Opinião

Democracia acionária e limites da agenda ESG nas big oils

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  • é advogado graduado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ mestre em Direito Internacional Privado pela Uerj e pós-graduando em Direito Empresarial com atuação nas áreas de Societário e Regulatório de Óleo e Gás.

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23 de junho de 2022, 20h13

É notório que a agenda ESG (Environmental, Social and Governance) se tornou uma das grandes preocupações na pauta das grandes corporações. O acrônimo em inglês, criado ainda no ano de 2004 pelo relatório das Nações Unidas intitulado "Who Cares Wins: Connecting Financial Markets", busca chamar a atenção para a interconexão entre as temáticas ambiental, social e de governança corporativa, bem como para a necessidade de o mundo corporativo engajar-se em seu avanço [1].

Sinal dos novos tempos, em que migramos progressivamente do capitalism of shareholders para um capitalism of stakeholders, a agenda ESG solidifica no meio empresarial a noção de que as externalidades oriundas das atividades econômicas das grandes corporações devem ser medidas não apenas em seu valor estritamente econômico ou comercial, mas também quanto a valores intangíveis da companhia, como seu impacto social e ambiental no contexto em que se insere [2]. Dessa forma, cria-se uma pressão externa sobre a empresa para elaborar estratégias e objetivos que não somente estabeleçam uma estrutura de governança corporativa interna adequada para a proteção do investidor minoritário, como também para estabelecer metas de desenvolvimento sustentável em sua atividade comercial e ações de responsabilidade social em relação a colaboradores, credores e demais stakeholders.

E uma possível aliada da agenda ESG pode ser justamente os mecanismos societários que garantem a preservação da democracia interna das companhias, com preservação dos interesses de acionistas minoritários e a vinculação dos acionistas controladores à consecução dos melhores interesses da companhia. Em outras palavras, acionistas minoritários poderiam implementar "por dentro" as mudanças necessárias para que as grandes corporações se adequem em necessidades dos novos tempos, indo ao encontro do clamor vindo "de fora".

Exemplos de "pressão minoritária"
Em 2021, acionistas minoritários "ativistas" conseguiram impor às big oils importantes mudanças em linha com a agenda ESG. Na assembleia geral ordinária da ExxonMobil Corp., por exemplo, eles conseguiram eleger nada menos do que três membros para o Conselho de istração, que ficaram responsáveis por fiscalizar e supervisionar a adequação da companhia às metas de redução de gases de efeito estufa. No mesmo ano, minoritários da Chevron conseguiram incluir na ordem do dia da assembleia geral ordinária deliberação acerca de plano com metas mais ambiciosas para redução de emissão de gases de efeito estufa de seus produtos no médio e longo prazo (escopo 3), em linha com o Acordo de Paris. Apesar de o Conselho de istração ter recomendado a rejeição, a proposta acabou aprovada por acionistas representando 60% do capital votante presente na Assembleia Geral.

Ainda em 2021, a britânica Royal Dutch Shell, atualmente denominada "Shell plc", sucumbiu em uma demanda ajuizada por acionistas minoritários no Judiciário holandês, que impôs à companhia a obrigação de estabelecer metas e plano sistemático para redução de suas emissões em 45% até 2030.

Boa parte dessas iniciativas foi proposta pelo grupo Follow This, rede criada pelo ativista Mark van Baal que reúne acionistas de grandes corporações na indústria de óleo e gás para atuação conjunta e sistemática, propondo pautas semelhantes — ou, às vezes, idênticas — em diversas assembleias gerais, numa ação organizada para implementar "por dentro" medidas no sentido da transição energética e economia de baixa emissão de carbono. Em 2016, van Baal conseguiu pela primeira vez atingir o limite mínimo de ações para propor metas à Shell, recebendo apenas 3% de apoio dos demais acionistas. Apesar da derrota, o grupo vem atraindo cada vez mais atenção da imprensa e das próprias istrações dessas companhias, obtendo finalmente alguns resultados favoráveis em 2021, como os expostos acima.

Brasil ainda no "capitalism of shareholders"
No Brasil, esse debate ganhou ainda mais relevo com a edição da Resolução CVM nº 59, de 22 de dezembro de 2021 (RCVM 59), que estabeleceu às companhias abertas novas obrigações de disclosure para uma série de informações sobre a agenda ESG, no item 1.9 do novo Formulário de Referência.

No formato "pratique ou explique", historicamente adotado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), as companhias abertas deverão informar, a partir de 02 de janeiro de 2023, dentre outros pontos, se adotam um relatório anual ou outro documento específico acerca de suas práticas ESG, se este documento está em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU e se ele considera as recomendações da Força-Tarefa para Divulgações Financeiras Relacionadas às Mudanças Climáticas (TCFD) ou recomendações de divulgações financeiras de outras entidades reconhecidas e que sejam relacionadas a questões climáticas. Por fim, companhias deverão informar adicionalmente se realizam inventários de emissão de gases do efeito estufa.

Na Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das S.A.), contudo, remanesce ainda a visão do capitalism of shareholders, em um olhar "ensimesmado" da companhia, permitindo aos acionistas minoritários, individual ou conjuntamente, exercer seus direitos de minoria apenas quanto a temas internos da companhia e de natureza essencialmente econômica e comercial, como o direito de fiscalizar a gestão dos negócios sociais (artigo 109, II), direito de requerer informações financeiras da istração (artigos 133 e 135, § 1º), possibilidade de requerer a instalação do conselho fiscal (artigo 161) e o aos livros da companhia (artigos 100, §1º, e 105).

Tampouco existe um direito mais amplo de proposição de pautas para assembleias gerais. Nos termos do artigo 37 da Resolução CVM nº 81, de 29 de março de 2022 (RCVM 81), aplicável apenas a companhias abertas que possuam registro categoria "A" (registro que habilita a emissão de ações e demais valores mobiliários para negociação), somente acionistas que sejam titulares de um número mínimo de ações previsto nesta norma poderão propor deliberação para ser incluída na ordem do dia de assembleia geral ordinária.

Conforme estipulado na RCVM 81, essa proposta deverá ser formulada entre o primeiro dia útil do exercício social em que se realizará a assembleia geral e até 45 dias antes da data de sua realização, podendo ter como objeto matérias de competência de assembleias gerais ordinárias ou extraordinárias.

A RCVM 81 permite ainda que as companhias rejeitem a proposta, indicando os motivos pelos quais tal solicitação não cumpre o disposto nesta seção, indicando os documentos ou alterações necessários a sua retificação pelos acionistas proponentes.

Dada a característica ainda incipiente do mercado acionário brasileiro, no qual boa parte das companhias abertas possuem acionista(s) controlador(es) majoritário(s) e baixa dispersão acionária, esta faculdade da RCVM 81 acaba por possuir pouca — ou nenhuma — efetividade no plano prático.

Limites da agenda ESG nas big oils em 2022
Voltando para o cenário internacional, a temporada de assembleias gerais ordinárias de 2022 das big oils, finalizada em maio, também apresentou importantes limites ao avanço da agenda ESG. Em meio a um contexto político-econômico mais desafiador, marcado pela guerra na Ucrânia, sanções às exportações oriundas da Rússia e, consequentemente, maior demanda por petróleo e gás natural no mercado internacional, os acionistas demonstraram tendência de acompanhar as propostas oficiais das istrações das companhias, rejeitando outras deliberações apresentadas por minoritários relativas a meio ambiente, responsabilidade social e governança corporativa.

No conclave da Chevron, por exemplo, o grupo Follow This viu sua ambiciosa proposta de redução de gases efeito estufa de escopos 1, 2 e 3 [3] ser rejeitada por 67.4% do capital votante presente [4].

Da mesma forma, no ano ado, foi proposto que a istração elaborasse um relatório periódico auditado sobre os impactos e as possibilidades do setor energético em vista do compromisso da neutralidade de carbono até 2050 nas operações da companhia. Essa proposta quase foi aprovada naquela ocasião, recebendo apoio de acionistas representando 47,8% do capital social votante presente. Em 2022, contudo, este índice caiu para 38,7%.

Em 2021, os minoritários da Chevron propam ainda uma emenda do estatuto social para permitir que acionistas representando ao menos 10% do capital social convocassem assembleias especiais, a fim de aferir eventuais riscos incorridos pela istração, especialmente em processos judiciais e arbitrais instaurados em diferentes jurisdições em que a companhia mantém atividades. Naquele ano, essa proposição recebeu 33,3%, índice que caiu para 27,4% em 2022.

A mesma proposta de convocação de assembleias especiais por minoritários também foi apresentada por acionistas da ExxonMobil em 2021, recebendo apoio de apenas 20,7% do capital social votante presente. Já em 2022, proposta de governança de teor semelhante, que previa a facilitação para a propositura de pautas por acionistas minoritários em assembleias gerais, recebeu ínfimo 1,5% de aprovação, de acordo com resultados preliminares apurados pela Companhia — os resultados definitivos deverão ser divulgados somente no final de junho [5].

Vale destacar que, em 2021, a democracia acionária da Exxon foi uma das mais ativas dentre as big oils, sendo aprovadas na assembleia geral ordinária daquele ano, com índices expressivos, propostas sobre a elaboração periódica de relatório sobre lobby realizado pela companhia, bem como sobre o alinhamento desta prática às metas de redução de gases de efeito estufa, proposta pela gestora internacional do BNP Paribas.

Este ano, entretanto, propostas neste sentido, como apresentação de relatório sobre a produção de plástico e metas para redução de emissão e venda de hidrocarbonetos, foram rejeitadas por cerca de 65% dos acionistas presentes. Outra proposta relativa à elaboração de relatório sobre doações eleitorais, apresentada em 2021, recebera naquela ocasião o apoio de 30,3% dos votos, índice que caiu este ano para 26,7%.

A exemplo de suas concorrentes, a assembleia geral ordinária de 2022 da Shell foi marcada pela proposta de elaboração periódica de relatório com metas ambiciosas médio e longo prazo para redução de escopos 1, 2 e 3, em linha com os parâmetros do Acordo de Paris [6]. Não obstante, a proposta acabou rejeitada por 79,71% votos representativos do capital social votante da companhia, rejeição consideravelmente superior à verificada no ano anterior, de 69,53% [7]. Segundo a istração da Companhia, essa pauta, proposta pelo grupo Follow This, impunha metas "irreais" e "inatingíveis", que somente comprometeriam a estratégia de transição energética já posta em prática.

Já na TotalEnergies, o Conselho de istração negou-se a incluir na ordem do dia da assembleia deste ano proposta semelhante ao do grupo Follow This. Para tanto, os es alegaram que a proposição usurpava a competência do conselho de istração de fixar a estratégia geral e conduzir os negócios da companhia, conforme definida no estatuto social [8].

Em compensação, a istração solicitou que os acionistas expressassem suas opiniões e questões de ordem durante a deliberação acerca do relatório "Sustainability & Climate — Progress Report 2022", que foi incluído na pauta da assembleia. Apesar da franca oposição entre a istração e parte dos minoritários, o relatório recebeu amplo acolhimento, sendo aprovado por acionistas representando 88,89% do capital social da companhia [9].

Esses resultados demonstram que o cenário político de 2022 e o desejo de expansão inédita das margens de lucro em virtude da alta dos preços do barril de petróleo contribuíram para a tendência dos acionistas de acompanhar as istrações das companhias nas assembleias gerais e desacelerar — ao menos — o avanço mais ambicioso da agenda ESG impulsionado nos últimos anos através de mecanismos internos de democracia acionária.


[2] PARGENDLER, Mariana. The rise of international corporate law, 98 WASH. U. L. REV. 1765 (2021), p. 1796.

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  • é advogado, graduado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, mestre em Direito Internacional Privado pela Uerj e pós-graduando em Direito Empresarial, com atuação nas áreas de Societário e Regulatório de Óleo e Gás.

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