Mineração de criptomoedas e organizações criminosas
7 de março de 2022, 6h32
A mais revolucionária inovação do contexto econômico contemporâneo — visto, justamente, nas criptomoedas — tem uma particularidade que bem ilustra seu contorno diferencial. O seu próprio processo criacional recorda a lenda chinesa da árvore do dinheiro. Talvez, ainda, melhor sorte de comparação se dê com o nome atribuído a tal processo — mineração —, uma vez que esta faz alusão à extração de riqueza da própria pedra bruta. Para além disso, a mineração de criptomoedas quiçá se mostre como uma das principais questões de política criminal desse novo momento histórico.
Em conversas leigas, a mineração, desde logo, se visualiza como um dos grandes problemas de compreensão do mundo cripto. Afinal, como aceitar a simples criação de dinheiro? Como isso se justificaria? Isso, no mínimo, soaria, à maioria das pessoas, como algo muito estranho. Algumas mitificações devem, desde logo, ser postas abaixo. Em primeiro lugar, é de se recordar que a mineração de criptomoedas, em termos latos, é o nome genérico dado ao processo de validação e inclusão de novas transações em uma blockchain (que vem a ser o banco de dados público que registra o histórico de movimentações dos usuários de criptomoedas). Como resultado de um sem número de provas de trabalho matemáticas de alta complexidade, novas moedas digitais são criadas [1], atribuindo-se prêmios aos que venham a proceder a tais operações [2]. Portanto, ter-se-ia, em verdade, que a mineração se explicita como responsável por colocar mais criptomoedas no mercado [3], assim como faz um Banco Central ao "imprimir" dinheiro. Mas isso não significa, de forma alguma, que o processo é gratuito. Pelo contrário.
O processo de mineração é, desde logo, extremamente custoso. Existe um alto gasto de energia elétrica envolvido na resolução das mencionadas fórmulas matemáticas que legitimam a validação e a inclusão, tanto é que, hoje, em muitos países e jurisdições, torna-se simplesmente inviável do ponto de vista econômico, gerando críticas, aqui e acolá, até mesmo de Elon Musk. O controverso empresário, diga-se, recentemente movimentou o mercado cripto de forma, no mínimo, duvidosa. Após gerar movimentos oscilantes de valorização, findou por dizer que a bitcoin causaria poluição, o que fez, em 2021, o mercado despencar de forma abrupta. Por outro lado, paraísos de mineração, como parcialmente Paraguai, China ou Cazaquistão, acabam por ganhar significativo espaço nessa temática.
A validação dos negócios em andamento e a inclusão de novas potenciais moedas a serem postas em circulação são a chave derradeira, com registros próprios previstos no Livro Aberto idealizado por Satoshi Nakamoto, no caso bitcoin. São elas, de fato, algo absolutamente novidadeiro em um ambiente que se originou com tendência de anarquia virtual contra o próprio establishment [4]. Ao mesmo tempo, contudo, abriu caminho indireto para possibilidades eventuais de lavagem de dinheiro por parte, principalmente, de organizações criminosas.
Sem dúvida, hoje se vive em um mundo de controles, e os regramentos internacionais acerca de lavagem de dinheiro são um bom exemplo disso. Baseada em regulações muito estritas para prevenir, detectar e sancionar a lavagem, tal estratégia se desenvolveu na época da primeira globalização e hoje se firma de modo ainda mais intenso [5]. Nesse diapasão, uma das regras básicas que orientou toda a política criminalizante acerca da lavagem de dinheiro nos últimos vinte e poucos anos diz respeito a se conhecer a origem dos dinheiros postos no mercado. O que se fazer, portanto, com dinheiros que, simplesmente, são criados por processos de validação e inclusão [6]? Estariam, contudo, as organizações criminosas absolutamente liberadas para fabricar seu próprio dinheiro? Ou, quanto mais, a lavar dinheiro sujo no processo de mineração?
Duas são as considerações que devem ser feitas e tidas em conta, desde uma perspectiva jurídico-penal. Em primeiro lugar, sem dúvida alguma, pode se dar uma simulação de um processo de mineração, da mesma forma como poderia ser detectada fraude em lavanderias ou em qualquer outro tradicional campo de serviços que se mostrem à disposição de um processo de lavar dinheiro sujo. Em se detectando o momento de fraude e sendo configurado o subterfúgio empregado na mineração, claro está o vício posto na própria operação. Nesse caso, a fraude é paralela à própria mineração, e com ela não se confunde. Pode haver, no entanto, um processo de simples maquiamento e mistura de dinheiros oriundos da mineração e de dinheiros ilícitos [7]. Esse, sim, um cenário a se ter em conta de potencial uso da mineração para propósitos de lavagem, e que eventualmente deve ser tido em conta pelo Judiciário em casos envolvendo potenciais organizações criminosas. Balanços de efetividade da operação, o resultado da mineração e os potenciais lucros, tudo, enfim, deveria ser avaliado.
As criptomoedas vivem um curioso momento. De alternativa quase anárquica ao sistema, acabaram por se transmutar em versão potencial de moeda desejada por muitos do próprio sistema. Com isso, causam certo horror àqueles que têm, na aparente bipolaridade vivida pelo Direito Penal — entre um punitivismo arraigado e um garantismo radical —, uma tendência a se iludir com a eficácia da seara criminal. Há de se entender, derradeiramente, que o universo cripto não necessariamente se imiscui em problemas penais, sendo, unicamente, campo em que podem se desenvolver velhas práticas a serem combatidas. Apenas isso, e não um novo e insolúvel problema. Regulações virão, como é o caso do Projeto de Lei nº 3.825/2019, aprovado no Senado Federal em 22/2/2022, e que dispõe sobre diretrizes a serem observadas, entre outras, na regulamentação das prestadoras de serviços virtuais. Mas o cuidado deve ser sempre presente para que isso não venha a redundar em mera falácia a tentar garantir a infalibilidade, a qual não se encontra em nenhum lugar.
De todas as quadras vistas no palco das criptomoedas, é na mineração que devem ser postas as lanças de guarda, como, também, em certos aspectos de comercialização, meios de pagamento e aplicação. Mas, para isso, a desregulação deve ceder algum espaço à regulação, o que pode se mostrar, sempre, conflituoso. São, de toda forma, os momentos de gargalo das criptomoedas, como os de criação, comercialização e transformação em moeda Fiat, que podem ser submetidos a algum controle, e, nesse caso, com justificativas até de política criminal. Mesmo assim, não se deve esquecer que isso somente poderá ter alguma efetividade caso se perceba a necessidade de uma política internacional de controles [8], sob pena de, mais uma vez, se cair em mera percepção de miragem regulatória, e nada mais.
[1] Cf, TELLES, Christiana Mariani da Silva. Bitcoin, lavagem de dinheiro e regulação. Curitiba: Juruá, 2020, p. 21 e ss.
[2] AMMOUS, Saifedean. The Bitcoin Standart. The Decentralized Alternative to Central Banking. New Jersey: Wiley, 2018, p. 217 e ss.
[3] Cf. BUENO, Thiago Augusto. Bitcoin e crimes de lavagem de dinheiro. Campo Grande: Contemplar, 2020, p. 126 e ss.
[4] Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bitcoin e suas fronteiras penais: em busca do marco legal das criptomoedas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 94 e ss.
[5] BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blaqueo de capitales. Granada: Aranzandi, 2012, p. 98 e ss.
[6] Como pontuado, é certo que tais processos já foram mais rentáveis, sendo reduzidos por protocolos de deflação das criptomoedas, como se dá com o bitcoin. Hoje, aliás, mostra-se mais cara a mineração em países como o Brasil do que a recompensa paga. Em outras jurisdições, no entanto, isso ainda é altamente interessante.
[7] Recorde-se que usualmente, as organizações criminosas acabam se valendo de empresas para a limpeza do seu capital, com o emprego da mistura do dinheiro ilícito e lícito, como visto na seção anterior, tal como ocorre em hotéis, cassinos e postos de gasolina, empreendimentos que lidam com grande volume de dinheiro em espécie e nem sempre têm o controle adequado das movimentações. Cf. BUENO, Thiago Augusto. Op. cit., p. 112.
[8] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bitcoin…Op. cit., p. 141.
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