O STF, as interceptações telefônicas e a duração razoável da investigação criminal
25 de março de 2022, 13h00
Em julho de 2013, o STF reconheceu a existência de repercussão geral da matéria tratada no RE 625.263, no qual se discutia a possibilidade de se renovar sucessivamente a autorização de interceptação telefônica para fins de investigação criminal, sem limite definido de prazo. À época, o relator, ministro Gilmar Mendes, afirmou que a questão discutida no processo era constitucional e "transcendia interesses meramente particulares e individuais das partes envolvidas no litígio, restando configurada a relevância social, econômica e jurídica da matéria”, ressaltando que “a solução a ser definida pela Corte balizaria não apenas o recurso específico, mas todos os processos em que se discutisse o tema”, lembrando, outrossim, que a “jurisprudência do STF tem se manifestado sobre o assunto, itindo, em algumas hipóteses, a possibilidade de renovação do prazo das interceptações telefônicas".

Ao final, por unanimidade, o STF decidiu que é possível a renovação sucessiva de interceptações telefônicas, desde que fundamentada e demonstrada a necessidade da medida com a apresentação de elementos concretos e da complexidade da investigação, aprovando-se a seguinte tese de repercussão geral:
"São lícitas as sucessivas renovações de interceptação telefônica desde que, verificados os requisitos do artigo 2º da Lei 9.296/1996 e demonstrada a necessidade da medida diante de elementos concretos e a complexidade da investigação, a decisão judicial inicial e as prorrogações sejam devidamente motivadas, com justificativa legítima, ainda que sucinta, a embasar a continuidade das investigações. São ilegais as motivações padronizadas ou reproduções de modelos genéricos sem relação com o caso concreto".
Pois bem.
Como se sabe, a Lei 9.296/96, que regulamenta a interceptação telefônica, define que as escutas devem ser determinadas por meio de decisão judicial fundamentada, não podendo exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual período, quando comprovada a indispensabilidade desse meio de prova. A possibilidade, portanto, de renovação desse meio de obtenção de prova está prevista na própria lei de regência, por cada quinze dias, desde que comprovada (fundamentadamente) a sua necessidade e a sua indispensabilidade, sem limite (a princípio, como se verá adiante) de períodos.
Evidentemente, a decisão judicial que determine a prorrogação das interceptações deve ser rigorosamente fundamentada, nos termos do artigo 315 do P, que exige, expressamente, e sob pena de nulidade (conforme o inciso V do artigo 564), que qualquer decisão judicial — interlocutória, sentença ou acórdão — seja fundamentada, não podendo se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida. Aliás, um dispositivo legal com esta exigência seria despiciendo, considerando-se o disposto no artigo 93, IX da CF. Aqui, encontra-se, rigorosamente, a legitimidade do Poder Judiciário, afinal, como afirma Ferrajoli, "a legitimidade da função jurisdicional, que reside nos vínculos impostos pela lei como garantia de seu caráter cognoscitivo e para a tutela dos direitos dos cidadãos, é sempre parcial e imperfeita" [1].
Aliás, conforme Gomes Filho, a motivação das decisões judiciais responde, muito especialmente, a duas garantias: uma política e outra de natureza processual. Para ele, "nos regimes democráticos a legitimação dos membros do Judiciário — que não resulta da forma de investidura no cargo — só pode derivar do modo pelo qual é exercida sua função". Logo, "a motivação das decisões judiciais adquire uma conotação que transcende o âmbito próprio do processo para situar-se, portanto, no plano mais elevado da política, caracterizando-se como o instrumento mais adequado ao controle sobre a forma pela qual se exerce a função jurisdicional". Por outro lado, como garantia processual "a fundamentação constitui um dos requisitos formais das decisões (ou de determinadas decisões) e, como tal, vem tratada nos códigos e leis processuais que, com essa exigência, buscam atender a certas necessidades de racionalização e eficiência da atividade jurisdicional" [2].
Ainda neste aspecto, acresce-se que a motivação das decisões judiciais decorre "das garantias do devido processo, especialmente da presunção de inocência", conforme a lição de Fernando Díaz Cantón [3].
Portanto, como já foi consignado, desde um ponto de vista político, a motivação das decisões judiciais cumpre um papel fundamental para legitimar a própria função jurisdicional, pois permite que haja uma transparência das decisões judiciais, bem como um democrático controle por parte dos jurisdicionados, sejam (imediatamente) as partes no processo, seja o cidadão.
Neste sentido, Julio Maier acentua que "o controle público da sentença judicial significa, politicamente, num Estado democrático, outro mecanismo que procura alcançar a independência judicial, através da crítica popular, incluindo a imprensa" [4].
Afinal, "o juiz recebe do povo, através da Constituição, a legitimação formal de suas decisões, que muitas vezes afetam de modo extremamente grave a liberdade, a situação familiar, o patrimônio, a convivência na sociedade e toda uma gama de interesses fundamentais de uma ou de muitas pessoas. Essa legitimação deve ser permanentemente complementada pelo povo, o que só ocorre quando os juízes estão cumprindo seu papel constitucional, protegendo eficazmente os direitos e decidindo com justiça. Além de tudo, é o povo, de quem ele é delegado, quem remunera o trabalho do juiz, o que acentua a sua condição de agente do povo" [5].
De toda maneira, importante também observar que, nada obstante a possibilidade de prorrogação do prazo da interceptação telefônica, a investigação criminal não pode perdurar por tempo indeterminado. Neste sentido, o ministro Ricardo Lewandowski, nos autos da Reclamação 46353, determinou o arquivamento de dois inquéritos, reconhecendo excesso de prazo para a conclusão das investigações criminais, em evidente afronta ao devido processo legal. Citando precedentes monocráticos da própria Suprema Corte, o relator reafirmou que o excesso de prazo para a conclusão de uma investigação criminal "viola o direito do investigado à razoável duração do processo, norma constitucional que tem força normativa para abarcar os inquéritos policias, nos termos do artigo 5º., LXXVIII, da Carta de Direitos".
Conforme ressaltou, é preciso que se aplique na interpretação daquele dispositivo constitucional o princípio da máxima efetividade, "princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)".
"Para Canotilho, o princípio da máxima efetividade, também designado princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê" [6].
Muito a propósito, Fauzi Hassan Choukr aponta quatro tendências legislativas a respeito do tema, a saber: a) determinação específica ou não do prazo para ultimação da investigação; b) o termo a quo para sua contagem; c) o controle caso seja excedido; e d) sanções em caso de superação sem manifestação. No Brasil, conforme observa o autor, "muito embora tenha o legislador procurado delimitar temporalmente o trâmite da investigação, não soube fazê-lo, criando um artigo superficialmente rigoroso (artigo 10, P), mas praticamente inoperante, além de tecnicamente imperfeito" [7].
Também Aury Lopes Jr. e Ricardo Gloeckner entendem que a investigação preliminar deve ter uma duração máxima limitada em lei, propondo que haja uma forma de controle que assegure a eficácia da limitação temporal, nos moldes do artigo 407.3 do Código de Processo Penal italiano, aplicando-se a pena de inutilizzabilità. Para eles, adotado o sistema italiano, "a partir do momento em que os atos são considerados inúteis, não existe justa causa para manter em ´aberto` a investigação preliminar e ela deve ser trancada através do habeas corpus ou, ainda, por simples petição do juiz garante" [8].
Importante ressaltar, conforme assinala Bertolino, respaldando-se, aliás, em lição antiga de Carnelutti, que “somente a existência do processo penal representa para o processado uma restrição à sua esfera de liberdade, pois, conforme já o dissera Carnelutti, o processo penal, por si só, já é uma pena”; de maneira que “o tempo que leva a tramitação do processo deve, em princípio, ter uma justa e razoável determinação.”[9]
Conforme acentua Daniel Pastor, "é precisamente no processo onde a relação entre tempo e direito mostra-se mais estreita, até um ponto em que ambos os conceitos confundem-se; a própria representação mesma do conceito de processo já sugere a ideia do tempo como componente principal". Para este autor, "o lapso que se estende entre a notícia oficial de que foi praticado um fato punível e a realização efetiva da lei penal, em qualquer dos seus sentidos, é, precisamente, o tempo total do processo".
Eis a razão pela qual o tempo do procedimento investigatório criminal deve ser considerado para efeito de aplicação daquela cláusula constitucional, aplicando-se o princípio da máxima efetividade, conforme Canotilho.
Seria um grave equívoco hermenêutico e um atentado mesmo aos direitos fundamentais, limitar-se a expressão "duração razoável do processo" à segunda fase da persecutio criminis, ou seja, a fase judicial propriamente dita; pelo contrário, deve-se também entender que a fase investigatória (preliminar ao exercício da ação penal) não ite igualmente dilações indevidas, afinal, conforme lição de Daniel Pastor, "desde o ponto de vista da efetividade da atividade penal do Estado, a realização da lei penal substantiva não tolera tardanças, visto que elas acabariam por desnaturalizar o sentido da reação punitiva, comprometendo seriamente sua justificação e seus fins" [10].
No mesmo sentido, Leone observa que "o tempo no ordenamento processual pode ser visto como um curso e como um ritmo de coordenação formal; no primeiro sentido, vê-se o tempo real ou cronológico (Mannheim), ou seja, o tempo considerado em seu curso e medido com instrumentos e critério tradicionais (a ampulheta, o relógio, o calendário). No segundo sentido, surge o tempo processual, entendido como o ritmo de coordenação formal das atividades processuais" [11].
É exatamente esse tempo processual que deve estar submetido, num Estado democrático de Direito e sob o pálio do devido processo legal, a um rígido controle, seja legal, seja judicial. Portanto, ainda que seja possível a prorrogação da interceptação telefônica, é preciso também atentar para a duração razoável da investigação criminal, compatibilizando-se, assim, as duas decisões da Suprema Corte acima referidas.
[1] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón — Teoría del Garantismo Penal. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 547.
[2] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, páginas 79, 80 e 95.
[3] CANTÓN, Fernando Díaz. La motivación de la sentencia penal y otros estudios. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2005, p. 107.
[4] MAIER, Julio. Antología — El Proceso Penal Contemporáneo. Peru: Palestra Editores, 2008, p. 750.
[5] DALARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 2002, pp 89-90.
[6] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1210.
[7] CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 158.
[8] LOPES JR., Aury e GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 413.
[9] BERTOLINO, Pedro Juan. El exceso ritual manifiesto. La Plata: Libreria Editora Platense, 2003, p. 107.
[10] PASTOR, Daniel R. El plazo razonable en el processo do Estado de Direito. Buenos Aires: AD-HOC, 2002, pp. 87 e 88.
[11] LEONE, Mauro. Il tempo nel Diritto Penale sostantivo e processuale. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1974, p. 298.
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