Seguro garantia e grandes riscos: reflexões a respeito da circular Susep nº 662
3 de junho de 2022, 17h03
No último dia 11 de abril, a Susep editou a circular nº 662, regulamentando o seguro garantia. Pretende-se, neste artigo, tecer algumas considerações em torno da aplicabilidade mitigada da nova regulamentação aos chamados seguros de grandes riscos, nos quais é facultativa a observância de parcela significativa das regras da circular, nos termos de seu artigo 34, parágrafo único.
Os seguros de grandes riscos, como se sabe, haviam sido regulamentados no último ano, por meio da Resolução CNSP nº 407 de 29/3/21. Em suma, pode-se dizer que o eixo central de tal norma consiste em reconhecer ampla autonomia às partes na definição dos termos das apólices de grandes riscos, em consonância com a chamada Lei da Liberdade Econômica, que buscou limitar interferências externas (regulatórias, por exemplo) nos contratos denominados paritários ou simétricos.
A classificação dos seguros de grandes riscos como contratos efetivamente paritários, por si só, já é questionável. Mesmo nos grandes riscos, parece haver algum grau de assimetria entre as partes — ainda que menor do que nos seguros massificados —, devido à necessidade de padronização dos clausulados, inerente à operação de seguros.[1]
Por conta dessa dinâmica, Judith Martins-Costa chega a afirmar que o segurado "adere às condições pré-formuladas, inclusive àquelas respeitantes a definição dos riscos garantidos e ao recorte de certas exclusões, incidindo, em consequência, as regras postas nos artigos 423 e 424 do Código Civil, ainda quando o contrato não se qualifique como ‘seguro de massa (…)"[2]. Recentemente, na doutrina, Bruno Miragem e Luiza Petersen examinaram a controvérsia relativa à natureza dos seguros de grandes riscos, enfrentando o disposto na Resolução CNSP nº 407/21 e ponderando o seguinte:
Em evidência a questão se, diante da disciplina regulatória dos seguros de grandes riscos, com relação a estes se afasta a característica como contratos de adesão que é própria do seguro. A rigor, a definição legal, isoladamente, não é suficiente para a dispensa da qualificação. A par do regime especial instituído para o seguro de grandes riscos, são o contexto fático e as circunstâncias da contratação que deverão dar causa a sua qualificação como de adesão ou não.
A enunciação da norma regulatória permite a negociação, especialmente ao dispensar o registro. Todavia, se as condições gerais serão ou não predispostas pelo segurador, assim como o nível de negociação itido à formatação do conteúdo contratual por parte do tomador do seguro, é o que determina o efetivo exercício da liberdade contratual. Isso se põe tanto com relação à qualificação do contrato como de adesão quanto à existência de paridade entre os contratantes, de acordo com o disposto no artigo 421-A do CC. Trata-se de realidade de fato, a ser objeto de apreensão e qualificação pelo intérprete, com as repercussões jurídicas pertinentes.[3]
Com efeito, mesmo nas apólices tailor-made, pode não haver efetivo poder de barganha do segurado na negociação do conteúdo do contrato, em vista da baixíssima receptividade dos resseguradores (que garantem os riscos das atividades das seguradoras) em alterar seus clausulados padronizados de resseguro, mundialmente disseminados, cujas previsões muitas vezes se repetem nas apólices ofertadas aos segurados. E, em assim sendo, essa premissa deverá nortear a sua interpretação.
Sensível à assimetria inerente às relações securitárias, mesmo quando o segurado seja empresa de grande porte, a jurisprudência tem empregado instrumentos protetivos previstos em lei para interpretar clausulados. A título de exemplo, em determinado caso julgado pelo STJ, uma empresa atuante no setor de comércio e distribuição de solventes e químicos sofreu sinistro após um de seus veículos ter sido incendiado. A cobertura securitária fora negada pela seguradora com fundamento em cláusula de exclusão para danos ocorridos durante operações de carga e descarga, constante das condições gerais da apólice, disponíveis apenas no site da seguradora. Não obstante, após invocar as normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor, a corte assegurou o direito à cobertura, entendendo o seguinte:
(…) por ser a autora empresa dedicada ao ramo de comércio e distribuição de solventes, de produtos químicos e outros, o risco da ocorrência de sinistro na modalidade incêndio encontra-se diretamente vinculado às operações de carga e descarga, razão pela qual a existência de cláusula contratual excluindo a cobertura para esse tipo de situação, para ser válida entre as partes, necessitaria do conhecimento prévio da segurada no momento da contratação, o que não foi observado na espécie.[4]
Esse singelo exemplo ilustra como é problemático atribuir aos seguros de grandes riscos, em absoluto, o regime dos contratos paritários, sem levar em conta eventual vulnerabilidade que possa haver no caso concreto, como ocorre em regra.
A questão é ainda mais delicada no âmbito do seguro garantia — cuja possibilidade de classificação como seguro de grandes riscos foi expressamente prevista nos parágrafos 2º e 3º do artigo 2º da Resolução CNSP nº 407 —, em que o segurado, beneficiário da garantia, não participa da formação do negócio jurídico (não tendo, portanto, a oportunidade de discutir os seus termos com a seguradora).
Atento à dinâmica dessa relação jurídica triangular, o STJ já reconheceu, em precedente paradigmático sobre o seguro garantia, que, "tendo em vista a singularidade dessa modalidade de seguro, que muito se aproxima da fiança, o tomador contrata seguro, pelo qual a seguradora garante o interesse do segurado, relativo à obrigação assumida pelo tomador"[5].
Ao longo da circular nº 662, a Susep trouxe diversas normas que refletem entendimentos já consagrados na jurisprudência ao interpretar dispositivos de lei, consoante se a a demonstrar a seguir.
Em relação à vigência da garantia, a circular estabelece que "o prazo de vigência da apólice deverá ser igual ao prazo de vigência da obrigação garantida (…)" (artigo 7º, caput) e que, "caso a vigência da apólice seja inferior à vigência da obrigação garantida, nos termos do artigo 7º, a seguradora deve assegurar a manutenção da cobertura enquanto houver risco a ser coberto" (artigo 8º, caput).
Corroborando o racional por trás da regulamentação, a doutrina já vinha sustentando, há muito, que o seguro garantia é um "contrato irrevogável e que acompanha o contrato que ele garante até o final da sua execução"[6]. No mesmo sentido, o STJ possui precedente paradigmático reconhecendo a relação de oriedade entre o seguro garantia e o contrato principal (garantido).[7] Esse mesmo entendimento foi recentemente adotado também por acórdão do TJ-RJ.[8]
Também por conta da relação jurídica triangular existente no seguro garantia, a circular estabelece que "o tomador é responsável pelo pagamento do prêmio de seguro" (artigo 16, caput) e que "a apólice continuará em vigor mesmo quando o tomador não houver pago o prêmio nas datas convencionadas" (artigo 16, § 1º). A esse respeito, o STJ já reconheceu que "o 'seguro garantia', ao contrário da generalidade dos seguros, não está adstrito ao mutualismo e à atuária (…), não podendo, por isso, ser arguida pela seguradora a ausência de pagamento do prêmio"[9].
No âmbito do seguro garantia, discute-se, ademais, se a celebração de aditivos ao contrato garantido sem a aquiescência da seguradora implicaria em agravamento de risco, para os fins legais. Como se sabe, o artigo 768 do Código Civil estabelece que "o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato". Sobre esse ponto, a circular nº 662 dispõe o seguinte:
Art. 11. (…) § 2º Na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da alteração do objeto principal à seguradora, sua não comunicação, ou sua comunicação em desacordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, somente poderá gerar perda de direito ao segurado caso agrave o risco e, concomitantemente:
a) tenha relação com o sinistro; ou
b) esteja comprovado, pela seguradora, que o segurado silenciou de má-fé.
Nessa linha, afirma-se, no direito dos seguros, que nem toda alteração do risco é apta a ensejar a perda da garantia e a exoneração da seguradora. Para que isso ocorra, é preciso que a alteração tenha influência significativa no risco segurado, aumentando substancialmente a probabilidade de sinistro.[10]
No mesmo sentido, a jurisprudência do STJ tem entendido que "a exoneração do dever da seguradora de pagamento da indenização do seguro, somente ocorrerá se a conduta direta do segurado configurar efetivo agravamento (culposo ou doloso) do risco objeto da cobertura contratada, consubstanciando causa determinante para a ocorrência do sinistro"[11]. No âmbito do seguro garantia, deve-se aferir casuisticamente se a alteração do contrato objeto da garantia implicou em agravamento significativo do risco segurado.[12]
Outra discussão recorrente no direito securitário, abrangendo o seguro garantia, diz respeito aos efeitos do aviso tardio do sinistro (ou de sua expectativa) à seguradora, já que, nos termos do 771, caput, do Código Civil, "sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba (…)".
A esse respeito, a circular, em seu artigo 17, § 2º, dispõe que, "na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da expectativa de sinistro à seguradora, sua não comunicação, ou sua não comunicação de acordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, somente poderá gerar perda de direito ao segurado caso configure agravamento do risco e impeça a seguradora de adotar as medidas dos incisos II e III do artigo 29".
Ao assim dispor, a Susep parece endossar o entendimento dominante no direito dos seguros, no sentido de que a sanção estabelecida pela lei, consistente na perda da garantia, não é automática, dependendo da existência de má-fé ou culpa grave do segurado e de efetivo prejuízo à seguradora (levando, por exemplo, ao aumento dos prejuízos indenizáveis ou impedindo-a de tomar providências de contenção).
Nessa linha, a jurisprudência do STJ tem entendido que "a sanção de perda da indenização securitária não incide de forma automática na hipótese de inexistir pronta notificação do sinistro, visto que deve ser imputada ao segurado uma omissão dolosa, injustificada, que beire a má-fé, ou culpa grave, que prejudique, de forma desproporcional, a atuação da seguradora, que não poderá se beneficiar, concretamente, da redução dos prejuízos indenizáveis com possíveis medidas de salvamento, de preservação e de minimização das consequências"[13].
De acordo com outro precedente da Corte, "a obrigação de informar a seguradora do sinistro 'logo que o saiba' desaparece desde que se torne supérfluo qualquer aviso, pela notoriedade do fato ou quando, pela espécie de seguro, não tenha a seguradora interesse algum em ser avisada imediatamente da ocorrência"[14].
Dessa forma, as regras da circular nº 662 examinadas contribuem sobremaneira para a preservação da função do produto, consistente na garantia dos prejuízos econômicos sofridos pelo segurado por conta do inadimplemento contratual do tomador. Apesar disso, a possibilidade de não aplicação da nova regulamentação aos seguros de grandes riscos (art. 34, parágrafo único, da circular nº 662) pode gerar indesejável insegurança jurídica, na medida em que, como visto, muitos pontos trazidos pela Susep´já vão ao encontro do entendimento jurisprudencial consagrado no direito dos seguros, imprescindível ao funcionamento satisfatório do seguro garantia.
A toda evidência, nas apólices de seguro garantia enquadráveis no conceito de grandes riscos, faz-se imprescindível atenta análise do clausulado por tomadores e segurados, a fim de se buscar, sempre que possível, a adoção das previsões e conceitos da nova circular, com o escopo de preservar a essência da garantia securitária e do interesse segurado, sob pena de esvaziamento da cobertura.
[1] Ao propor a classificação do seguro como contrato de adesão, Judith Martins-Costa pondera: “(…) trata-se de um contrato formado por adesão a condições gerais dos negócios significando que o conteúdo do contrato não é livremente preenchido, uma vez estar em larga medida já fixado pela Susep. As seguradoras, por sua vez, podem – em certo grau – determinar seus próprios modelos, refletidos sob a forma de condições especiais, atinentes a especificações (modalidades) compreendidas nos ramos, bem como a coberturas complementares, supressão de coberturas, franquias, etc. Essas são examinadas e aprovadas pela Susep, embora não ditadas ou fixadas pela autarquia, como ocorre no caso das condições gerais antes referidas. Finalmente, as condições particulares compreendem elementos específicos, como o nome das partes, instituição de beneficiários, valor do prêmio, limites da importância segurada, prazos específicos, e outros aspectos pertinentes a um determinado contrato. As condições gerais e especiais ‘são objeto de padronização, mediante a atividade regulamentadora estatal, sendo indiferente o seu texto de um documento individualizado para efeito de conhecer-se o seu conteúdo’. De tudo resulta que, somadas as condições gerais, especiais e particulares, mesmo quando existe certa possibilidade de negociação por parte do segurado, esta se dá em grau mínimo, insuficiente para afastar a qualificação como contrato de adesão (rectius: contrato por adesão)” (JUDITH MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. [Kindle]. São Paulo: Saraiva Educação, 2018).
[2] JUDITH MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. [Kindle]. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[3] BRUNO MIRAGEM e LUIZA PETERSEN, Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 201.
[4] STJ, REsp 1.660.164/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 17/10/17.
[5] STJ, REsp 1.224.195/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 13/09/11, 4ª Turma.
[6] RENATO MACEDO BURANELLO, Do contrato de seguro: O seguro garantia de obrigações contratuais. Quartier Latin: São Paulo, 2006, pp. 179-180.
[7] STJ, REsp 1.224.195/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 13/09/11, 4ª Turma.
[8] “CONTRATOS DE SEGURO GARANTIA, NAS MODALIDADES ADIANTAMENTO DE PAGAMENTO E PERFORMANCE BOND, DE NATUREZA ÓRIA, FIRMADOS ENTRE A WPE E A SEGURADORA RÉ PARA GARANTIR O ADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS POR AQUELA JUNTO ÀS AUTORAS” (TJRJ, Embargos de Declaração na Apelação n. 0404328-75.2015.8.19.0001, Rel. Des. Luiz Roldão de Freitas Gomes Filho, DJE 29/04/22, 2ª Câmara Cível).
[9] STJ, REsp 1.224.195/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 13/09/11, 4ª Turma.
[10] Segundo a doutrina argentina, “obviamente no toda alteración del riesgo asumido por el asegurador será agravación. Y no toda circunstancia que altere el modelo original del riesgo contratado tiene que ser objeto de denuncia o declaración. La agravación, para ser tal, debe tener influencia o incidencia en el riesgo asegurado, de manera que la modificación sea de tal importancia que aumente la probabilidad de la producción del siniestro o la entidad de sus efectos dañosos” (RUBÉN S. STIGLITZ, Derecho de seguros, t. II. 5. ed. Buenos Aires: La Ley, 2008, p. 179).
[11] STJ, AgInt no REsp 1.577.162/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4a Turma, j. 19/10/17.
[12] Veja-se, por exemplo, precedente do TJSP: “APÓLICE DE SEGURO GARANTIA. CELEBRAÇÃO DE DOIS TERMOS ADITIVOS E ADIANTAMENTO DE VALORES SEM COMUNICAÇÃO PRÉVIA À SEGURADORA. AFASTAMENTO DO DEVER DE INDENIZAR. Violação pela Autora das disposições contratuais e legais que previam a necessidade de comunicação prévia à Seguradora antes da realização de mudanças, no contrato originário com a Tomadora. Incontroversa a ausência de fornecimento de informações prévias. Aditamentos contratuais modificando parâmetros dos fornos, prazos e especificações do pagamento. Concessão de empréstimo pela Autora à Tomadora. Agravamento do risco. Afastamento do dever de indenizar” (TJSP, Apelação n. 1105080-73.2013.8.26.0100, Rel. Des. Berenice Marcondes Cesar, j. 18/05/2021, 28ª Câmara de Direito Privado).
[13] STJ, REsp 1.546.178/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 13/09/16.
[14] STJ, REsp 1.137.113/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 13/03/12.
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