Opinião

Incompatibilidade material vertical da lei que trata do afastamento da gestante

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  • é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará) mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA) especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Ucam (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).

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18 de março de 2022, 13h33

Foi publicada no Diário Oficial da União de 10 de março de 2022, a Lei nº 14.311/2022, que altera a Lei nº 14.151, de 12 de maio de 2021, para disciplinar o afastamento da empregada gestante, inclusive a doméstica, não imunizada contra o coronavírus SARS-Cov-2 das atividades de trabalho presencial quando a atividade laboral por ela exercida for incompatível com a sua realização em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância, nos termos em que especifica.

A novel legislação confere às empregadas gestantes o direito de recusarem a vacina imunizante contra o Sars-Cov-2 e de obrigarem o empregador a aceitar tal situação, independentemente do potencial risco que acarretará aos demais empregados, clientes, usuários e demais pessoas que se relacionam com o conglomerado empresarial ou institucional com a entronização de uma pessoa não imunizada no meio ambiente do trabalho ecologicamente equilibrado, como o potencial risco de levar alguma pessoa a óbito — vejam-se as estatísticas e a contabilização da morte de mais de 654.000 brasileiros — ou o risco de infligir a alguém sequelas permanentes, como já vem reconhecendo a ciência [1], em flagrante afronta direta e literal, portanto, aos artigos 7º, XXII, 200, II e VIII, e 225 da Constituição da República.

Mas não é só.

Aparentemente, o artigo 1º, §3º, III, da Lei nº 14.151/2021, incluído pela Lei nº 14.311/2022, não é tão claro quanto à recusa, ao dizer que a empregada pode recusar a vacina mediante o exercício de legítima opção individual.

Tal vagueza permitiria conferir ao texto interpretação conforme a Constituição da República, na esteira do julgamento conjunto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1.267.879 e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e 6.587 [2], no qual o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a recusa justificada à imunização pela vacina de combate ao Sars-Cov-2, a exemplo da possível afetação da saúde da pessoa e de efeitos mais deletérios do que benéficos com a vacinação [3].

Porém, o artigo 1º, §7º, da Lei nº 14.151/2021, incluído pela Lei nº 14.311/2022, bem revela a flagrante inconstitucionalidade na qual se revestiu a mens legislatoris, ao dispor que o exercício da opção é uma expressão do direito fundamental da liberdade de autodeterminação individual e não poderá ser imposta à gestante que fizer a escolha pela não vacinação qualquer restrição de direitos em razão dela.

Sim, poderá.

O Supremo Tribunal Federal foi claríssimo em definir que haverá consequências jurídicas na recusa injustificada, a exemplo da mera autodeterminação individual. O Supremo Tribunal Federal itiu, pacificamente, a implementação da vacinação compulsória por medidas indiretas, apresentando rol meramente exemplificativo, onde se incluiu a restrição ao exercício de certas atividades quando houver previsão em lei ou dela decorrente.

Já me manifestei, neste mesmo espaço do Consultor Jurídico, acerca da possibilidade de penalização do empregado que recusa, injustificadamente, a vacina [4].

Outrossim, há uma importante norma-princípio aparentemente esquecida nos debates sobre a vacinação compulsória.

Sabemos que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, mas não aprovados pelo quórum qualificado do artigo 5º, §3º, da Constituição da República, ostentam posição hierárquico-normativa de supralegalidade, conforme já definiu o Supremo Tribunal Federal [5].

Nesse espectro se insere a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como "Pacto de São José da Costa Rica", que deve ser cumprida tão inteiramente como nela se contém, conforme Decreto n. 678/1992.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos ostenta posição hierárquico-normativa de supralegalidade e, embora esteja abaixo da Constituição da República, está acima de qualquer outra norma infraconstitucional brasileira, impondo eficácia paralisante a qualquer norma infraconstitucional que a contradiga.

Ao tratar dos deveres das pessoas, e sua correlação entre deveres e direitos, o artigo 32 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos dispõe que toda pessoa tem deveres para com a comunidade e a humanidade, e os direitos que cada pessoa possui devem ser limitados pelos direitos dos demais, seja para garantir a segurança de todos, seja pelas justas exigências do bem comum; tais arranjos sociais são essenciais para que uma sociedade se considere efetivamente democrática.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal assentou que a vacinação em massa da população constitui medida adotada pelas autoridades de saúde pública, em caráter preventivo, apta a reduzir a morbimortalidade de doenças infeciosas transmissíveis e com o fim precípuo de proteger toda a coletividade, em especial os mais vulneráveis.

A vacinação compulsória é, portanto, um dever das pessoas, perante a comunidade brasileira e a própria humanidade, considerando que a propagação do vírus ocorre facilmente, de uma ponta à outra do globo terrestre, na sociedade globalizada em que vivemos.

Assim, não há um direito à não vacinação na medida em que o direito de se não vacinar deve ser limitado pelo direito de toda a coletividade de proteger a sua saúde, de não morrer, de não adquirir sequelas permanentes, de não se enlutar com a morte de entes queridos, pelo simples fato de que alguém não quer se imunizar, injustificadamente, independentemente do perigo social e sanitário que tal "opção" acarreta.

Ainda segundo o Supremo Tribunal Federal, é reconhecidamente constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina imunizante contra o Sars-Cov-2, seja porque as vacinas são registradas na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); seja porque estão incluídas em plano nacional de imunizações; seja porque têm aplicação obrigatória decretada em lei, qual seja, a Lei nº 13.979/2020, por seu artigo 3º, III, "d" [6]; seja porque têm amplo esteio em consenso médico-científico.

Nesses casos, conforme claramente dispôs o Supremo Tribunal Federal, a vacinação obrigatória não caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica — e muito menos a autodeterminação individual de cada um.

É preciso deixar aqui um ponto bem claro: o próprio Supremo Tribunal Federal ite a autodeterminação individual se se tratar de vacinação forçada, na medida em que o ordenamento jusconstitucional repudia quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas na pessoa em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou istrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas.

Porém, o mesmo ordenamento jusconstitucional ite a hipótese de vacinação obrigatória, que se afigura legítima, itindo-se o recurso a medidas indiretas como forma de se coagir a pessoa a se vacinar, a exemplo da restrição de circulação; da proibição de entrada em determinados lugares; da vedação à participação em determinados certames; da aplicação de punições no contrato de trabalho, sejam de caráter pedagógico, sejam para o rompimento definitivo do vínculo de emprego, por meio da resolução do contrato de trabalho por iniciativa do empregador; etc.).

O Supremo Tribunal Federal, ao registrar que a luta contra epidemias é um "capítulo antigo da história" e que a atual pandemia é a maior dos últimos cem anos, reconheceu que a vacinação se revela indiscutivelmente um método preventivo eficaz e que, em muitos casos, foi a principal responsável pela erradicação de inúmeras moléstias, a exemplo da varíola e da poliomielite.

No caso de crianças, como bem lembrou o Supremo Tribunal Federal — a despeito das polêmicas artificiais das redes sociais e de autoridades que prestam desserviço com a propagação de desinformações e mentiras —, o artigo 14, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, expressamente, a obrigatoriedade da vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias — e como bem frisou o Supremo Tribunal Federal, peremptoriamente, tal previsão jamais foi reputada inconstitucional.

Pelo que, em conclusão, reputo indissociável o reconhecimento da dupla incompatibilidade material vertical da Lei nº 14.311/2022, seja pelo vício de constitucionalidade, por afrontar direta e literalmente os artigos 7º, XXII, 200, II e VIII, e 225 da Constituição da República e o julgamento conjunto do ARE n. 1.267.879 e das ADIs nº 6.586 e 6.587, pelo Supremo Tribunal Federal, seja pelo vício de inconvencionalidade, pela contrariedade ao disposto no artigo 32 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pois a Lei nº 14.311/2022 subverte a base da sociedade democrática, ao desconsiderar os deveres de cada um para com a comunidade e a humanidade e por deferir um direito a uma pessoa sem observância da limitação pelos direitos dos demais, em detrimento da segurança de todos e das justas exigências do bem comum.


[1] GOVERNO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL. Covid -19 pode deixar herança maldita na vida de quem teve a doença. Publicado em: 6 jun. 2021. Disponível em: http://www.ms.gov.br/covid-19-pode-deixar-heranca-maldita-na-vida-de-quem-teve-a-doenca/. o em: 11 mar. 2022.

[2] ARE 1267879, relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL  MÉRITO DJe-064 DIVULG 07-04-2021 PUBLIC 08-04-2021. ADI 6586, relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-063 DIVULG 06-04-2021 PUBLIC 07-04-2021.

[3] Todas as vezes que eu me referir a disposições do Supremo Tribunal Federal, mas não me referir a qual ou quais julgamentos se relacionam, é porque estou referindo-me, especificamente, ao julgamento conjunto do ARE 1267879 e das ADIs 6586 e 6587.

[4] ZWICKER, Igor de Oliveira. Vacinação compulsória e o direito do trabalho. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, SP, 3 fev. 2021. Disponível em: </2021-fev-03/igor-zwicker-vacinacao-compulsoria-direito-trabalho>. o em: 3 fev. 2021.

[5] Recurso extraordinário n. 349.703 (RS). Relator: ministro Ayres Britto. Relator para o Acórdão: ministro Gilmar Mendes. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico divulgado em 4/6/2009 e publicado em 5/6/2009. Recurso extraordinário n. 466.343 (SP). Relator: ministro Cezar Peluso. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico divulgado em 4/6/2009 e publicado em 5/6/2009. Repercussão geral no mérito. Habeas corpus n. 87.585 (TO). Relator: ministro Marco Aurélio. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário de Justiça Eletrônico divulgado em 25/6/2009 e publicado em 26/6/2009. Habeas corpus n. 92.566 (SP). Relator: ministro Marco Aurélio. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Julgamento: 3/12/2008. Publicação: Diário de Justiça Eletrônico divulgado em 4/6/2009 e publicado em 5/6/2009.

[6] Artigo 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III – determinação de realização compulsória de: (…) d) vacinação e outras medidas profiláticas; (…)

Autores

  • é doutorando em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará), mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (Universidade da Amazônia), especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes (Ucam) e professor de Direito.

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