Conflito entre o princípio da congruência e a emendatio libelli
13 de junho de 2022, 11h04
O princípio da correlação entre acusação e sentença, também chamado de princípio da congruência, representa um dos mais importantes postulados para a defesa, assegurando que a sentença esteja em consonância com o fato delituoso que fora descrito na denúncia. Desse modo, é vedado ao juiz julgar de forma extra petita, isto é, fora do pedido constante na inicial acusatória, bem como de forma ultra petita, ou seja, além dos pedidos elencados pelo titular da ação penal.
No âmbito do processo penal, tal princípio define que o órgão julgador deve decidir no limite daquilo que foi trazido pela acusação, tratando na sentença exclusivamente sobre o que foi capitulado na denúncia, sob o risco de que tal sentença seja declarada nula como decisão ultra, citra ou extra petita. Em caso de violação ao princípio da congruência entre denúncia e sentença, estar-se-ia diante de uma decisão cabalmente extra petita, e, portanto, nula, pois o magistrado estaria condenando o acusado por crime pelo qual não foi denunciado.
É por isso que, ao proferir a sentença, não pode o juiz reconhecer a prática de um crime que não foi devidamente descrito na denúncia (sentença extra petita), assim como lhe é vedado, por exemplo, imputar à conduta do acusado majorante não requerida na denúncia (sentença ultra petita). Pari u, a sentença proferida pelo juiz deve sempre ater-se aos fatos e conduta típica descrita na denúncia sob pena de nulidade. Ou, ao menos deveria…
Como já assente no Superior Tribunal de Justiça:
"O princípio da correlação ou da congruência entre a denúncia e a sentença condenatória representa um dos mais importantes postulados para a defesa, porquanto estabelece balizas fixas para a produção da prova, para a condução do processo e para a prolação do édito condenatório" [1].
No entanto, no mesmo julgado assevera-se que "o réu se defende dos fatos narrados na inicial, e não da capitulação jurídica a eles atribuída pela acusação" [2]. É este o entendimento majoritário jurisprudencial e doutrinário, vigorando a ideia de que, em razão de o acusado defender-se dos fatos que lhes são imputados e não da capitulação jurídica descrita na exordial acusatória, não há necessidade de que se abra vista às partes para que se manifestem sobre a nova classificação jurídica dada ao fato delituoso pelo magistrado.
Nesse ponto, é importante repisar que, quando o parquet oferece a denúncia, esta é realizada descrevendo não só o fato, mas principalmente qual o crime praticado, sendo expressamente indicado a qual dispositivo legal se amolda a conduta do acusado. Não obstante, conforme dispõe o artigo 383 do Código de Processo Penal, se no curso da instrução processual o juiz entender que a conduta do acusado difere daquela descrita na exordial acusatória, poderá atribuir-lhe nova classificação jurídica — sendo a sentença o momento em que deve ocorrer a aplicação do instituto da emendatio libelli.
No entanto, esse não parece ser o entendimento mais acertado. Isso porque, em que pese o artigo 383 do Código de Processo Penal preveja a possibilidade de aplicação da emendatio libelli, há certa incongruência entre tal dispositivo e o princípio da correlação entre denúncia e sentença, pois ao atribuir ao acusado uma conduta típica que não foi devidamente descrita na denúncia, estaria o magistrado impedindo o réu de defender-se adequadamente de tal imputação. De tal sorte, ao aplicar o instituto da emendatio libelli somente na sentença, estaria o magistrado incorrendo em franco cerceamento de defesa e violação dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do próprio devido processo legal.
Ou seja, se em uma sentença o acusado é condenado por uma conduta típica não devidamente descrita na denúncia, há nesta sentença óbvias ofensas ao princípio da correlação ou congruência, bem como aos princípios do contraditório e da ampla defesa, haja vista que nela estaria contida a condenação do acusado por um crime pelo qual não foi denunciado na exordial acusatória e que, portanto, não pôde defender-se adequadamente ao longo da instrução processual. Tais ofensas são evidentes, pois, ao imputar ao acusado conduta típica que o próprio titular da ação penal não o acusou, o magistrado estaria, além de tudo, também violando o princípio acusatório, mormente porque estaria condenando o acusado por um crime pelo qual não foi ele denunciado — o que lembra muito os trevosos tempos do processo penal inquisitório.
Em casos tais, há evidente cerceamento de defesa, pois, conforme elucida de maneira precisa o processualista Aury Lopes Jr., o direito de defesa "é obviamente atingido pela sentença incongruente, pois subtrai do réu a possibilidade de defender-se daquilo que foi objeto da decisão, mas que não estava na acusação" [3]. Nesse sentido, segundo o referido jurista:
"Essa surpresa gera um inegável estado de indefesa, com evidente prejuízo (para aqueles que ainda operam na lógica do prejuízo para decretação das nulidades processuais). O direito de defesa, ainda que distinto, mantém uma íntima correlação com o contraditório, devendo a acusação ser clara e individualizada para permitir a defesa. Mas de nada servem essas regras em torno da imputação, se o juiz modificar, no curso do processo, as questões de fato ou de direito gerando a surpresa e a situação de evidente cerceamento de defesa, pois o réu não se defendeu desse fato novo ou dessa nova qualificação jurídica, por exemplo. Apenas para não gerar confusão, explicamos que o direito de defesa é, obviamente, afetado pela sentença incongruente, mas a regra da correlação não se funda apenas sobre ele. Ou seja, não está a congruência ou correlação a serviço, exclusivamente, da defesa, mas também do contraditório e do sistema acusatório" [4].
Por óbvio, como referido alhures, não se está aqui negando a existência do instituto da emendatio libelli ou se olvidando do que dispõe o artigo 383 do P. Porém, como aduz LOPES JR., "infelizmente, o senso comum teórico segue afirmando que o réu se defende dos fatos, de modo que a emendatio libelli seria uma mera correção na tipifcação" [5], o que, data vênia, além de não encontrar guarida constitucional, é incompatível com o sistema penal acusatório.
É neste mesmo sentido a lição do jurista Antônio Scarance Fernandes, pois, "na realidade, o acusado não se defende, como normalmente se afirma, somente do fato descrito, mas também da classificação a ele dada pelo órgão acusatório" [6]. Destarte, em que pese a doutrina e jurisprudência majoritárias sustentem que no processo penal o réu se defende dos fatos a ele imputados, independentemente da classificação jurídica, com a máxima data vênia a todos operadores do direito que concordam com tal equivocado entendimento, afirma-se que o artigo 383 do P não encontra guarida na Constituição Federal, ou mesmo no devido processo legal, pois não adequa-se a um sistema processual penal verdadeiramente acusatório.
Além disso, convém destacar outra crítica: considerar que a aplicação da emendatio libelli se trate de [sic] mera correção da tipificação dada ao ilícito penal, é o mesmo que dizer que o Ministério Público, titular da ação penal, não sabe qualificar juridicamente os fatos apurados no inquérito policial, ou mesmo durante a instrução processual e probatória. Com efeito, registre-se que considerar a emendatio libelli uma mera correção da capitulação do crime carece de lógica em um contexto no qual vigora um sistema processual penal acusatório — mormente porque o próprio parquet poderia corrigir a tipificação apontada na denúncia por meio da mutatio libelli, ínsita no artigo 384 do P.
Destarte, considerando que o princípio do contraditório, assim como o da ampla defesa, devem ser devidamente assegurados no processo penal, é imperioso que as partes sejam intimadas acerca da reclassificação jurídica dos fatos imputados ao acusado. Por isso, uma possível solução para tal problema consiste exatamente em que, após a aplicação do instituto da emendatio libelli pelo magistrado, seja aberta vista às partes para manifestarem-se acerca da nova classificação jurídica atribuída. Somente desse modo, com o artigo 383 do P ando por uma necessária filtragem constitucional e, consequentemente, adequando-se ao sistema processual penal acusatório, garantiria-se o devido respeito ao contraditório e à ampla defesa.
É o que também defende de forma elucidativa o autor Aury Lopes Jr.:
"Ainda que a mutatio libelli não seja imprescindível nesses casos, pois não existe um fato novo, impõe-se que o juiz atente para a garantia do contraditório e, ainda, que dispense o aditamento, pelo menos oportunize às partes que se manifestem previamente sobre a possível (nova) tipificação legal atribuível aos fatos, ou, no mínimo, que tenham oportunizada vista para conhecimento e manifestação após a emendatio libelli" [7].
Como se vê, é patente que a aplicação da emendatio libelli sem que seja dada vista às partes para que se manifestem acerca da nova classificação jurídica capitulada pelo magistrado viola o contraditório e a ampla defesa, consequentemente, afrontando o que dispõe o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Isso posto, considerando, ainda, que a sentença não pode extrapolar os limites da denúncia, o que fere, de forma inegável, o princípio da correlação/congruência, compreende-se que o artigo 383 do P necessita ar por uma filtragem constitucional, a fim de adequar-se ao sistema processual penal acusatório, de modo que a possível solução para tal problema consiste em que, após a aplicação do instituto da emendatio libelli pelo magistrado, seja aberta vista às partes para manifestarem-se acerca da nova classificação jurídica, garantindo-se, assim, a devida adequação de tal instituto ao sistema processual penal acusatório e o devido respeito ao contraditório e à ampla defesa.
[1] Trecho de voto do voto do ministro Antonio Saldanha Palheiro, relator no AgRg no Habeas Corpus nº 289.078/PB.
[2] Idem, ibidem.
[3] LOPES JR., Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17ª ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020. p. 1.407.
[4] Idem, ibidem.
[5] Ob. Cit. p. 1.409.
[6] SCARANCE FERNANDES, Antonio. A Mudança do Fato ou da Classificação no Novo
Procedimento do Júri. Boletim do IBCCrim, nº 188, julho/2008, p. 6.
[7] LOPES JR., Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Junior. – 17ª ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 1.418.
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