Opinião

Breves considerações sobre a relevância especial na interposição do REsp

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24 de julho de 2022, 6h04

Publicou-se no dia 15 de julho de 2022 a emenda à Constituição (EC) nº 125/2022, que inclui, no feixe de competências do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o requisito da relevância. Doravante, ao interpor recurso especial (REsp), o recorrente deverá demonstrar a "relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei".

O objetivo deste breve texto será, então, interpretar superficialmente o texto publicado e avaliar alguns dos efeitos imediatos da promulgação da emenda. Não há qualquer intenção de esgotar o tema. O intuito aqui é compreender os primeiros aspectos que impactarão a rotina forense e, assim, colaborar, da melhor maneira possível, com a comunidade jurídica.

Nesse sentido, concluir-se-á que a relevância é um aspecto da repercussão geral, com presunção iuris tantum em norma constitucional de eficácia contida ou em lei federal, que exige do recorrente, como ponto das razões recursais, o ônus de demonstrar o relevo jurídico da questão federal infraconstitucional no caso concreto, que poderá ser apreciada pelo STJ independentemente da issão do REsp.

Nomenclatura
O novel §2º do artigo 105 da Constituição Federal dispõe que a interposição do recurso especial requer a demonstração de relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso concreto. Relevância é qualidade relativa, depende sempre de critérios e finalidades que variam em função de distintas atividades e situações. Nesse caso específico, a relevância destina-se exclusivamente à cognoscibilidade do REsp. Por isso, chamaremos esse novo requisito de relevância especial.

Relevância especial é uma faceta da repercussão geral
Evidentemente, o poder constituinte derivado reformador agregou à competência recursal do STJ mecanismo semelhante à repercussão geral exigida na interposição do recurso extraordinário (RE). Semelhante porque, apesar da notória analogia entre esses dois "filtros", a relevância especial não é idêntica à repercussão geral.

Primeiro indício dessa distinção é o nomen iuris: se relevância equivalesse inteiramente à repercussão geral, por que ambas têm rótulos diferentes? Por que o poder constituinte derivado reformador, ao instituir a repercussão geral, restringiu-a ao recurso extraordinário, e, agora, ao conceber a relevância, delimitou-a ao recurso especial, apenas? Porque são mecanismos distintos, mas que se assemelham teleologicamente.

A relevância tem a mesma finalidade burocrática da repercussão geral: delimitar a cognição da issibilidade do recurso pela redução do acervo de processos, para, assim, julgar apenas os recursos que efetivamente tenham aptidão de agregar e atualizar o alcance semântico da jurisprudência do Tribunal e do parâmetro de controle — no STF, a Constituição, no STJ, a legislação federal infraconstitucional. Para tanto, o quórum de rejeição da relevância é idêntico ao da repercussão geral: 2/3.

A relação entre repercussão geral e relevância especial seria, quando muito, meramente contingente. Contudo, se assim fosse, um REsp itido pelo STJ levaria a crer que a interposição simultânea de um RE no mesmo caso automaticamente implicaria a repercussão geral perante o STF. Em verdade, a relevância especial não induz repercussão geral, e vice-versa, porque o objeto da cognição e a competência exercida pelos Tribunais são inteiramente diversas. É possível, então, que, na hipótese de interposição simultânea do RE e do REsp, o RE venha a ser itido pelo STF, e o REsp, initido pelo STJ.

A relevância especial, em verdade, deriva de um atributo da repercussão geral — relevância (geral), que consiste em demonstrar, na interposição do recurso extraordinário, os reflexos sociais, econômicos, políticos e jurídicos da impugnação. O outro atributo do RE é a transcendência, imanente à competência recursal do Tribunal Constitucional, que se inspirou no writ of certiorari da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em que se pressupõe que a relevância da questão constitucional é tamanha, que transbordará os limites subjetivos e objetivos do caso concreto, atingindo todos os destinatários da norma constitucional interpretada naquela casuística.

A relevância especial dispensa a transcendência como requisito de issibilidade recursal, porque basta o controle jurisdicional da (ir)relevância para que o STJ ita a impugnação. Por outro lado, ao compor seus precedentes na sistemática dos recursos repetitivos, o STJ poderá atribuir transcendência à questão de relevo identificada no REsp.

Relevância especial presumida
Em regra, o recorrente deve explicitar a relevância da questão legal federal infraconstitucional discutida na demanda. Porém, há exceções a essa necessária explicitação, que são as hipóteses de presunção (relativa) de relevância especial, expressamente consignadas na Constituição ou em lei federal — afinal, os dispositivos trazidos pela reforma empreendida pela EC nº 125/2022 são normas constitucionais de eficácia contida e item restrições pelo legislador.

Assim, salvo pronunciamento do STJ em sentido diverso, presume-se relevância especial às ações penais; de improbidade; e aquelas aptas a ensejar inelegibilidade; além das causas cujo valor equivalha ou supere 500 salários mínimos e das hipóteses em que o Tribunal a quo contrariar jurisprudência dominante do STJ. Parece-nos que o poder constituinte derivado reformador fixou três critérios de presunção da relevância especial: 1) jurídico-material; 2) econômico-monetário; 3) jurídico-processual.

O critério jurídico-material é demarcado pela propensão da causa a intensa restrição a direito fundamental de primeira geração ou dimensão, dado que ações penais e de improbidade, além de outras demandas capazes de aplicar inelegibilidade, estão ligadas ao exercício da liberdade e dos direitos políticos, enquanto as causas de valor igual ou superior a 500 (quinhentos) salários mínimos tendem a discutir a elevada expressão econômica do direito de propriedade.

O critério econômico-monetário é o mais infeliz. Primeiro, porque viola frontalmente a proibição constitucional de indexação ao salário mínimo (CRFB, artigo 7º, inciso VI, in fine), perpetuando a lamentável associação, constantemente presente na aplicação do princípio de insignificância penal, entre bem jurídico tutelado e expressão monetária do objeto material do delito ou vantagem econômica de interesse das partes. Segundo, porque a presunção de relevância especial a causas com valor superior a R$ 600 mil transparece a (falsa) impressão de que o STJ só se interessaria por julgar processos de vultosos valores, em que as partes não sejam hipossuficientes econômicas.

Esse critério é incoerente com o esforço do poder constituinte derivado reformador de filtrar questões de direito federal infraconstitucional, até porque essa qualificação a ao largo do valor da causa. É bem possível que causas de elevadíssimo valor econômico sejam triviais e enfadonhas, enquanto outras, envolvendo questões muito mais delicadas — verbi gratia, a tutela, coletiva ou individualizada, de direito de idosos com deficiência em relação de consumo — eventualmente não cheguem ao STJ simplesmente por desatenderem a um requisito puramente materialista.

"Abstrativização" da relevância especial?
Embora o poder constituinte derivado reformador tenha se limitado a repetir a estrutura linguística e redacional do artigo 102, §3º, CRFB/88, ao elaborar o texto do artigo 105, §2º, a reforma pode e deve ser contextualizada ao estágio da repercussão geral dominante no Supremo Tribunal Federal, que caminha a os largos — e legitimamente, diga-se — à abstrativização da questão dotada de repercussão geral. Significa dizer que o STF pode reconhecer relevância e transcendência da questão constitucional ventilada no RE para agregar sentido à Constituição e à própria jurisprudência do Tribunal e, ainda assim, initir o RE que a suscitou.

Do ponto de vista hermenêutico, a conjunção final "a fim de que", consignada tanto no artigo 102, §3º quanto no artigo 105, §2º, CRFB/88, ite interpretação extensiva pelo Tribunal, até porque quem a interpreta é o próprio Tribunal que exercerá a competência recursal (kompetenz-kompetenz). Desse modo, a locução "a fim de que" não se limita ao nível primário da literalidade, que restringiria a finalidade da repercussão geral à issão do recurso. Ao contrário, essa expressão pode ser interpretada, inclusive, no sentido de que a repercussão geral, ou a relevância especial, tenha sido demonstrada a fim de que o Tribunal supere precedente (overrruling), mesmo que o recurso seja initido.

No que concerne ao STJ, isso também é possível porque a competência da Corte prima pela unidade, coerência e integridade do direito federal infraconstitucional, e essa função prepondera sobre a competência recursal. Em outras palavras, o STJ preocupa-se com o sentido hermenêutico do direito infraconstitucional, pois não oficia como corte de apelação, reexaminando fatos e provas. Assim, as questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso podem ser pinçadas pelo STJ para atribuir sentido à legislação e à sua jurisprudência, ainda que o REsp no qual tenham sido suscitadas essas questões seja initido.

Relevância é exigível nos REsp's interpostos no tribunal de origem até as 23h59 do dia 14.jul.2022
O artigo 2º da EC nº 125/2022 estabelece que a relevância especial será exigida nos REsp’s interpostos após a entrada em vigor da reforma. O artigo 3º da emenda, por sua vez, assinala que vigência inicia na data de publicação.

Por isso, o requisito recursal em apreço deve ser apresentado por aquele que interp recurso especial a partir do dia 15.07.2022. Igualmente, o Tribunal de origem e o STJ, ainda que pelo quórum de 2/3, não poderão rejeitar issibilidade do REsp com base na ausência de relevância quando a interposição do recurso especial for anterior a 15.07.2022.

Se o recurso for initido na origem por outro fundamento, o recorrente poderá demonstrar a relevância especial na interposição do agravo em recurso especial ou do agravo interno de que trata o artigo 1.030, §2º, do C. Também nessa hipótese, o Tribunal de origem e o STJ não poderão rejeitar o agravo que visa à issibilidade do REsp interposto até 14.07.2022 com base na ausência de relevância especial.

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