código de Processo Civil, a etapa de cumprimento de sentença substituiu o processo de execução contra a fazenda pública, uma decorrência da instalação de processos sincréticos, nos quais diversas espécies de tutelas jurisdicionais são veiculadas no âmbito de uma única relação processual. Mais a respeito da sincretização de processos, sugere-se a leitura do seguinte artigo de Luis Cláudio Cantanhêde desta coluna:
/2021-set-05/processo-tributario-peculiar-sincretismo-processual-cobranca-credito-tributario
[9] SOLUÇÃO DE CONSULTA VINCULADA PARCIALMENTE À SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 119, DE 22/5/2014. OPERAÇÃO DE CISÃO PARCIAL COM SUBSTÂNCIA ECONÔMICA. HIPÓTESE LEGAL DE SUCESSÃO DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS RELACIONADOS NOS ATOS DE CISÃO. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO PELA SUCESSORA PARA RESTITUIÇÃO E COMPENSAÇÃO. A cisão parcial, desde que possua fim econômico, é uma hipótese legal de sucessão dos direitos previstos nos atos de formalização societária, entre os quais os créditos decorrentes de indébitos tributários, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, que am a ter natureza de créditos próprios da sucessora, se assim determinarem os atos de cisão sendo, desse modo, válidos para a solicitação de restituição e compensação com débitos desta para com a Fazenda Nacional. Dispositivos Legais: Lei nº 5.172/1966 – Código Tributário Nacional (CTN), arts. 123, 132, 165, 170 e 198; Lei nº 6.404/1976, arts. 223, 229 e 233; Decreto-Lei nº 1.598/1977, art. 5º; Decreto-lei nº 2.287/1986, art. 7º; Lei nº 9.430/1996, arts. 73 e 74; Lei nº 9.964/2000, art. 2º, § 7º; Lei nº 10.833/2003, art. 18, § 4º; Lei nº 10.865/2004, art. 30; Lei nº 11.033/2004, art. 17; IN RFB nº 1.396/2013, arts. 8º, 9º, 12 e 22; IN RFB nº 1.717, de 17 de julho de 2017; e SCI Cosit nº 3/2011.
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